1. Continuação da publicação do trabalho do nosso camarada Francisco Henriques da Silva* (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, enviado em mensagem de 15 de Fevereiro de 2011:
Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 - 2/3
Bloqueamento social porque, sem prejuízo das diferentes fases da evolução histórica da Guiné-Bissau, no período pós-independência, mesmo tendo em conta a substituição da pequena elite burmedja (cabo-verdiana e mestiça) na sequência do golpe de estado de 14 de Novembro de 1980 por uma élite autóctone de fidjus di tchon (filhos da terra, ou seja guinéus supostamente puros) ou pretus-nok , o poder político, económico e social circunscreveu-se sempre a um grupo muito restrito, inibindo a mobilidade ascendente das demais camadas sociais e reduzindo-as a condições de mera subsistência. Este fenómeno é agravado pela explosão demográfica do país e pela concentração urbana em Bissau.
Por outro lado, as gerações mais novas, que cresceram ou nasceram após a independência e que constituem, hoje, a maioria da população bissau-guineense, já não se reviam na chamada “geração da luta”: os seus anseios eram outros, o desejo de mudança evidente. Todavia, o establishment não o permitia, porque tal poria em causa a sua própria sobrevivência. Uma minoria que viveu ou ainda vivia emigrada no estrangeiro, numa primeira fase, nos países limítrofes e do Leste europeu, numa segunda, em Portugal e nalguns países ocidentais (Brasil, França, EUA), culta ou, pelo menos, alfabetizada, com outra vivência e, principalmente, com outros objectivos, quer pessoais, quer nacionais, constatava que, à parte umas raras excepções pontuais, o bloqueamento era quase total.
Paradoxalmente a este movimento no sentido do desencravamento e do aggiornamento da sociedade bissau-guineense, conscientemente sentido por um sector, ainda que diminuto, das gerações mais novas (os demais pretendiam pura e simplesmente melhorar o quotidiano), acresce-se a deterioração acelerada da situação económica e social dos antigos combatentes da guerra colonial (os chamados combatentes da Liberdade da Pátria). E este é um dado fundamental do problema porque se trata a um tempo de uma causa remota e próxima do conflito. Remota, porque o problema, que vem de longe, nunca encontrou qualquer esboço de solução no passado. As tentativas goradas quando da governação inábil (inepta é o termo exacto) do antigo Primeiro-Ministro, Coronel Manuel Saturnino da Costa – ele próprio um homem da luta – demonstravam bem que a questão era candente e a sua resolução urgente, mas que o Poder patenteava total impotência para o resolver, por falta de meios, por falta de imaginação, ou por ambas as razões. Próxima porque a situação dos combatentes da Liberdade da Pátria (verdadeiros “descamisados”) não cessava de se agravar nos meses que antecederam o levantamento de Brá e aqueles iriam não só engrossar a legião de descontentes, mas, pior do que isso, anunciavam publicamente, poucas semanas antes do 7 de Junho de 1998, que iriam defender de armas na mão os seus direitos.
Bloqueamento económico porque a República da Guiné-Bissau era – e é - um país desesperadamente pobre, com efeito, um dos mais pobres do planeta. Não dispunha, nem dispõe, de quaisquer recursos naturais dignos de menção. Possuía, antes da guerra civil, de um rendimento per capita de 250,6 dólares americanos (dados de 1997, do Fundo Monetário Internacional), ou seja menos de 1 dólar por dia e por habitante[1] . Dispondo de uma agricultura de subsistência, praticamente sem indústria, sem recursos energéticos, com o sector dos serviços circunscrito, em larga medida, à capital, tratava-se de um dos países do mundo mais altamente endividados do mundo (918,8 milhões de dólares em 1997, por outras palavras: quase 4 vezes o PNB, também segundo dados do FMI). O seu subdesenvolvimento era endémico e sem solução à vista. Para além dos problemas estruturais com que se confrontava, o malbaratar de fundos e da própria ajuda externa, a corrupção, a má governação, constituíam outros tantos factores impeditivos a que a Guiné-Bissau pudesse emergir do fosso em que se encontrava. A principal cultura de rendimento – o cajú – na mão de intermediários e da elite local de Bissau era exportada na sua quase totalidade para o estado de Kerala na Índia. Uma exploração abjecta da mão-de-obra camponesa guineense que não foi praticada nem nos piores tempos da era colonial e agora aplicada por um país do 3º. Mundo, com o beneplácito (e os consequentes benefícios) da clique de “Nino” Vieira e acolitada pelos comerciantes de Bissau.
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[1] “O PNB por habitante era de 223 dólares norte-americanos em 1997, e caíu para 181,8 dólares por habitante em 1999, devido ao conflito militar”, Memorando do Banco Africano de Desenvolvimento/ Fundo Africano de Desenvolvimento, de 21 de Março de 2001, doc. ADB/BD/WP/2001/35
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Nota de CV:
Vd. primeiro poste da série de 17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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