domingo, 16 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2108: Documentos (3): A Política da Guiné Melhor: os reordenamentos das populações (2) (A. Marques Lopes / António Pimentel)






Conjunto habitacional de Nhabijões > 1970 > O furriel miliciano Henriques, da CCAÇ 12 (fundador e editor deste bloge) junto a um dos locais de culto dos irãs (espíritos da floresta). A população era maioritariamente balanta, animista. Era conhecida a sua colaboração com o PAIGG, sobretudo com as populações e os guerrilheiros de Madina/Belel, no limite do Cuor, a Noroeste de Missirá. O reordemanento desta população, considerada até então sob duplo controlo e pouco colaborante com (e senão mesmo hostil a) as NT, iniciou-se em 1969, sob a iniciatica do Comando e CCS do BCAÇ 2852 (1970/72), tendo sido continuada pelo BART 2852 (1970/72).




Na foto, vê-se o Fur Mil Henriques num jipe, no destacamento que defendia Nhabijões. Ao fundo, descortinam-se as casas do reordenamento (a que ele na época um verdadeiro etnocídio...). Em 13 de Janeiro de 1971, duas minas anticarro recebentaram à saída do reordenamento, na estrada Nhabijões-Bambadinca (LG).


Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.





Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Reordenamento de Nhabijões> Trocando a espada pelo arado, ou melhor, a G3 pela pá e pela enxada... Pessoal da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) nos trabalhos do reordenamento de Nhabijões, um conjunto de aldeias sob duplo controlo, junto ao Geba Estreito, pertencente ao posto administrativo de Bambadinca, sede do Sector L1, Zona Leste.
Foto de finais de 1970 gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-alf. mil. sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).


Foto: © Luís Moreira (2005). Direitos reservados.


Continuação da publicação do documento Os reordenamentos no desenvolvimento sócio-económico das populações. Província da Guiné, Bissau: Comando-Chefe das Forças Armadas da Guine. Quartel General. Repartição AC/AP. s/d. (2).


Fixação do texto: Virgínio Briote, co-editor


LOCALIZAÇÃO HISTÓRICA E DEMOGRÁFICA (p.4)

1. É difícil fazer uma exacta localização geográfica das diferentes etnias da Guiné, atendendo principalmente ao factor emigração. Efectivamente, mercê de muitas e várias circunstâncias históricas e políticas, os povos guineenses constituíram muitas, e algumas delas significativas, correntes migratórias que partindo do seu chão originário se estabeleceram um pouco por todo o território, por tal forma que se pode dizer que vivem hoje, indistintamente, lado a lado, etnias animistas e islamizados, muitas vezes interpenetrando-se e constituindo, como já foi notado anteriormente, subgrupos híbridos. Uma das circunstâncias mais importantes para o surto migratório foi sem dúvida a eclosão do terrorismo, obrigando povoações inteiras a desalojarem-se e a imigrarem para zonas sob a protecção das Nossas Tropas.


No mapa 1, apresenta-se a localização das principais etnias nos seus chãos de origem.

2. A localização histórica dos povos da Guiné, dada a infinidade de etnias existentes, torna-se difícil. Em apontamentos desta natureza, não cabem pormenores que se destinariam a um estudo aprofundado. Bastará, talvez, dizer que a maioria das etnias aparece como fusão de várias outras que foram as originárias e são referidas largamente pelos navegadores e descobridores nas suas crónicas. Nelas se dá conta de existirem no século XVI Balantas e Papéis na ilha de Bissau e Buranos (nome primitivo dos Papéis) e Felupes na zona do Cacheu. Estas três etnias são das mais antigas, sendo os Felupes considerados os mais antigos dos povos originários.


Alguns outros povos existiam já no actual território da Guiné Portuguesa – colónias de Mandingas e Fulas – aquando da sua descoberta. No entanto, o contacto com eles só se verificou mais tarde, dado o tipo de colonização portuguesa, feita através de feitorias junto aos rios. Assim, o contacto fez-se primeiro com os habitantes da faixa litoral e, mais raramente com povos que vinham transaccionar com os portugueses, de pontos mais afastados do interior.
Já a partir do século XV se inicia a invasão de povos provenientes de vários países do continente Africano. No entanto, só mais tarde há a grande invasão vinda especialmente do Futa-Jalon e territórios limítrofes (Labé, Boé Francês, Futa-Tere, Futa-Quebo, etc.), da Bandú (território situado entre o Alto Senegal e o Alto Gâmbia), Sudão, etc. Fulas e Mandingas instalam-se na zona do Gabú, trazidos por lutas intestinas, pela necessidade de novas almas para a difusão do Alcorão, pelo desejo de novas pastagens para o seu gado e novas lavras. Travaram lutas com os povos aí estabelecidos (os Beafadas principalmente que se viram subjugados pelos Fulas-Forros em Jaladú que mais tarde se tornou na Forro-ia ou Forreá) e conquistaram posições.
[… ilegível].



Mapa 1- Os chãos dos Povos da Guiné


3. Povo nómada, os Fulas emigraram do Gabú para quase todo o território, especialmente o Leste, onde se encontra ainda hoje em força. Mas, de uma maneira geral, como já foi dito, todas as etnias registam movimentos migratórios. Apontaremos dois ou três exemplos:


A região de Mansoa é chão Balanta. No entanto encontramos aí estabelecidas a par da maioria Balanta, Mandingas e Fulas.



  • Na zona de Farim, onde existiam primitivamente os Oincas (ou do Oio, subgrupo Mandinga), encontramos Fulas e Balantas. Aqui, notamos como curiosidade, Balantas e Mandingas permanecem em quase constante conflito, por causa dos roubos que os primeiros praticam por costume tradicional e é condenado pelo Alcorão. Alguns Balantas foram absorvidos pelos islamizados constituindo os Balantas-Mané, que também encontramos em Mansoa.

  • No actual concelho de Bafatá, habitado primeiramente por Beafadas, Mandingas e Fulas, encontram-se numerosas colónias de Manjacos, Papeis, Saracolés e Balantas, estes em maior percentagem.


No mapa 2, podem ver-se, como curiosidade, as primeiras migrações de Mancanhas (ou Brames), Manjacos e Balantas.




FUNÇÕES CIVIS EXERCIDAS POR MILITARES (p 6/7)




1. Estando a Guiné sob a pressão de um estado de subversão que visa a conquista das populações por vários meios, entre os quais a luta armada; existindo um Quadro Administrativo com graves deficiências quantitativas e qualitativas e possuidor da falta de meios para realizar a manobra de contra-subversão em tempo útil e ainda por razões de controle e segurança, não é possível à Administração Civil encarar sózinha, de momento, o esforço que se pretende realizar.


Assim, porque possuidoras de vários meios, humanos, técnicos e de defesa, as Forças Armadas estão aptas a colaborar, com carácter temporário, com as estruturas administrativas na solução dos problemas sócio-económicos. Porque, também, os problemas de desenvolvimento social e económico constituem a manobra da contra-subversão que é preciso fazer rapidamente e pertence à missão das Forças Armadas.


As F.A. são, pois, chamadas a participar temporariamente em funções que seriam da competência civil, se os quadros administrativos estivessem em condições de as desempenhar, e que lhes serão totalmente confiadas quando as condições o permitam. São funções de colaboração e reforço da orgânica...[ilegível].


2. (...) Os civis do Q. A. pensam e actuam de maneira diferente. E a diferença reside em dois pontos distintos: a estagnação e carências várias do próprio Q. A. e no diferente carácter de obrigatoriedade de uns e outros. As Forças Armadas são uma organização profunadmente hierarquizada, com escalões de comando definidos, com leis e regulamentos mais rígidos e pormenorizados, prevalecendo um forte espírito de disciplina. Arreigados a conceitos burocráticos ultra passados e morosos por natureza , regulados por leis mais vastas, com um carácter de disciplina menos acentuado e relativo momento a leis de carácter mais geral, os civis do Q. A. têm um diferente comportamento face a situações que exigem a resolução adequada em tempo próprio. A base de toda a actuação entre militares e civis terá de basear-se na compreensão e na colaboração, já que ambos servem o objectivo comum.


3. O tratamento para com as populações terá de ser diferente também. Não se podem obrigar as populações a tomar determinadas posições ou aceitar determinadas soluções pela força ou coacção, excepto quando o determine o interesse colectivo, o bem comunitário. Interessa muito mais usar argumentos válidos, convicentes e visíveis para os levar a optar melhor. No caso concreto das populações com quem vamos trabalhar, há que contar com os seguintes factores de oposição às nossas soluções:



  • São populações menos evoluídas

  • Têm sofrido pressões físicas e psicológicas dos agentes subversivos

  • São muito arreigados aos seus costumes étnicos e às tradições e práticas religiosas

  • São diferentes entre si, na sua evolução natural

  • Duvidam por sistema, devido à estagnação sócio-económica anterior à guerra, às promessas que nunca foram cumpridas antes nessa época e à propaganda inimiga orientada para esse passado.


Sintetizando, é preciso entender os civis do Q. A. e as populações como tal e como tal actuar nas relações com eles.




IMPORTÂNCIA SOCIAL E ECONÓMICA DOS REORDENAMENTOS (p. 6/9)


1. A ideia de se fazer o reordenamento das populações em aldeamentos, tem três razões de ser fundamentais



  1. A defesa e controle

  2. desenvolvimento social

  3. O desenvolvimento económico


Deixando de parte as questões da defesa, vamo-nos debruçar mais [...ilegível]




Mapa 2 - Primeiras migrações


2. A constituição geográfica da Guiné - sulcada de muitos rios, plana, densamente urbanizada-, a exploração agrícola fazendo-se especialmente junto das bolanhas e as diferenças étnicas que individualizam os agregados, conduziram à dispersão por inúmeros núcleos populacionais. Com uma população dispersa em áreas muito vastas, torna-se difícil se não impossível, tomar medidas de desenvolvimento que abranjam a totalidade ou, mesmo a maioria. O esforço económico e humano seria insustentável de momento e, especialmente moroso.


3. O que se pretende, pois, com os reordenamentos? Agrupar as populções de uma determinada zona num só ou em vários agragados populacionais significativos, possibilitando:



  1. A construção de casas com melhores condições de higiene e construídas com materiais mais resistentes aos factores climáticos e aos incêndios.

  2. A construção de condições de protecção social que abranjam um maior número de pessoas (escolas, postos sanitários, fontanários, assistência médica).

  3. A construção de condições de carácter económico que englobem uma população maior (construção de celeiros colectivos, garantia de mercados para venda da produção agrícola, condições técnicas para maior produtividade e outrs possíveis a desenvolver futuramente).

  4. O mais rápido desenvolvimento comunitário considerando um melhor rendimento no aproveitamento dos meios e quadros técnicos empenhados no esforço do desenvolvimento.


4. Pode parecer sem discussão, a priori, que o reordenamento das populações oferecendo tantas vantagens para o seu desenvolvimento, é sempre bem aceite. Efectivamente, nem sempre isto acontece e por várias razões. Vamos apontar esquematicamente, algumas das principais:

  • Motivações étnicas

  • Questões havidas entre grupos de uma mesmo etnia que os opõem e obstam a uma vida comunitária

  • Receio de perda de autoridade dos Chefes tradicionais

  • Proibição dos Guardas do Irã por motivos de interesse pessoal

  • Desejo de não mudar de chão

  • Receio de que faltem, no novo aglomerado, os meios suficientes de subsistência

  • Desejo de não se separarem dos seus haveres

  • Outras que só localmente poderão ser detectadas


5. Não devendo em princípio existir um carácter de obrigatoriedade quanto à deslocação das populações das suas tabancas para um aldeamento, a não ser que o interesse comunitário superiormente o determine, há que empregar meios persuasivos quando se encontre alguma resistência. Para se criar ...[ilegível]


Esquematicamente vemos, assim:


Antes da construção

  • Auscultação das populações (indirecta, directa)

  • Auscultação e elucidação do Chefe da Tabanca

  • Auscultação e elucidação do Guarda de "Irã"

  • Auscultação e elucidação das autoridades religiosas islâmicas


Durante a construção

  • Garantir a autoridade constituída

  • Garantir, tanto quanto possível, os interesses da localização dos aglomerados correspondentes às antigas tabancas, dentro do plano urbanístico

  • Respeitar os usos e costumes das populações

  • Colaborar no transporte de todos os haveres das populações deslocadas

  • Interessar as populações na construção das casas, escolas, postos sanitários, etc., permitindo e desenvolvendo o sentimento de posse.


6. A forma mais prática de se assegurar o deslocamento das populações para os reordenamentos é criar nelas a necessiade desse reordenamento. Para isso é necessário elucidá-las dos benefícios que vão auferir e garantir os seus desejos quanto a aspectos respeitantes aos seus usos e costumes. Será de toda a conveniência o conhecimento das suas motivações religiosas e étnicas. Nos quadros anteriores já foi feito um esquema suficientemente desenvolvido. Em novo quadro, indicar-se-ão as principais motivações a explorar para um útil e efectivo trabalho de consciencialização das populações.


1.BENEFíCIOS SOCIAIS
  • melhores casas

  • escolas

  • postos de socorros

  • assistência médica

  • água


2. BENEFíCIOS ECONÓMICOS
  • melhores lavras

  • celeiros colectivos

  • mercado para escoamento da produção

  • lojas


ISLAMIZADOS


Fulas
  • construção de mesquitas

  • difundir a religião

  • os régulos governarão melhor com toda a população junta

  • os fulas têm de voltar a ser senhores dos seu "chão" que o IN quer roubar

  • os antepassados foram valentes


Mandingas
  • construção de mesquitas

  • difundir a religião

  • os chefes poderão dirigir melhor

  • as novas tabancas poderão ter lojas e fazerem comércio para terem riqueza

  • os antigos foram valentes e têm de os saber imitar


ANIMISTAS


Balantas

  • terão maior protecção dos Irãs

  • o Balanta terá a liberdade na tabanca e no mato, que o IN impede

  • o Balanta vai deixar de ser escravo do IN

  • os Balantas juntos têm força para exterminar o IN

  • haverá sempre muita fartura


Manjacos

  • terão maior protecção dos Irãs

  • juntos terão muita força

  • impedirão o roubo de mulheres quando estiverem juntos

  • poderão fazer comércio

  • cada família poderá ter os seu Irã


Brames

  • terão maior protecção dos Irãs

  • o régulo governará melhor

  • vão ter mais vacas para estrumar as terras e para o choro

  • os Brames não terão necessidade de emigrar porque nada lhes faltará

  • o IN quer escravizá-los e não o poderá fazer estando todos juntos.


_________


Notas do co-ditor vb:


(1) Vd. posts de:


1 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1558: Inesperada visita a Luís Graça, em Nhabijões, na noite de 3 de Fevereiro de 1970 (Beja Santos)


28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCIX: Luís Moreira, de alferes sapador a professor de matemática (Luís Graça)


23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)


22 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCII: O reordenamento de Nhabijões (1969/70) (Luís Moreira)


22 de Setembro de 2005 > (2) Vd. post de 12 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2100: A Política da Guiné Melhor: os reordenamentos das populações (1) (A. Marques Lopes / António Pimentel)


Reproduzo aqui o comentário de Abreu dos Santos:

  • Spínola não inventou os Reordamentos, antes reaplicou na Guiné o que anteriormente já o major Hélio Felgas ali havia posto em prática (cerca de 3/4 anos antes);

  • a guerra do Vietname, pelos vistos, continua a ser – erradamente – termo de comparação para quem esteve na Guiné;

  • mais remotamente, foram os romanos quem iniciou por regiões várias a táctica militar da colonização por recurso ao que, modernamente, se passou a chamar aldeamentos estratégicos; e em meados do séc. XIX foi o general francês Bigeaud quem, na Argélia, reformulou na prática tal conceito, retomado em 1955-59 naquele mesmo território através do Plano Challe, com objectivo de conter o alastramento de actos terroristas por parte da FLN;

  • Em Portugal, a responsabilidade pelo estabelecimento de doutrina castrense nesse sentido coube ao então ministro do Exército, na sequência do 1º relatório da missão militar que pouco antes havia concluído em Arzew (na Argélia), um estágio de contra-insurreição. Daí, o CIOE; e, também daí, a origem da instrução ministrada a tropas de Operações Especiais e aos Comandos, como aliás muito bem sabe o editor Briote, ao qual peço que releve quaisquer imprecisões minhas nesta breve resenha, tanto mais escrita directamente para esta janela...


Comentário do co-editor vb: Grato ao Abreu dos Santos, pelo oportuno comentário, que contribui para um melhor conhecimento sobre o reagrupamento das populações.

  • Entre os anos 1965/67, os reordenamentos da população não eram, em geral, muito discutidos no terreno, embora já se vissem esforços de alguns dos nossos militares nesse sentido, e foi até a um ou outro que pela primeira vez ouviu falar das aldeias estratégicas no Vietname.

  • Parece ser aceite que foi com Spínola, como Governador-Geral, que o plano foi implementado e estendido a praticamente todo o território.

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