quarta-feira, 13 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23164: Historiografia da presença portuguesa em África (312): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
São mesmo leituras espúrias, com grande elasticidade para o termo antiguidade, desta feita conclui-se esta curta incursão com o relatório que Orlando Ribeiro preparou para a Junta de Investigações Coloniais quanto à sua missão em 1947, ele sonhava voltar, pensava mesmo numa permanência de 4 meses, não aconteceu, felizmente que há este rico documento e em 2011 Philip Havik e Suzanne Daveau publicaram o caderno de campo da missão da Guiné, um dos mais belos textos científicos de caráter social que pude ler, não foi por acaso que Orlando Ribeiro além de ter sido a figura proeminente da Geografia em Portugal no século XX foi um eminente humanista, muito se esforçou, depois do 25 de abril, para que se consolidassem os estudos africanos numa base de aproveitamento do muito valor acrescentado em posse das instituições científicas nacionais, deploravelmente não veio a acontecer, para prejuízo da nossa cooperação nos países africanos de língua portuguesa.

Um abraço do
Mário



Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (3)

Mário Beja Santos

Aquele que terá sido o maior geógrafo português do século XX, Orlando Ribeiro, visitou Guiné em 1947, há alguns anos aqui se fez referência ao seu importantíssimo caderno de apontamentos elaborado no terreno, Orlando Ribeiro: Guiné 1947, organizado por Philip Havik e Suzanne Daveau, Edições Húmus, 2011.

Em 1950, os anais da Junta de Investigações Coloniais davam à estampa a notícia sumária da sua missão científica, Orlando Ribeiro começa por abordar a missão em que esteve envolvido com outro eminente cientista, o Prof. Carríngton da Costa, este a chefiar a missão de Geologia, havia o plano de percorrer toda a colónia, só que, entretanto, Orlando Ribeiro adoeceu, chegou tardiamente. E escreve:
“Que vantagens trouxe a coordenação duas missões? Economia, por certo, e a possibilidade de discutir in loco muitas observações. Mas a Guiné é muito uniforme na terra e variada na gente. Desejava agrupar aquele emaranhado dos povos em conjuntos definidos pelos modos de vida, formas de habitação e povoamento, economia, etc. Para isso tinha de fazer um reconhecimento vasto e, tanto quanto possível, completo. As minhas observações são muito desequilibradas: a permanência mais larga que tive em chão de Fulas e Mandingas permitiu-me reunir sobre estes povos muitos elementos. Estudei também algumas tabancas de Papéis, Balantas, Manjacos e Brames. Em todas fiz inquéritos sumários, que às vezes ocuparam mais do que uma manhã ou que uma tarde de trabalho. Um acampamento com vários brancos, se por um lado torna a vida mais agradável, empata muito também. Creio que, para missões de pouca duração, o material muito completo traz menos vantagens do que inconvenientes. Uma cama portátil e o indispensável para cozinhar, um ou dois criados e, numa palhota ou na casa de um posto, o abrigo para a noite, dão maior mobilidade e fazem perder menos tempo”.

E explica o seu trabalho de campo: “A época era má, visto que as culturas se fazem quase só durante o tempo das chuvas. Vi ainda lavrar algumas bolanhas e recolhi uma coleção de instrumentos gentílicos usados no amanho da terra”. Faz agradecimentos à hospitalidade recebida, em particular a guineenses: “Não posso esquecer os amáveis informadores indígenas, que se prestavam, com uma compreensão que nem sempre se encontra na gente do povo da Metrópole, a mostrar-nos as suas casas e a descrever-nos os usos e costumes locais. Recordo em especial os veneráveis anciãos de Djabicunda, a cuja mesquita fui algumas vezes, que me receberem sempre com inexcedível cortesia e me fizeram dizer pelo intérprete quanto tinham gostado de falar comigo das coisas do tempo antigo”.

Deplora a carência de elementos cartográficos: “Qualquer trabalho de Geografia carece de base cartográfica. A colónia possui apenas um mapa de reconhecimento na escala de 1:500.000, cheio de imperfeições, lacunas e erros”. Deixa a sua esperança que o trabalho da missão Geoidrográfica venha a suprir tão grave lacuna. Revela satisfação com os avanços da investigação: “Tive a surpresa e o prazer de verificar que os estudo etnográficos, indispensável subsídio de Geografia humana, com que têm larga margem de afinidade, se encontravam na Guiné em pleno florescimento, animados pelo entusiástico apoio do Governador e a competência e dedicação do Tenente Teixeira da Mota”. Seguidamente dá conta dos objetivos do trabalho, lavrando que não dá por terminada a sua missão e deseja que lhe seja facultada uma nova permanência de 3 a 4 meses na Guiné. Faz o reconhecimento geral e apresenta as grandes unidades geográficas, do seguinte modo:
“1) Litoral – Ilhas adjacentes e uma costa rasa, rias e bolanhas – vegetação exuberante, mangal e floresta-galeria ao longo dos rios. Agricultura intensa, palmares, culturas alagadas, e pesca.
2) Região de transição (mata do Oio) – Relevo um pouco mais movido, mata densa, população esparsa. Uma grande reserva natural.
3) Planalto do interior (Bafatá – Gabu) – Dois ciclos geomorfológicos, planalto de erosão com rios encaixados, de largo leito maior entre margens escarpadas. Savana. População mista de Mandingas (fixos) e Fulas (móveis). Agricultura e pastoreio.
4) Boé (Bowal dos geógrafos franceses) – Não limitado pelo Cocoli (o outro nome do rio Corubal), como o mapa e o uso podem fazer crer; atravessa o rio. Colinas e planaltos desnudados. Região muito pobre, solo mau, agricultura rudimentar, gado raro, dizimados pelas glossinas”
.

Descreve minuciosamente a morfologia dos solos e daí transita para as questões do povoamento, economia e modos de vida indígenas, escreve parágrafos de elevado recorte literário e que mostram a sua inusitada capacidade de análise, falando dos Fulas, Mandingas, Balantas, Manjacos e Papéis, sobretudo. E expõe sem tibiezas os grandes problemas da colonização guineense:
“A Guiné não é uma colónia de povoamento. Sejam quais forem os atrativos que o desenvolvimento recente da capital e outras vilas proporcionem aos europeus, sem embargo da exceção de velhos colonos que gozaram sempre de saúde e robustez, o clima é pouco propício aos brancos. A própria lei que regula a utilização de licença graciosa para os funcionários públicos inclui a Guiné entre os lugares menos favorecidos. O paludismo graça com intensidade, principalmente na época das chuvas, as formosíssimas ilhas de Pecixe e Jata são grandes focos de doença do sono, espalhada mais ou menos por toda a colónia, assim como a lepra, a disenteria amibiana, a ancilostomíase, etc.
(…)
Salvo durante umas breves horas da manhã ou à tarde, está vedado aos brancos o trabalho agrícola e a longa exposição ao sol. Onde principalmente se vê quanto esta terra é imprópria para o europeu é no aspeto, pálido enfezado, que crianças normalmente robustas adquirem ao fim de pouco tempo de permanência. Daqui o especial caráter da colonização da Guiné. O branco vem para se demorar uns anos, que os azares da vida podem alongar, mas nunca com o espírito fixar-se; a família fica muitas vezes longe. Lentamente, o homem isolado, roído pela melancolia, abandona-se à sedução das belezas locais e, às vezes, uma prole matizada acaba por fixá-lo ao solo hostil. Apenas entre crioulos cabo-verdianos, em especial das ilhas de Barlavento, se encontram agricultores, que exploram a cana-de-açúcar para obter água-ardente. À parte algumas granjas do Estado, e uma ou outra horta à roda da casa de algum colono mais progressivo, as pontas lançadas pelo mato destinam-se quase apenas à cultura da cana. A restante agricultura é praticada por indígenas. O branco é, portanto, na Guiné, comerciante ou funcionário. O objetivo fundamental é demorar-se pouco enriquecendo depressa”
.

E comenta assim a economia guineense: “A economia da Guiné assenta numa base restrita; as fontes de receita essenciais são o imposto indígena e os impostos alfandegários, que incidem gravosamente sobre artefactos ou produtos de consumo corrente e indispensável, prejudicando deste modo o desenvolvimento da região. Outra grande fonte de receita é o comércio de oleaginosas, sendo a mancarra quase o único produto que os indígenas cultivam para vender. Assim, à parte a que se destina satisfazer as necessidades alimentares, é a monocultura, com todos os seus riscos, que fornece o essencial da exportação. Não há indústrias; são raras as plantações; o comércio, numa crise possível de oleaginosas, soçobrará sem remédio. A economia da colónia, primitiva e rudimentar, assenta numa base cuja fragilidade é evidente”.

Tanto quanto nos é dado perceber, Orlando Ribeiro jamais deu continuidade à missão que ambicionara fazer na Guiné. Esteve em Bissau no mês de dezembro, na Conferência Internacional do Africanistas Ocidentais, 1947, onde fez uma conferência e apresentou duas comunicações. Manifesta o seu desenho de prosseguir o estudo na Guiné. Não aconteceu.

E aqui se põe termo a um escasso número de textos que intitulei Fundos da Gaveta, papéis que me foram aparecendo enquanto trabalhava no meu projeto Guiné, Bilhete de Identidade, sempre a sonhar encontrar uma raridade, um documento fundamental para a História da Guiné, digamos que tive sorte em encontrar este relatório de Orlando Ribeiro, cronologicamente coincidente com o termo da investigação a que me afoitei, já que considero que é na governação de Sarmento Rodrigues que fica esclarecida a identidade da Guiné depois da presença portuguesa, a despeito das verdades como punhos que o geógrafo Orlando Ribeiro aqui deixa exaradas.


Carregamento de amendoim no porto do Pidjiquiti, fotografia de Orlando Ribeiro, 1947
Orlando Ribeiro na Guiné, com o seu guia
Bissau. 1947. Tabancas Brames com o seu cercado de pau alto, fotografia de Orlando Ribeiro
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23146: Historiografia da presença portuguesa em África (311): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (2) (Mário Beja Santos)

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