segunda-feira, 11 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23159: Notas de leitura (1436): "Os Forjanenses e a Guerra Colonial", organização de Luís G. Coutinho de Almeida e Carlos M. Gomes de Sá; edição da Junta de Freguesia de Forjães, 2018 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Para quem gosta de imprevistos, encontrar gente da nossa idade que recorda com quem andou na escola, que mantém intocáveis os vínculos do meio local, neste caso sempre com um sentimento forjanense, porque toda a obra é dedicada a militares desta vila do concelho de Esposende, e que nunca mais esqueceu a Guiné, vai ter aqui lauta leitura, elos de solidariedade que jamais se perderam. Testemunhos de oficiais, sargentos e praças, aqui se confirma a universalidade que reside na memória de gente de um terrunho que a todos toca no coração. Um livro que faz todo o sentido estar nas nossas estantes, lê-se e relê-se com imenso carinho, são registos autênticos da têmpera portuguesa.

Um abraço do
Mário



Memórias insuperáveis, a historiografia as saiba escutar (1)

Beja Santos

É um belíssimo, inolvidável, trabalho de recolha junto de antigos combatentes ligados à freguesia de Forjães (concelho de Esposende), a organização pertence a Luís G. Coutinho de Almeida e Carlos M. Gomes de Sá, a edição é da Junta de Freguesia de Forjães, 2018. Não conheço nada de tão tocante, tal é o vigor do testemunho entre os vínculos locais e, em inúmeros casos, uma saudade guineense que não secou. Como é evidente, os testemunhos recolhidos são amplos, estes forjanenses e suas famílias falam da Índia, da guerra de África mas também de São Tomé e Príncipe, Timor e outras paragens. O que aqui se regista, obviamente, circunscreve-se à Guiné, mas desde já se adverte o leitor que se sentirá gratificado com a leitura de todos estes testemunhos, esta memória é aparentemente regional, não haja ilusões, mas estamos lá todos nós.

O soldado Alcino Alves Pereira esteve na Guiné entre 1959 e 1961. De imediato, vemos como os forjanenses falam uns dos outros. Ele está no BC 5 em Lisboa, já lá andavam o Albino do Hilário e o Avelino de Palme. Certamente em consequência do 3 de agosto de 1959, foi tropa de urgência na Guiné, não teve tempo para ir até casa, nem lhes deram licença de mobilização, “só tive tempo de ir à procura do Armando do Rio que trabalhava em Lisboa e que me emprestou 40 escudos, para eu não ir completamente teso para a Guiné”. Embarcaram no Manuel Alfredo, descreve a vida em Bissau, as atividades desportivas a que se dedicou, era ciclista exímio. Lembra que houve um ataque a S. Domingos, em 1961. Tem imensas saudades da Guiné, e critica o colonialismo que ele viu com os seus próprios olhos, havia duas companhias comerciais, A Gouveia e a Ultramarina. “Vendiam de tudo. Quando iam comprar arroz aos guineenses, aquilo funcionava assim: recebiam um saco com 50 kg, ao pesar diziam que só tinha 40 kg e ao fazer contas só pagavam 30 kg. Depois, davam-lhes uns farrapos coloridos para colocar nas costas, para transportar os rapazes e, no final, os guineenses ainda lhes ficavam a dever dinheiro. Exploravam ao máximo aquela gente desgraçada”. O Alcino estava integrado na Companhia Expedicionária 352.

O soldado José Albino Sousa Ribeiro fez parte da CCAÇ 152, esteve na Guiné de 1961 a 1963. Soube que ia para a guerra e foi chamado com o Torcato do Gidório, o Manuel Boucinha e o Álvaro da Isolina. Viaja de avião, desembarca em Bissalanca no fim de julho de 1961, seguiu para Buba. “Tínhamos pelotões destacados em Aldeia Formosa, Cacine e Catió. A sede do batalhão ficou em Tite”. Não esconde como a comissão o marcou indelevelmente: “Lembro-me muitas vezes da Guiné e tenho saudades. Lembro-me muito daquela camaradagem entre a tropa. O povo da Guiné era muito bom. Cheguei a ir muitas vezes com eles para o batuque. Eram um joguete nas nossas mãos e nas dos turras. A guerra não me afetou. Apanhei o paludismo em Bissau e estive internado duas semanas, mas nunca mais tive sintomas. Em Forjães, costumo organizar os convívios dos militares da Guiné, juntamente com o Zé Boucinha. Tenho muito orgulho nisso. Gostamos de nos reunir para conversar e recordar aqueles bons tempos. Agora já é mais um convívio familiar. À volta da Guiné há um sentimento que nos une”.

O 1.º Cabo Paraquedista Manuel da Cruz Dias, que pertenceu à 1.ª Companhia de Caçadores Paraquedistas, esteve na Guiné em 1965 e 1966. Foi condecorado com a medalha da Cruz de Guerra de 3.ª Classe. “O meu comandante de pelotão era o Alferes Ferreira da Silva e o comandante de companhia era o Capitão Pardal. Vim de férias a Portugal, na Páscoa de 1966, de regresso, levei duas encomendas: uma da Fernanda Lajes para o marido, António do Neiva; a outra para o nosso capitão, da parte do seu sogro, que tinha uma loja ali para os lados da estação de S. Bento, no Porto”. Ficou bem estilhaçado em Fulacunda, semanas depois regressou ao ativo. “De passagem por Xitole, encontrei e conversei durante uns minutos com o Tone do Mouco. Andámos juntos na escola. Coitado, viria a morrer na Guiné, já depois de eu de lá regressar. Em Catió, encontrei o Quim Maria. Era furriel. Nunca tive madrinha de guerra. Escrevia para casa e quem me respondia era a minha mãe. Fui condecorado no 10 de junho de 1967. No mesmo dia, também foi condecorado com a Cruz de Guerra de 1.ª Classe e promovido ao posto de Major, a título póstumo, o meu Capitão Tinoco de Faria. Sinto muito orgulho nisso e ainda gosto de olhar e admirar a minha medalha. Um dia, um sujeito de Barroselas, que tinha ouvido falar de mim ao António Casal Martins, ligou-me a perguntar se eu recebia alguma coisa por causa da medalha. Respondi que não e ele disse-me o que é que eu deveria fazer para receber os meus direitos. Assim fiz e hoje recebo uma coisa pouca. A guerra tinha que acabar e ainda bem. Eles também tinham os seus direitos e direito a todas as independências que se deram”.

António de Amorim Torres pertenceu à CCAÇ 1547, esteve na Guiné de 1966 a 1967, faleceu em serviço em Bigene, em 7 de agosto, quem depõe é a viúva, Maria de Fátima Gonçalves de Sá. “Com 16 anos, fui servir para a casa do Sr. Manuel do Abreu, no Matinho, e foi lá que conheci o meu homem, que era lá vizinho. Havia uma fonte ao pé da casa dele. Eu ia para lá lavar e ele aparecia por aqui. Começámos a falar, depois a namorar, mas sempre às escondidas. Quando tinha 18 anos, vim embora para Aldreu, mas continuámos a namorar. Casei em abril, com 19 anos feitos, e fomos viver para casa dos meus pais. Ele foi trabalhar de trolha com os meus irmãos. Mas dali a pouco tempo chamaram-no para a tropa para Lisboa. Depois foi para a Guiné, embarcou no Uíge, seguiu para Bigene. Mandava-me aerogramas de lá. Um dia disse-me: ‘Estou num sítio muito mau. Aconteça o que me acontecer, uma coisa te peço, nunca dês padrasto à minha filha’.”

Imprevistamente, recebe um telegrama a comunicar a morte do António, por motivo de afogamento. “Já se passaram quase cinquenta anos e isso ainda me marca. Eu viúva, com 21 anos, com uma filha órfã, a viver com o meu pai e mais treze irmãos, sete deles abaixo de mim… Foi tudo muito duro!”. Depois de porfiadas diligências, passou a receber uma pensão de 600 escudos, começou a construir uma casinha, tomou conta de sobrinhos, recebia mais um dinheirinho. “O corpo dele demorou seis meses a vir da Guiné. Foram duas dores: a da notícia e do choque e, depois, a dor do funeral. Não acreditava que ele tinha morrido, sonhava que ele estava vivo. Passei muitos anos a sonhar que ele estava vivo. Ainda há dois anos sonhei que ele me apareceu por aí, todo contente, com a mesma roupa que levou ao nosso casamento. O meu pai foi a Lisboa para o reconhecer. Diz que o caixão tinha um vidro por cima e que se via metade do corpo. Diz que estava perfeitinho. No cemitério, os colegas dele fizeram uma fileira e dispararam umas rajadas para o ar. Foi uma marca que me ficou para sempre. Vou todos os anos à festa e ao almoço dos militares da Guiné, em Forjães. Eles convidam-me sempre, o Boucinha e o Albino taxista. Começa às 10 horas com a missa, depois eles vêm cá sempre ao cemitério de Aldreu colocar um ramo de flores na sepultura do meu falecido homem”.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23152: Notas de leitura (1435): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (4) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Do Volume 7 dos Livros CECA

Companhia de Caçadores n." 52
Identificação CCaç 52
Unidade Mob: BC 5 - Lisboa
Crndt: Cap Inf Frederico Alfredo de Carvalho Ressano Garcia
Divisa: -
Partida: Embarque em 12Ag059; desembarque em 18Ag059
Regresso: Embarque em 17Ag061
Síntese da Actividade Operacional
Na sequência da greve dos estivadores do cais do Pijiguiti, no porto de
Bissau em 03Ag059, seguiu para a Guiné como Companhia Expedicionária do
BC 5, a qual ali permaneceu na situação de reforço ao CTIG.
Estabeleceu a sua sede em Bissau, ficou com a missão de garantir a
segurança e protecção das instalações e populações da ilha de Bissau.
A partir de 08Abr61, a companhia expedicionária tomou a designação de
CCaç 52 e passou a destacar um pelotão para o interior da Guiné, que,
alternadamente, se instalou em Farim, Cacheu, Teixeira Pinto, Bedanda, S.
Domingos (onde, na noite de 20/2lJuI61, tomou parte na reacção à primeira
acção armada efectuada e realizada pelo MLG), Varela, Bubaque e outras.
A partir de 18Ju161, foi integrada nas forças sob dependência do BCaç 236,
com vista à segurança e protecção das instalações e das populações da área de
Bissau.
Em 16Ag061, foi substituída na sua missão pela CArt 250, a fim de efectuar
o embarque de regresso.
Observações
Não tem História da Unidade.

antonio graça de abreu disse...

Deste Mário Beja Santos eu gosto.

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Espetacular!
A simplicidade tocante…
Joaquim Costa

José Emídio Marques disse...

Ler estas histórias de vida, com simplicidade na sua literatura e sinceridade no seu coração, tenho de afirmar " isto é o povo a falar".
Bem hajam
José Emídio Marques

Valdemar Silva disse...

'A Gouveia e a Ultramarina.... Quando iam comprar arroz aos guineenses, aquilo funcionava assim: recebiam um saco com 50 kg, ao pesar diziam que só tinha 40 kg e ao fazer contas só pagavam 30 kg. Depois, davam-lhes uns farrapos coloridos para colocar nas costas, para transportar os rapazes e, no final, os guineenses ainda lhes ficavam a dever dinheiro. Exploravam ao máximo aquela gente desgraçada...'
Em 1959, o soldado Alcino falava "destas coisas" sem se preocupar estar a melindrar quem quer que fosse, nem com o "isso não se diz que é feio" por causa das criancinhas.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz