Queridos amigos,
Desde o Amadu Djaló e do sargento Talhadas que não lia algo tão arrancado da alma. O coronel Calheiros é despretensioso, não veio à escrita comandado pelos veios literários mas por uma missão onde pesou o estrito sentido do dever: devolver às famílias os corpos de quem morreu em combate.
Um livro a juntar a outros muito bons que a guerra transforma em escrita de valor indiscutível.
Um abraço do
Mário
Uma memória admirável, pessoal e intransmissível:
“A Última Missão”
Beja Santos

O coronel José de Moura Calheiros cumpriu três comissões de serviço, conheceu os três teatros de operações de risco (Angola, Moçambique e Guiné, respectivamente). Na Guiné (1971-1973) foi 2.º Comandante e Oficial de Operações do BCP 12, COP 4 e COP 5 e ainda Comandante do COP 3. Assistiu de perto aos acontecimentos dramáticos de Guidage e nunca os esqueceu. “A Última Missão” é um título feliz para uma vastíssima e ordenada colecção de memórias que entremeiam as notas de viagem de um grupo que voltou a Guidage, em Março de 2008, para acompanhar a exumação de três pára-quedistas BCP 12, 35 anos depois do cerco à martirizada Guidage. Temos aqui, em grande angular, e numa sinceridade sem nenhuma encenação uma longa viagem de memórias à guerra que ele viveu em África ao serviço das tropas pára-quedistas (“A Última Missão”, por José de Moura Calheiros, Caminhos Romanos, 2010).É um livro de memórias tocante por se sentir que se trata de alguém que se expõe completamente, alguém que se olha ao espelho sem flores de retórica ou à procura da última comenda. A missão é trazer os restos mortais dos soldados Vitoriano, Lourenço e Peixoto, mortos em combate na bolanha de Cufeu, tendo ficado sepultados no interior do aquartelamento. Alguém elaborou um croqui com a localização exacta das campas, dado providencial para o resultado desta última missão.
No acto de embarque, nesse dia 7 de Março de 2008, assalta-lhe à memória a primeira aproximação a África, dá-nos o registo da participação dos pára-quedistas e da sua chegada em Maio de 1963, relata o seu baptismo de fogo, entre outras memórias. A caminho de Bissau, fala-nos do programa “Conservação das Memórias”, criado pela Liga dos Combatentes no sentido de concentrar em alguns cemitérios os restos mortais dos nossos combatentes em África. Assegurado o financiamento para a operação de exumação que decorreu sob o impulso da UPP – União Portuguesa de Pára-quedistas, foram estabelecidos contactos com peritos para se formar a indispensável equipa técnica. Ainda a caminho de Bissau, o coronel Calheiros recorda a sua missão no Norte de Moçambique, entre 1967 e 1969, repertoria momentos de perigo, o sofrimento físico. Refere algo que vi em dois momentos de tormenta, o desespero da sede, militares a molhar os lábios com urina. Dá-nos a descrição de várias operações e é assim que a equipa de missão chega a Bissalanca, onde ficou a aguardar a chegada da equipa técnica.
Dá-nos um registo da sua ida a Bissau e recorda-se da Bissau de 1971, compara o estado da cidade e o viver das populações. De seguida começam os preparativos para a deslocação, a escolha da base para o cumprimento da missão em Guidage. Ponderadas as hipóteses (permanecer em Guidage todo o tempo, aceder a Guidage a partir do Senegal utilizando um hotel de caça próximo ou construir uma base em Farim) optou-se por Farim onde já se tinha alugado duas casas. De novo assistimos ao revolteio da memória, aqueles preparativos do deslocamento para Farim lembraram-lhe as preocupações com as do tempo de guerra em que o kit-bag (saco de bagagem utilizado pelos pára-quedistas) era o albergue com que se podia contar durante o ciclo operacional, a casa ambulante. A coluna segue para Farim, o autor lembra outras colunas, desde a via marítima até à deslocação em Berliet e Unimog, com todas as peripécias imagináveis. Tudo é comparável, buscam-se analogias, pontos de contacto entre o passado da outra missão e esta, apresentada como a derradeira. É um dos aspectos mais atractivos desta prosa eficiente, conduzida pelo olhar, sem sinuosidades nem piruetas líricas. É o que é, o que a recordação consente, como se vivia nas instalações do BCP 12 e que agora está à disposição da missão e assim se vai progredir até Farim, pelo caminho recordam-se minas e emboscadas, a travessia nos rios, assim se chega ao cais de Farim, na margem esquerda do rio Cacheu. Está constituída a equipa, militares, um jornalista e vários peritos indispensáveis para a exumação. A casa de Farim vai detonar memórias sobre o modo de viver dos pára-quedistas, há a nostalgia da base de operações e o repouso físico e psicológico que permitia, ali se jogava às cartas, escrevia os aerogramas, mas também se jogava à bola e até se praticavam os jogos tradicionais que se trazia das aldeias.
Iniciam-se os contactos com agentes de Farim, surgem antigos militares que combateram à sombra da bandeira portuguesa e antigos militares do PAIGC. São relatos humanos, muito humanos, quem escreve está aberto a ouvir e a perguntar, é alguém que toma notas do movimento das ruas e dos usos e costumes. Esse alguém recorda a sua chegada a Bissau, em 1971, a memória põe-no de novo à varanda e então passam em desfile os jovens combatentes, desde os jovens contestatários àqueles que trazem curiosidade e o sentido do dever. Será porventura um dos quadros de memórias mais preciosos e singelos que o autor nos oferece, esse e o das gentes de Farim, desvelando, a propósito, o drama (talvez insolúvel) das pensões de sangue, de invalidez e de reforma daqueles guineenses que combateram ao lado dos portugueses, acreditando ser portugueses. Em torno deste drama (que eu próprio verifiquei em 1991 e 2010) há propostas para desbloquear a situação, todas elas são altamente sensíveis e cheias de riscos se não forem praticadas com o máximo de equanimidade. No seguimento desta dura prova que é mostrar a chaga destes antigos camaradas que continuam a não entender a perda de direitos, o coronel Calheiros debruça-se sobre as famílias dos militares, o seu sofrimento à distância e aqui detém-se sobre aqueles três jovens ainda sepultados em Guidage.
É um relato que impressiona pela ausência de jactância, pelo ânimo da camaradagem e pela franqueza do desnudamento da alma. Já estamos a caminho de Guidage. A última missão, na sua plena acepção, vai agora começar.
(continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7797: Notas de leitura (203) Estudos Sobre o Tifo Murino na Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

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