sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20275: Notas de leitura (1229): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (29) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
O BCAV 490 entrou num torvelinho de operações e ocupa território, dá segurança às populações, faz renascer a vida. É o que Armor Pires Mota nos conta na sua passagem para Jumbembem. Há terríveis acidentes, virou-se um bote de borracha a caminho da península de Sambuiá, um pelotão de morteiros perdeu oito praças. É nisto que o acompanhante do bardo deu um salto no plinto da memória e foi até Guidage, a Guidage do cerco onde Salgueiro Maia nos deixou um relato dos mais pungentes que aquela guerra ofereceu. A história da unidade também refere uma companhia que faz parte da quadrícula, a CCAÇ 675, a companhia do Capitão do Quadrado, ele está em Binta, chega e vai metodicamente arrumando a casa, fez-se respeitar pela guerrilha, deu proteção a quem dela precisava, abriu itinerários até então intransitáveis.
Vamos contar.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (29)

Beja Santos

“Na cabeça foi atingido
este amigo e companheiro
João Félix na flor da idade
foi morto por um bandoleiro.

Era um homem operacional
que de nada tinha medo
e no meio daquele arvoredo
teve este golpe fatal.
Foi evacuado para o hospital
num transporte que foi pedido;
coitado, deu muito gemido,
quando o seu sangue perdia,
pois às 5 horas do dia,
na cabeça foi atingido.

Eram muitas as rajadas
para cima da nossa gente.
Ele levantou-se de repente,
jogando algumas granadas,
quando as tinha já acabadas
pediu mais granadas de morteiro,
e houve então um bandoleiro
que um tiro no rapaz deu
e logo nessa noite morreu
este amigo e companheiro.

Pela nossa Pátria querida
este soldado lutou,
muito sangue derramou
dando a sua própria vida.
Tanta fera enraivecida,
que só tem ruindade,
foi com grande barbaridade
que este crime praticaram.
De Samora Correia mataram
João Félix na flor da idade.

As suas famílias gritavam
quando dele se despediram.
Foi a última vez que o viram,
parecia que adivinhavam,
mas maiores gritos lançavam
ao chegar-lhes junto o carteiro.
Ele acalmou-os primeiro
e leu-lhes a má comunicação:
seu filho do coração
foi morto por um bandoleiro.”

********************

A história da unidade refere efetivos, a disposição e quadrícula e as operações. Em 12 de julho de 1964 houve uma ação nas matas de Ponta Caeiro, houve fogo intenso, do lado do efetivo comandado pelo Capitão Rui Cidrais houve vários feridos evacuados e ligeiros. Em 20 de agosto houve uma operação realizada a Sanjalo, incendiaram-se casas de mato, temos aqui uma referência à CCAÇ 675, a do Capitão do Quadrado, a que mais adiante se fará referência, o relatório é assinado pelo comandante, Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, ele esclarece que na área do objetivo foram encontrados terrenos recentemente cultivados. Em 24 de setembro temos uma operação realizada à região de Farincó-Mandinga, houvera referência a um acampamento de guerrilheiros com cerca de 16 casas de mato, intervieram pelotões da CCAV 487 e 488. O relatório é também assinado pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro que em dado passo escreve o seguinte:  
“A marcha para a zona do objectivo decorreu conforme o previsto. Em consequência do perfeito conhecimento que o guia tinha do terreno e das notícias referentes à localização do acampamento inimigo, a companhia conseguiu chegar a trinta metros dele sem ser detectada. O inimigo surpreendido reagiu pelo fogo, só não tendo êxito devido à acção das 2 secções da vanguarda do dispositivo, que carregaram sobre o acampamento, obrigando o inimigo a tentar escapar desorientado, abandonando material de guerra”.

No início de 1965 decorrerá a Operação Panóplia, ficará associada a um grave acidente de que falecerão oito praças. O objetivo era a região de Sambuiá. Veja-se este aspeto curioso respigado do relatório quanto às casas de mato localizadas em Simbor:
“Estão junto à margem do rio Sambuiá entre a ponte e a povoação. Neste rio estão estendidas cordas que permitem ao inimigo agarrar-se a elas mantendo-se submerso, com parte da cara fora de água para respirar, quando a região é sobrevoada pela aviação; as mulheres e as crianças escondem-se no tarrafo ou nos cemitérios dos Mandingas de Sambuiá, ocultando-se nas sepulturas. O inimigo encontra-se em força nesta região e consta que tem oito metralhadoras com suporte antiaéreo. Em Talicó, o inimigo monta diariamente um serviço de vigilância com um serviço de 37 indivíduos”.

O relatório descreve os planos estabelecidos para a ação, como a mesma se desenrolou, chegou-se a Sambuiá, onde a CCAÇ 675 entrou em força. Verificou-se entretanto o acidente sofrido pelo Pelotão de Morteiros 980[1], que era constituído por 33 homens. Entrara numa lancha, o transporte seguiu pelo rio Cacheu.
Escreve-se o seguinte no relatório do acidente que ocorreu em 5 de janeiro de 1965:  
“Como fora planeado, o navio passou pelo local de desembarque, local esse que fora reconhecido na véspera, até um ponto antes de Bigene. Aí o navio inverteu a marcha e, como também fora planeado, foi então que o pelotão desembarcou para o bote de borracha no qual se faria o desembarque na península de Sambuiá. Embarcaram para o barco de borracha 25 homens, entre os quais o seu comandante, bem como o material e armamento. Como seria mais seguro não embarcarem todos os homens nesse barco, que tem uma lotação aproximada de 30 homens, o comandante do navio pôs à nossa disposição um barco de borracha pertencente à Marinha, no qual embarcaram simultaneamente os restantes homens do Pelotão de Morteiros. Os dois barcos seriam rebocados pela lancha, de maneira a estarem permanentemente encobertos das vistas de possíveis sentinelas existentes na península onde se efectuaria o desembarque. Antes do navio se pôr em marcha, foi passado um cabo por baixo do barco, onde eram transportados os 25 homens, amarrado a um ferro existente no fundo do mesmo. O navio recomeçou a marcha e, depois de ter navegado durante alguns minutos, o cabo que fora passado para rebocar o barco maior rebentou, pelo que o navio se afastou um pouco. Foi posto o motor do barco a funcionar e a recolagem fez-se sem qualquer incidente ou dificuldade. Foi então que se passou um cabo mais forte para dentro do barco de borracha, ficando os próprios homens que o tripulavam a agarrar nesse cabo, sendo nessa altura avisado pelo comandante da lancha, e depois por mim, que em caso de emergência o cabo devia ser largado imediatamente. Depois de se navegar alguns metros, notei que o barco de borracha deixava entrar água pela proa. Foi nesse momento que à ré do barco de borracha alguns homens se levantaram, talvez assustados pela água que saltava para dentro do barco. Mandei-os sentar imediatamente, mas o barco já se encontrava desequilibrado de um dos lados e, sem nos dar tempo para qualquer reacção, afundou-se rapidamente”.

Comunicado da imprensa de 1965
O Alferes José Pedro Cruz recomendava no seu relatório que seria de evitar nas operações em rios homens que não soubessem nadar e que nunca se devia rebocar um barco com o cabo de reboque passado por cima do barco rebocado e agarrado pelos próprios tripulantes do mesmo barco.

Inadvertidamente, vem-nos a recordação não do acidente desta gravidade mas uma situação de calamidade como aquela que se viveu no cerco de Guidage. Como se sabe, deve-se ao Capitão Salgueiro Maia um depoimento sem paralelo sobre este cerco e a sua chegada a Guidage, quadro de tragédia mais pungente não pode haver.

Salgueiro Maia
Antes porém ele conta-nos na sua “Crónica dos feitos por Guidage” um ataque com um pelotão da sua companhia que estava num destacamento.
Salgueiro Maia parte em seu auxílio:
“Para quem não conheceu a mata da Guiné, é difícil explicar como se consegue ir a corta-mato com viaturas tendo de encontrar passagem por entre as árvores, os arbustos, o capim alto, as ramagens com picos e, ao mesmo tempo, seguir na direcção certa, apesar de tentarmos ir o mais depressa possível.
Depois de rotos pela vegetação e cansados de correr ao lado das viaturas, chegámos ao local de combate. Ainda pairava no ar o cheiro adocicado das explosões; os homens tinham ar alucinado, de náufrago que vê chegar a salvação, mas, em lugar de mostrarem a sua alegria, estavam ainda na fase de não saber se era verdade ou não. Mando montar segurança à volta da zona e pergunto pelos feridos ao primeiro homem que encontro – tem um ar de miúdo grande a quem enfiaram uma farda muito maior do que ele; parece de cera, olha-me sem me ver e aponta com o braço. Sigo na direcção apontada e depressa vejo uma nuvem de mosquitos e moscas: já sei que à minha frente tenho sangue fresco. Debaixo de uma árvore, estão estendidos cinco homens; o capim está todo pisado; alguns dos homens estão em cima de panos de tenda; à volta estão várias compressas brancas empastadas de vermelho; o chão parece o de um matadouro, há sangue coalhado por todo o lado; a maioria do sangue vem de um dos homens que já está cheio de moscas. Dirijo-me para ele – está cor de cera e praticamente nu. Olha-me como que em prece; ninguém geme, o silêncio é total. Trago comigo o furriel-enfermeiro e um cabo-maqueiro. Mando-os avançar, assim como as macas. Dirijo-me ao ferido mais grave – o ferimento provém-lhe da perna. Tem em cima dela várias compressas empastadas de sangue. Tiro as compressas e vejo que o homem não tem garrote. Pergunto estupefacto porque é que não lhe fizeram um. Alguém me responde que o enfermeiro está ferido. 
Começo a sentir raiva".

Como o dia estava a tombar, e como era impossível recorrer a uma evacuação por helicóptero, depuseram-se os feridos nas caixas dos Unimog, entretanto o PAIGC volta a atacar com foguetões 122 mm. O ferido da perna morre.
E Salgueiro Maia escreve: “Guardo dele uns olhos assustados a brilhar numa pele branca e seca, a ficar vazia de vida porque em sessenta homens ninguém sabia o mais elementar em primeiros-socorros: fazer um garrote”. O capitão por ali anda a contemplar os mortos de boca e olhos abertos, reage, tal como vai escrever: “Mecanicamente, tiro os atacadores das botas dos mortos, ato-lhes os queixos, ponho-lhes as mãos em cruz, os pés juntos. Com água do cantil molho-lhes os olhos e fecho-lhos. Olho para a minha obra e também não entendo”.

O pesadelo maior vem depois. No dia 22 de maio de 1973, Salgueiro Maia recebe instruções para seguir para o Norte, o PAIGC desencadeara uma ofensiva em Guidage, um autêntico cerco, minara estradas, trouxera mísseis terra-ar, havia um verdadeiro campo de minas anticarro e antipessoal na estrada Guidage-Binta. O Comandante-Chefe, perante a gravidade da situação, reage com a Operação Ametista Real. No meio daquele pandemónio, Salgueiro Maia recebe ordens para seguir para Binta-Farim e seguir depois com uma companhia africana e uma companhia de atiradores, o objetivo era rasgar o cerco, chegar a Guidage. Deixou-nos uma descrição memorável, é uma peça espantosa, única, sobre os desastres da guerra, viaturas a acionar minas anticarro, feridos e mortos, a progressão da coluna a corta-mato, mais explosões e ao fim do dia entra-se em Guidage, assemelha-se a um panorama lunar, preside a irrealidade.
É tudo dantesco por excelência, o que parece absurdo deixa de o ser, nenhum outro relator da guerra da Guiné foi tão ao fundo da banalização do horror:
“A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente destruídos; como assistência sanitária, tínhamos um sargento-enfermeiro e alguns maqueiros. O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel. Esporadicamente, errava-se por lanços por entre os edifícios ou o que deles restava. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense, que ficou sem uma perna, uma farda n.º 3, que me permitiu lavar o camuflado e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da Madeira quase cheia no meio de tudo partido. Com isto, fiz uma pequena festa com 3 ou 4 homens, porque era perigoso juntar mais gente. Nesta altura pensei em, depois de regressar a Bissau, ir ao HM 241 saber quem era o alferes para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse peso na consciência.
Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da artilharia, onde houvera 4 mortos e 3 feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, cor castanha com 2 a 3 milímetros de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois de dar volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado que, sem esforço, ganhou um colchão e sem saber de onde ele tinha vindo”.

Não se atina como é que a memória nos faz passar de meados dos anos 60 para aquela catástrofe de 1973, mas fala-se de Binta, de Guidage, de Farim, de Sambuiá. Dera-se uma evolução fenomenal, em poucos anos, o equipamento do PAIGC suplantara o das forças portuguesas, modificara-se a condução da guerra de guerrilhas, numa mistura de guerra convencional e de ataque surpresa. Agradece-se à memória agir assim, temos muitas vezes o condão de nos fixarmos numa data e esquecer completamente que nenhuma análise pode prescindir da sequência cronológica: fomos todos protagonistas, mas em tempos diferentes, o que uns viram de uma maneira, mais adiante os outros acrescentaram novos pontos de vista.

(continua)
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Notas do editor:

[1] - Vd. poste de 8 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5077: Fichas de Unidades (5): História do Pelotão de Morteiros N.º 980 (José Martins)

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Último poste da série de 21 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20263: Notas de leitura (1228): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (2) (Mário Beja Santos)

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