sexta-feira, 8 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23152: Notas de leitura (1435): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Um ano e picos depois de Guileje, com umas férias em Bissau de premeio, Martins parte para Cufar, leva saudades mil, adorou e ficou marcado para o resto da vida com aquele convívio da tabanca de Guileje, viu muita gente chegar e partir, faz-nos saber que o aquartelamento parecia um fortim inexpugnável, fez muito trabalho de Transmissões, andou com o rádio às costas nos patrulhamentos, registou as grandes alterações que se deram na quadrícula, desapareceu Gandembel, Cacoca, Mejo, Cameconde, Sangonhá, Guileje tornou-se uma fortaleza solitária, ponto nevrálgico do Sul. Uma escrita invulgar, fala-se de Júlio César, de Dante, de Horácio, de Ovídio, enfim, expoentes da literatura greco-romana e dos nossos clássicos, tudo sem presunção ou a necessidade de impressionar o freguês da escrita, está-lhe na medula, cita sempre a propósito Camões ou a Bíblia. E nunca nos esconde que reza, que está grato a Deus por tudo o que viveu e por tudo quanto continua a amar, como esta inquebrantável saudade que lhe traz a Guiné.

Um abraço do
Mário



Uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné (4):
O Silvo da Granada, por José Maria Martins da Costa


Mário Beja Santos

Uma surpresa, e com aspetos bem curiosos, este O Silvo da Granada, Memórias da Guiné, por José Maria Martins da Costa, Chiado Books, agosto de 2021. O leitor é colhido por uma prosa onde primam citações de clássicos, a começar pelo latim, tudo passa a ser entendível quando se lê o currículo que o autor apresenta: “Natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, aí frequentei a escola primária, finda a qual entrei no seminário, mais precisamente no mosteiro da Ordem Beneditina. Saí no sétimo ano, talvez para voltar daí a trezentos anos como o monge de Bernardes. Como trezentos anos demoram a passar, para não estar ocioso entretive-me a tirar o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade de Coimbra. Entretanto, assentei praça no Exército, indo para a Guiné como combatente da Guerra do Ultramar e assentei arraiais civis no Porto, onde casei, fui professor e jornalista. Nesta cidade, tenho levado vida plácida e remansosa, dentro dos parâmetros da Aurea Mediocritas de Horácio. Por falar em Horácio, ia-me esquecendo de dizer que publiquei há anos um livro de poemas intitulado Libellus, palavra latina que tanto pode significar pequeno livro como libelo acusatório. Fora das partes líricas, acusava realmente e castigava alguns dos costumes e vícios da sociedade contemporânea. Queria endireitar o mundo. Mas o mundo ignorou o livro e continuou cada vez mais torto”.

Longa já vai a comissão do primeiro cabo Martins, mas ele ainda tem muito para dizer, como narrador quer que saibamos por onde paira a sua escrita: “Isto não é um diário. Antes fosse; que tudo iria por sua ordem, sem as errâncias de uma pena vadia, agora e logo perdida em digressões, por vezes longas, decerto fastidiosas. Também não vai escrito por meses, posto às vezes parece. Já agora, conseguiria se fosse? Há os anais, as décadas, os diários. Só para a escrita por meses não se inventou nome, decerto porque nunca foi preciso.”

Estamos agora a passar de março para abril, deram-se mudanças de vulto de Pel Caç Nat 51, refere quem sai e quem chega. A quase um ano que leva na Guiné, vai a Bissau, regressa a Guileje ao fim de menos de três semanas, terá descansado na capital, não se mostra motivado pela cidade, viaja de barco e vai até Gadamael, tem saudades da gente da tabanca, aproveita toda e qualquer oportunidade para expor uma nótula histórica, desta feita fala da envangelização. É envolvido em patrulhas, felizmente tudo corre sem acidentes. São grandes as amizades com os Futa-Fulas, caso de Mariama, de Ádama, dá-nos conta da vida religiosa islâmica, não esquece de nos lembrar a rotina das colunas entre Guileje e Gadamael. Mais modificações nos efetivos de Guileje, chegou uma companhia inteira para o lugar de outra, sente barulho a mais na convivência, prefere ir viver na cave do posto de rádio. Já estamos em novembro e chega a notícia da transferência do Pel Caç Nat 51, tal como o Pel Caç Nat 67, vão para Cufar, no termo de Catió.

Não irão por estrada, a única forma de lá chegar é alcançar Gadamael, descer o rio Cacine até à sua foz, percorrer um estreito canal, rio chamado Cagopere, aproar ao rio Cumbijã e subir boa parte do seu curso inferior, meter talvez ainda por um afluente deste e depois por terra fazer os últimos quilómetros até Cufar. Como observa: duas picadas, dois ou três rios, um mar, um estreito. Despede-se com enorme saudade dos seus amigos da tabanca, a coluna alcança Gadamael sem novidade. E desabafa: “O Martins, erguendo mãos e olhos ao céu, rende graças a dois santos da sua particular devoção, a quem se encomendou a meio do percurso mais brusco e mais rijo por pouco o não arremessou de escantilhão para a orla da brenha. Alonga ainda um olhar lá para trás, para onde ficou a picada. Estranha coisa! Não tornara a trilhá-la nunca mais, nem a temível vereda nem a mata traiçoeira, devia dar-lhe um enorme alívio. Pois causa-lhe… um travo amargo de saudade.
Saudade do pedaço de vida que ali ficou”
.

Foi breve a viagem de Gadamael a Cacine, ficou surpreendido de aqui encontrar laranjeiras e tangerinas, observa que Cacine é menos sacrificada que Guileje ou Gadamael. A sua atenção converge agora para o soldado de Djambói e sua mulher Igétu, o soldado gasta o tempo e o parco pré, algo fascina Martins quando vê esta mulher jovem de rosto redondo e olhos sossegados, pacata e tímida, conversam muito. O comboio das lanchas, escoltado por navio-patrulha prossegue viagem, Igétu desperta-lhe a sensualidade, é assim o desenho que dela traça: “Está deitada sobre o lado esquerdo, com mão do mesmo lado sobre o queixo, o braço direto descaído para o ventre, as pernas levemente encolhidas, as pálpebras cerradas, os lábios entreabertos, as narinas ligeiramente dilatadas, a respiração suave. O rostinho arredondado, as orelhas feitas ao torno, a testa lisa, desfranzida, nem alta nem baixa, a mui ténue protuberância da nuca, tudo concorre admiravelmente para a feição regular da cabeça”.

O comboio de navios passa pelo Canal do Melo, ali perto é Cabedu, Cufar não é longe, temos ainda o Cumbijã e as suas duas alongadas curvas, estão já na aldeia Cantone, 3 km à frente espera-os Cufar, no meio Mato Farroba, área sossegada. O Martins lá vai para o posto de rádio. Regista dois acidentes mortais no Pel Caç Nat 51, chega-se ao Natal e depois ao Ano Novo. Espraia-se nas descrições: “Assim como Cacine estende um braço até Gadamael, aqui o Cumbijã alonga um braço para Cufar. Braço ou afluente, chamam-lhe rio, o rio Manterunga. Navegam-no na maré cheia barcaças que abicam num modesto cais, tão modesto quanto o rio. A maré baixa, encalham no lodo, até que a cheia as ponha de novo a flutuar”. A água que escasseava em Guileje superabunda em Cufar, fala dos patrulhamentos, neles se integra, tudo é pretexto para falar dos rios ou ramais, dos himalaias de lama, ele teme perder o rádio no meio de tanto chapinhar no áspero tarrafo. Pega-se com um furriel, deita umas palavras desabridas, apanha como castigo sete noites seguidas, na trincheira, em Mato Farroba. Vai ao médico a Catió, apraz-lhe a limpeza e o asseio das ruas, o muito arvoredo que as sobreia e ornamenta, acha-la muito limpa a agradável para viver.

Regressa a Cufar, chegámos à Páscoa, há um doce reencontro com Igétu, esta a de Guileje, não aquela jovem mulher que o marido a ignora e que provoca uma certa polvorosa no Martins. Ainda aparece outra jovem na vida do primeiro cabo das Transmissões, Tupe de seu nome, por estas e por outras o Martins medita se não devia ficar ali, talvez o leitor o tome por delírio, ou sonho ou desvario.

Aquela comissão que parecia não ter fim prossegue com patrulhamentos, vigilâncias e emboscadas, anuncia-se a partida, Martins sabe que é grande a mágoa de se apartar de Tupe e de Igétu, regressa a Catió, ainda encontra gente do seu tempo de Guileje. Estamos agora em julho de 1970, chove a cântaros, os amigos vêem-no partir num Dakota. “Sentado num duro banco, o Martins desoprime o peito com um fundo suspiro. E com as mãos sobre os joelhos e os olhos fechados, a Deus lhe agradece ir vivo e ileso; reza pelos que não tiveram a mesma sorte. Em Bissau, se houver tempo, há de tornar ao cemitério, em visita às campas dos que lá ficaram abandonados”.

Aqui se põe termo às memórias de José Maria Martins da Costa, parece-me esclarecida a invulgaridade do que ele tinha para contar, apoiando-se na literatura clássica portuguesa e na greco-latina, nada se leu de parecido, e é bom que assim seja, estar-se a caminho dos 80 anos e entregar memórias de que ninguém podia suspeitar com uso de tanto português vernáculo para quem estacionou num dos mais temíveis palcos da guerra da Guiné.


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > A igreja de Catió. Fotos: © João Sacôto (2019)
Lisboa > Museu Militar > O foguetão 122 mm ou a arma especial Grad (na terminologia do PAIGC). Era uma arma de artilharia, de bater zona e não de tiro de precisão, com alcance máximo de 11.700 metros para 40º de elevação. Segundo um relatório do PAIGC a distância maior a que se efectuou tiro, teria sido contra Bolama, em 4 de Novembro de 1969, a 9800 metros. O foguete dispunha de um perno (assinalado a vermelho) que, percorrendo o entalhe em espiral existente no tubo, imprimia uma rotação de baixa velocidade a fim de estabilizar a vôo. As alhetas só se abriam depois do foguete sair do tubo.
Foto (e legenda): © Nuno Rubim (2007). Todos os direitos reservados.
Região de Tombali > Cufar > > Tabanca > 1973 > Aspeto parcial. Fotos: © Luís Mourato Oliveira (2016)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23139: Notas de leitura (1434): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (3) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Anónimo disse...

Boa tarde
Gostaria de adquirir o livro, agradecia informação. Obrigado.
Albertino Ferreira

Valdemar Silva disse...

Morteiro 120 ou lança foguetes 122 ??
Então, devia ter sido um parecido com este, alimentado por uma bateria de automóvel, que em Abril/1970 lançou os foguetes 122 sobre Nova Lamego.

Valdemar Queiroz

Fernando Gouveia disse...

"Querido" camarada, seria bom que corrigisses a legenda do "morteiro 120" pois, os novecentos camaradas do blogue sabem bem o que é um morteiro 120 mas quem não esteve na guerra não saberá e portanto será de fazer esse esclarecimento.
Abraço
Fernando Gouveia

Manuel PEREDO disse...

Claro que não é um morteiro 120,mas sim um lança foguetes .O primeiro ou talvez o único a ser capturado foi obra da minha companhia a CCP122.Actualmente está em exposição no museu dos páras em Tancos.

Fernando Ribeiro disse...

A legenda da fotografia foi corrigida, felizmente, pois morteiro é coisa que aquilo não é de certeza absoluta, mas, para dizer com toda a sinceridade, não fiquei satisfeito. Diz a nova legenda: «O foguete dispunha de um perno (assinalado a vermelho) (...)». Pergunto eu:

Qual foguete? Qual perno? Qual vermelho?

Ou eu estou a ficar cada vez mais pitosga (e é verdade), ou a imagem publicada é apenas um pormenor de uma fotografia mais ampla, em que se via o tal foguete com o tal perno assinalado com o tal vermelho.