Memórias de Gabu
Manel Pereira, um amigo
Numa destas tardes de outono onde o sol copiosamente brilhava, sendo que através dos vidros da janela admirava a sua enorme luminosidade, predispôs-me a reviver álbuns de fotos que a minha singela biblioteca justamente contém e lá fui dar com uma imagem que assinala um reencontro com um amigo de longa data: o Manel Pereira.
Os anos que o novel Cartão de Cidadão menciona, envia-nos irremediavelmente para as 69 risonhas primaveras, sendo, por isso, absolutamente normal admitir que o metro, outrora comprido, está agora cada vez mais curto.
Não importa chorar agora sobre leite derramado, o importante é entoar com enfâse o inabalável hino da nossa existência ao cimo deste imenso cosmos que dá pelo nome de terra. Ontem, fomos jovens dinâmicos que palmilhámos os mesmos terrenos de uma Guiné a contas com uma guerra que não dava tréguas, hoje, porém, somos rapazes crescidos, já aposentados, que vão paulatinamente erguendo bem alto a voz de comando que declara firmemente a integral condição de antigos combatentes.
O Manel é um rapaz que vive intensamente a sua condição afável como limiano de pura gema. Nasceu em Ponte de Lima e disso faz uma justíssima menção. Moço de uma benéfica cortesia, sempre disponível para dois dedos de conversa, reafirma convincentemente que foi furriel miliciano na CCAÇ 3547 e pertenceu ao grupo de combate designado como “Os Répteis de Contuboel”, uma subunidade que pertencia ao BCAÇ 3884 (1972/1974) na região de Bafatá.
O nosso camarada minhoto, nessa manhã em Monte Real, e em que o sol intenso dava as boas-vindas aos antigos combatentes de guerra de uma Guiné onde a luta quotidiana de então das NT encetava amiúde confrontos contra um IN que não dava folgas, lá me foi dissecando pormenores da sua presença no conflito.
Claro que o meu conhecimento pessoal com o Manel deveu-se a que ambos tivéssemos entrado para a Caixa de Previdência e Abono de Família dos Serviços Médico Sociais do Distrito de Lisboa no mesmo dia (25 de junho de 1975) e que partilhássemos de seguida a mesma secção. Depois separámo-nos e não mais soubemos um do outro.
Mas desse companheirismo próximo nasceu uma profunda amizade. Desses tempos do primeiro “ganha-pão”, ficou a certeza que jamais trocámos impressões sobre o nosso recém passado militar. Nunca abordámos o tema. Na altura a nossa afirmação passava por outros objetivos. Curtíamos a noite de Lisboa, de entre outras entretengas que nos preenchiam a vida.
Mas, a vida, sempre impulsionadora de uma ziguezagueada estrada onde se multiplicam fustigadas “minas antipessoais”, eis que em Monte Real reencontrei o Manel Pereira como membro da nossa Tabanca Grande e desde logo a temática foi puxada para lugares guineenses que ambos conhecemos. O almoço foi então digerido lado a lado e a temática da guerra na Guiné devidamente escalpelizada.
Lembro-me quando o Manel me falou da sua espontânea passagem por Madina Mandinga com o seu grupo de combate. Logo, o informei que essa companhia pertencia ao meu BART 6523, sendo que a conversa resvalou, desde logo, para o reavivar de nomes de camaradas que ambos conhecíamos.
Falámos, licitamente, sobre o capitão miliciano Zé Luís, comandante da Companhia de Madina. Ambos concordámos que era um homem de fino trato. Aliás, não havia muito tempo que me tinha encontrado com o Zé Luís num almoço em Fátima de "rangers", onde esteve também o alferes "ranger" António Barbosa, da 2ª Companhia, instalada em Cabuca, mas que esteve deslocado em Madina Mandinga a render o capitão Zé Luís num período de férias.
Presentemente a nossa conversa sobre o capitão Zé Luís esbarra para o campo da saudade. O Zé Luís já não está entre nós. Morreu! Finou-se no dia 30 de maio de 2019. O seu nome completo era José Luís Borges Rodrigues e fora capitão miliciano de Infantaria.
Tive oportunidade de com ele conviver. Primeiro em Nova Lamego, depois numa ida a Madina em finais da nossa estadia em Gabu. O 25 de Abril trouxe liberdade de movimento às NT e, obviamente, ao PAIGC. A guerra, e o seu ímpeto guerreiro, chegou ao fim. Os movimentos quer no mato quer na picada não traziam problemas de maior.
Neste contexto, num belo um sábado do mês de julho, creio, lá partiu um grupo da CCS a caminho de Madina Mandinga em dois Unimog sendo o objetivo único um jogo de futebol onde se entrelaçava a amizade de camaradas atirados para sítios diferentes.
O jogo realizou-se, a malta conviveu e o pessoal foi recebido pelos camaradas de Madina com pompa e circunstância. O capitão Zé Luís desfez-se em cortesias e o apito final ditou algumas bebedeiras de jovens que se entregavam então ao simples prazer da vida.
Manel, tempos que já lá vão. Vamos, pois, agradecer o facto de nós ainda por cá permanecermos neste globo terrestre, finalizando o texto com um descansa em paz ao capitão Zé Luís.
Capitão Zé Luís.
Eu, Manel Pereira e um outro camarada, no Encontro anual do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné em Monte Real
Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da
CCS do BART 6523
Mini-guião de
colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
2 comentários:
Meu caro Zé Saúde (José Saúde), camarada e amigo. Como me sinto lisonjeado com as tuas palavras. Na verdade, estivemos tão perto e (Nova Lamego e Madina Mandinga) e ao mesmo tempo e nunca nos encontramos. Depois, já na vida civil, trabalhamos na mesma secção, tivemos cumplicidades múltiplas e viemos também a residir no mesmo prédio. Foste ao meu casamento, os meus filhos tiveram, durante algum tempo, por "ama" uma tia tua e nesse tempo NUNCA abordamos e até julgo desconhecermos a nossa situação de combatentes e percurso nas "fileiras". Foram precisos anos, muitos anos, para nos "reencontramos"!...
Lido o teu texto, aqui vão algumas achegas: A minha Unidade Operacional pertencia ao B. Caç.3884 sediado em Bafatá e tinha por perímetro de acção o sector de Contuboel. Era a C.Caç.3547 , conhecida por "Os Répteis de Contuboel" que devido à sua localização e não havendo "guerra" funcionava como Centro de Formação de Milícias. Assim os seus Grupos de Combate (Pelotões) andavam sempre destacados em reforço de outras unidades. Foi deste modo que a C.Caç.3547 fez nos seus quase 28 meses de Guiné um "périplo turístico" por Bafatá, Bambadinca Tabanca, Sonaco, Sare Bacar, Nova Lamego, Madina Mandinga, Galomaro e Dulombi. Outra curiosidade que também desconheces, talvez, o teu ex-CMD de Batalhao Ten-Coronel Castelo e Silva, veio a ser meu CMD e de quem sou (continuo) amigo. Vive actualmente em Valpaços. Como vez, muitas coincidências! Esqueci de referir que a partir do 3º mês de Guiné e enquanto operacional, fui sempre Cmd de Pelotão e em funções administrativas Delegado de Batalhão. Um abraço. Manuel OLIVEIRA PEREIRA, Fur. Milº, B.CAÇ.3884/C.CAÇ.3547
Contuboel, um caso interessante na guerra da Guiné.
De Fevereiro a Maio de 1969 estive em Contuboel e não houve o mínimo indício de guerra a não ser ruídos noturnos de outras tabancas a 'embrulhar' e também não tive conhecimento de anteriormente ter havido.
Depois, no resto do ano de 1969 e até Dezembro de 1970, quer em Nova Lamego ou em Paunca, nunca tivemos conhecimento de nenhum ataque a Contuboel.
Agora venho a saber que até 1974, ou seja, até ao final da guerra, Contuboel nunca foi atacada.
Valdemar Queiroz
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