sexta-feira, 18 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23088: (In)citações (197): Mais recordações do conflito político-militar de 1998-1999, por parte de quem o viveu por perto, o Cherno Baldé e o Patrício Ribeiro


Guiné - Bissau > Bissau > 2003 > A imagem, sempre sinistra, da carcaça de um tanque  destruído e abandonado na estrada, talvez nas imediações de Brá. Devia tratar-se de um tanque T 54/55, de origem russa. A foto foi tirada em 30/4/2003,  portanto quase 4 anos depois do conflito. Foto: Mariomassone (2003) (pormenor). (Imagem de domínio público, editada por nós, e aqui reproduzida com a devida vénia  ao autor e à Wikimedia Commons)


1. Comentários ao poste P23054 (*), ainda a propósito do conflito-político miliar que estalou em 7 de junho de 1998, com o golpe de Estado contra o Presidente João Bernardo "Nino" Vieira,  liderado pelo General de Brigada Ansumane Mané, e que envolveu também tropas dos 2 países vizinhos, o Senegal e a Guiné-Conacri, tendo-se prolongado até 10 de Maio de 1999. 

(i) Tabanca Grande Luís Graça:

Cherno, tudo acaba bem quando acaba em bem... Será? O teu "calvário" não acabou aqui, em 15 de junho de 1998, em Fajonquito... Irá prolongar-se por mais um ano, dois, três, talvez mais... Quando voltaste à tua casa no Bairro Militar, em Brá, provavelment não a encontraste, ou estava completamente destruida ou vandalizada... E depois foi preciso recomeçar a vida, o trabalho, a escola... Tivestes mais 3 filhos...

Há marcas (muitas vezes mais psicológicas do que físicas) que não desaparecem mais... Não te vou pedir que nos fales disso, seria doloroso... Mas tudo indica que não foram anos fáceis, os teus, os vossos, do pós-guerra civil... Em 2001/02 tiveste que vestir a "camisola do Sporting", ao lado dos teus "primos ucranianos"... 

Talvez um dia possas escrever sobre a tua inesperada vida de emigrante...em Lisboa, trabalhando nas obras.

Um abraço, meu irmãozinho, e amigo. 
Luís
7 de março de 2022 às 10:13

(ii) Cherno Baldé (to à esquerda, em Fajonquito, sua terra natal, em 2010):


Caro amigo Luís Graça,

Prometo voltar ao assunto logo que possível, todavia antecipo para informar que ainda fiz duas viagens de ida e regresso Fajonquito-Bissau e vice-versa.

O Bairro onde habitava estava do lado dos rebeldes, mas felizmente, nada aconteceu à nossa casa, pois os meus vizinhos, balantas e antigos guerrilheiros, que não tinham saído, tinham-se encarregado de a vigiar por nós e não deixar que fosse vandalizada. Também encontrei a nossa cadela que, na confusão da nossa partida, não tinhamos encontrado.

A primeira vez foi no mês de agosto (de 1998), durante uma das tréguas entre as partes. Bissau estava completamente deserta. Tentei visitar os nossos escritórios nas antigas instalações militares de Brá, onde funcionava o Ministério das Obras Públicas. Quando cheguei junto à estrada, vi um carro blindado no meio da estrada e vários corpos abandonados, onde só se viam os ossos das costelas e outras partes do corpo.

Não podia continuar e voltei para casa completamente fora de mim, sem saber se caminhava ou já estava morto, no dia seguinte tive que voltar atrás e juntar-me à familia.

A segunda vez foi com o meu filho e fizemos uma semana e parecia que tudo se ia resolver, mas de repente tudo recomeçou e tivemos que abandonar a cidade de novo, no meio do tiroteio.

Finalmente, em meados de Março de 1999, voltei juntamente com a família e ainda tivemos que viver a parte final do conflito em maio do mesmo ano, refugiados em Safim durante dois dias.

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
7 de março de 2022 às 15:28


(iii) Tabanca Grande Luís Graça:

Obrigado, Cherno, pela partilha. Em relação à casa, tiveste mais sorte que o nosso saudoso Pepito, que morava no bairro do Quelelé... Os senegaleses roubaram e escaqueiraram tudo... Imagina a dor de alma quando voltou de Cabo Verde...

Mas foste um homem de coragem e transmitiste aos teus filhos valores que são essenciais para o futuro... Que possamos todos aprender com o passado...

7 de março de 2022 às 15:45


    
(iv)  Patricio Ribeiro (empresário, que vive na Guiné-Bissau desde  a segunda metade de 1980):

Cherno, a vida não foi fácil.

Também por lá andei, de 7 de junho de 1998 a  e 1999, pelas mesmas bolanhas a pé, por onde saía e entrava diversas vezes em Bissau, com a mochila às costas que levava dentro um prato de plástico e uma colher e uma lata de atum, era a ração de combate.

Mas como já era a minha 3.ª guerra… ia passeando nos intervalos da "chuva".

A "chuva" que vinha do Cumeré e de João Landim, estragou-me por duas vezes o telhado da casa, matou uma vizinha ainda jovem.

Poucas pessoas se deram ao trabalho de escrever sobre o 7 de junho de 1998. Muito ainda está no segredo dos deuses. (**)

Agora só me resta, que a minha 4.ª "chuva", não passe por perto. Abraço

8 de março de 2022 às 10:42
___________


Vd. também postes anteriores:

(**) Recomanda-se a leitura dos 3 postes que aqui publicámos há mais de 10 anos sobre a origem deste conflito político-militar... São da autoria do antigo embaixador português e nosso camarada Francico Henriques da Silva:

17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)

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