sexta-feira, 18 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23089: Notas de leitura (1429): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Nestas suas intervenções num Seminário de Quadros que fez história na justa medida em que o líder fundador do PAIGC passou minuciosamente em revista os princípios do Partido, os tipos de resistência que o Partido enfrentava e as perspetivas da luta nos próximos tempos, fica bem claro que Amílcar Cabral era um marxista heterodoxo, tinha ideias assentes sobre a economia de uma Guiné independente, reprovava todo e qualquer comportamento que lesasse a harmonia possível entre as populações sob controlo do PAIGC e as suas unidades militares. Ficamos igualmente a saber que Amílcar Cabral era a favor da construção de uma cultura embebida na própria luta da libertação, é nesta intervenção que ele se mostra acérrimo defensor da língua portuguesa como uma língua que iria dar coesão ao novo Estado soberano. 

Era um comunicador sem rival, altamente pedagógico, revelava-se maleável e aberto a aprender com os erros, sempre a advertir para os perigos do oportunismo e do carreirismo. Deixamos para o próximo texto a sua alocução sobre os desafios que eram postos nos próximos tempos, tanto na luta de libertação como nos grandes princípios que deviam nortear o novo Estado soberano com que ele tanto sonhava.

Um abraço do
Mário



Um guia prático para conhecer o pensamento do revolucionário Amílcar Cabral (4/5)

Beja Santos

A obra intitula-se “Pensar para Melhor Agir”, comporta o teor integral das intervenções de Amílcar Cabral no Seminário de Quadros do PAIGC, que se realizou em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969. A edição é da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014, e tem organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins. 

De há muito que só é possível ler Amílcar Cabral entre nós nas bibliotecas ou adquirir as suas obras em alfarrabistas. As intervenções do líder do PAIGC foram revistas a partir das bobinas que então recolheram integralmente a sua comunicação, mais uma razão para encarar este trabalho como uma boa oportunidade de revisitar a essência do seu pensamento.

Amílcar Cabral dá como adquirido que a destruição do Estado Colonial pressupõe a criação de um novo Estado assente numa economia própria e alerta os seus quadros dizendo:

“Há muitas culturas agrícolas que nunca se fizeram e não será durante esta guerra que as poderemos fazer rapidamente. Mas devíamos ser capazes de começar a fazer algumas delas. Não podemos abastecer-nos a nós próprios com medicamentos, mesmo medicamentos simples, mas há coisas que podemos fazer como aumentar a produção de arroz, da mandioca, da batata e de outros produtos alimentares e garantir a produção em todas as áreas que controlamos. Devemos também procurar desenvolver o nosso artesanato: potes, esteiras, panos, bandas, etc. Alguns responsáveis do Partido esqueceram as palavras de ordem ‘desenvolver e aumentar a produção, multiplicar ou diversificar os produtos agrícolas’. 

Um golpe grande na nossa resistência económica foi e continua a ser a saída de grande número de gente para o Senegal. É um golpe na nossa resistência económica, porque são braços capazes de trabalhar nas condições das nossas regiões libertadas e que vão trabalhar no Senegal, aumentando a economia desse país e diminuindo a nossa. Devemos dizer claramente que alguns dirigentes e responsáveis do Partido de todos os níveis não têm dado a importância devida à nossa resistência económica. 

Devemos dizer aos camaradas que, se temos que alimentar os combatentes no fundo do mato, para podermos lutar contra os colonialistas portugueses, então estes ficam na nossa terra mais cem anos. Isso seria o resultado, sobretudo, da falta dos camaradas responsáveis que não foram capazes de pôr os combatentes a lavrar a terra, na altura em que era preciso”.

E elenca um conjunto de advertências para que haja condições de se preparar uma verdadeira revolução agrícola. E quanto ao que fazer no imediato não hesita em dar exemplos:

“No tempo das chuvas não se pode cultivar cebola, mas no tempo seco, como agora em Novembro, qualquer unidade do Exército pode cultivar cebola e alho num pequeno terreno da sua área. Basta indicar dois camaradas para vigiarem perto do rio e regarem como deve ser. Pode-se cultivar tanto no Corubal como no Canjambari ou perto de uma fonte no Sul, em Cubisseco, Quínara, ou em qualquer outro lugar.

Demoradamente, fala na necessidade de melhorar as relações entre as populações e os combatentes, passa depois para a resistência cultural, e usa da franqueza:

“A nossa cultura deve desenvolver-se numa base científica, sem crendices. Amanhã, deve evitar que qualquer um de nós pense que o relâmpago é sinal de que Deus se enraiveceu e a trovoada é a voz do céu ou do irã furioso. Toda a gente tem que saber que a trovoada e o relâmpago são provocados por duas nuvens que se chocam, uma carregada de eletricidade positiva e outra de eletricidade negativa, e produzem uma faísca, que é o relâmpago, e um barulho, que é a trovoada. Camaradas, temos de basear a nossa cultura na ciência, retirar da nossa cultura tudo quanto é anticientífico, não hoje ainda, mas amanhã. A nossa cultura tem de ser popular, uma cultura de massas, ou seja, à qual toda a gente tem direito, e que respeite os valores culturais do nosso povo. Devemos ter bem em mente a situação na cidade e no campo, comparativamente”.

É neste contexto que ele produz uma declaração que se revelará fundamental, sobre a importância da língua portuguesa:

“Agora, a nossa língua escrita é o português. Por isso, vale a pena falar-se aqui tanto o português como o crioulo. Não somos mais filhos da nossa terra pelo facto de falarmos crioulo. Tenhamos um sentido real da nossa cultura. A língua portuguesa é uma das melhores coisas que os portugueses nos deixaram, porque a língua não é senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, um meio para exprimirem as realidades da vida e do mundo. A língua dos portugueses avançou bastante mais do que a nossa, podendo exprimir verdades concretas relativas, por exemplo, a ciência. Nós dizemos: ‘A Lua é um satélite natural da Terra’. Digam ‘satélite’ em balanta ou em mancanha. Isto só é possível falando muito, enquanto que em português se trata apenas de uma palavra que outros povos podem entender”.

Passando para o tema da resistência armada recordou que esta é também uma expressão da resistência cultural, na luta nega-se a condição de portugueses de segunda classe, na luta adquire-se a consciência de que se pertence ao continente africano, luta-se em defesa da dignidade de ser livre e tomar nas suas próprias mãos a resolução dos problemas do país. Faz uma síntese histórica do colonialismo, retoma a questão da organização e explica porquê:

“À medida que a luta avança, o partido vem transformando as estruturas de guerra. Os camaradas devem lembrar-se bem do início da luta. A pouco e pouco, modificámos os grupos de guerrilha, criámos os corpos ou unidades do Exército, criámos os Comandos e começámos a coordenar a luta por zonas, em regiões diferentes. Dantes, por exemplo, o Comando das Forças Armadas era exercido pelo comité do Partido, mas, à medida que as nossas Forças Armadas foram crescendo, a guerra tornou-se mais complexa e tivemos de separar a direção das Forças Armadas da direção local do Partido. Ao longo da luta chegámos à conclusão de que, nas condições da Guiné e para este tipo de guerra, é mais eficaz combater com poucos efetivos organizados em pequenos grupos. A comprovar isto está o recente ataque a Piche, dirigido pelo camarada Baro Seidi e o seu comissário político Buonte Na Sansa, realizado com dois grupos de dezoito combatentes. Temos a certeza de que nesta luta é mais eficaz lutar com pequenos grupos tirando o máximo proveito das nossas armas, sobretudo as ligeiras”.

E de novo insiste num quadro de desanuviamento entre os militares e as populações que o PAIGC controla:

“Nesta luta temos de combater todas as ideias erradas e oportunistas e defender intransigentemente a linha do Partido. Vários camaradas das Forças Armadas e até mesmo responsáveis têm prejudicado muito o Partido e a nossa luta com o seu comportamento, fazendo deteriorar as relações entre a população e as nossas Forças Armadas. Isso equivale a um crime de traição, é servir os colonialistas. Digo-vos que por maior que seja a força do nosso Partido, se não promovermos quotidianamente as boas relações com a nossa gente, a nossa luta está condenada ao fracasso”.

E termina esta alocução recordando uma vez mais o objetivo de toda a guerra de libertação:

“O objetivo é sentarmo-nos frente a frente com o inimigo para ele concordar que temos razão e entregar-nos a nossa terra. Por isso é que temos de saber para onde é que vamos com a nossa guerra. Nunca é demais repetirmos que o objetivo fundamental da nossa resistência armada é realizar aquilo que não conseguimos só com a política. É abrir novas perspetivas para o nosso povo, na independência, na paz, no trabalho e na justiça, no caminho do progresso. É esta a nossa missão”.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23077: Notas de leitura (1428): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (3) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: