Queridos amigos,
Aqui acaba a visita a uma exposição surpreendente, alvo de um catálogo de referência, num espaço arquitetónico único, concebido por Alcino Soutinho e onde se revela que Querubim Lapa é muito mais do que um grande ceramista azulejar, foi o nome maior da pintura neorrealista, a sua obra é a demonstração eloquente de que os neorrealistas não bebiam todos da mesma cartilha e como escreve o curador da exposição, David Santos, "Ao desenvolver um sentido poético da análise social do nosso país nas décadas de 1940 e 1950, Querubim Lapa realizou uma pintura singular, como poucas, soube conciliar o testemunho social com uma observação lírica da comunicação artística". No texto anterior, encetámos a viagem por esse Pós-Guerra em que uma nova geração, manifestamente congregada em oposição ao Estado Novo, assumia um compromisso entre a arte e a sociedade. Diga-se o que se disser, "os objetivos reclamados pelo neorrealismo constituíram-se como uma verdadeira alternativa cultural para a maioria dos artistas portugueses da terceira geração modernista - onde se inclui Querubim Lapa, nascido em 1925 - aqueles que na segunda metade dos anos 1940 frequentavam ativamente as escolas de belas artes, pressentindo no fim do conflito mundial a oportunidade de uma mudança política no nosso país". Iremos neste apontamento acompanhar a evolução do artista até se chegar a uma nítida fase de afastamento das formulações e inspirações usadas no período inicial, é quando chegamos ao distanciamento que se pode constatar como este artista plástico, atraído pela explosão da cor, e porventura pelas necessidades impostas pela vida, optou pela cerâmica azulejar, onde foi grão-mestre entre mestres.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (131):
Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (2)
Mário Beja Santos
É uma exposição surpreendente, o nome Querubim Lapa (1925-2016) associa-se instantaneamente a notabilíssimos trabalhos de cerâmica azulejar, de que ele foi um artista de referência, está agora patente no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, até 29 de outubro de 2023, uma exposição que tem o propósito de dar a conhecer a sua atividade quando ele aderiu a um cânone que marcou uma geração. São cerca de duas centenas de trabalhos entre as décadas de 1940 e 1960. Querubim começou por desenhos de pequeno formado que realizou entre 1945 e 1948, profundamente inspirados no realismo de observação social, vamos ver mendigos, feirantes, vendedeiras, cenas de circo, tudo marcado pelo realismo. Esta observação social prolongar-se-á até à década de 1960, findo o arco temporal que justifica o título da exposição Querubim Lapa, uma poética neorrealista.
Observa David Santos, diretor científico do Museu do Neo-Realismo, “Se hoje Querubim Lapa é pela história de arte identificado como um dos nomes mais decisivos da arte moderna em Portugal ao nível da cerâmica azulejar, ele deve ser igualmente reconhecido como um dos maiores pintores neorrealistas que o nosso país reconheceu”. Não nesta sua arte nada que se aparente com o cânone do realismo socialista, mas também não há folclore, o cômputo é uma poética de liberdade singular, não pelos temas, esses sim, recorrentes na obra destes jovens que partilhavam de uma oposição ao Estado Novo, cenas de trabalho, um mostruário da vida dos pobres, dos sacrificados, não faltando mesmo cenas circenses, uma das poucas ilusões de magia que era permitida aos marginalizados, os do fundo da pirâmide social; mas o que o distingue é o sopro lírico, os revérberos da luz, das cores, a filiação cultural ampla, ao longo da sua trajetória neste domínio das artes plásticas encontra-se a sua forte atração por temáticas do mundo antigo, na sua busca diferenciadora encontramos algo da iconografia russa, da influência bizantina, do gótico italiano, o que se exprime na postura dos corpos, na evidência das formas.
Também no estudo que David Santos preparou para este catálogo de referência se observa a atração de Querubim pelo espelho, o outro eu que atua como um reflexo, e o historiador tece considerações sobre o uso do espelho, já patente no seu autorretrato de 1949, no uso de elementos distrativos para confundir os códigos dos elementos que ele coloca na obra, que tanto pode ser a cor vermelha como o símbolo da alcachofra. Um crítico observou que Querubim era um guloso da cor, um trapezista da linha. Muito exigente na experiência, com o seu caminho próprio no realismo social, esgotados os filões perfilhados pelo uso da arte em que a forma devia estar ao serviço do conteúdo, Querubim, chegada a década de 1960, enveredará por outros rumos, tal como outros artistas da sua geração (caso de Jorge Vieira, Nikias Skapinakis, Rolando Sá Nogueira). Poder-se-á dizer, contudo, e volto a citar David Santos: “Querubim Lapa meter-se-á fiel, no essencial, a um compromisso pessoal que, não abdicando da esperança coletiva de uma sociedade, insistirá na realização de uma arte que exige de si própria um equilíbrio entre o humanismo das suas referências reais e iconográficas e a surpresa das descobertas determinadas pelo fazer artístico.” Há uma linha sequencial que vamos encontrar em cenas como a hora do almoço, o regresso do trabalho agrícola, as figuras das vendedeiras até à fase terminal desta poética neorrealista em que se representa o descanso, porventura em fainas agrícolas. É uma síntese dessas imagens que eu pretendo aqui mostrar para acicatar o desejo do leitor em vir visitar este esplêndido edifício concebido por Alcino Soutinho e percorrer dois andares para conhecer o pulsar do artista plástico, o seu compromisso, a sua estética humanista.
Vamos, pois, continuar a visita.
O tema do espelho, obsidiante na sua obra
As carquejeiras, o trabalho duro reservado aos mais humildes
As carquejeiras num contexto de atividades laborais que tanto podem ser a costura como a faina agrícola
O regresso do trabalho, a censura não terá gostado do motivo, a foice não engana, mas o contraste lírico não é menos pesado, aquele pai com o seu menino às cavalitas, com um furacão de luz ao fundoA mulher omnipresente, no óleo, na tinta-da-china, na aguarela, lápis, o rosto inteiro, o perfil, em atividades laborais com outras, com o menino ao colo, com o espelho partido, em desespero, caçando borboletas, vendeira de peixe, com uma pomba em ambas as mãos… É a expressão mais evidente constante do compromisso do artista com observação social. Como, aliás, se escreve no catálogo: “De modo singular, Querubim Lapa concilia no seu exercício de consciente situação histórica, uma mais subtil relação com o ambiente reivindicativo do realismo social, voluntariamente adotado desde os desenhos iniciais. Essa era uma opção que o situava, sob o ponto de vista discursivo, na esfera desse encontro entre o passado clássico e o presente moderno.”
Ousadia, irrequietude, a febre da experiência. Tendo como fundo uma volumetria que nos parece convocar para um castelo tipo São Jorge e a descida do casario numa geometria organizada, há depois um tropicalismo que parece saído do Brasil… É um choque, mas Querubim queria mesmo experimentar. Este quadro que não tem título, data de 1955, tenho para mim que o artista, já trabalhava em cerâmica azulejar, pesquisava novas formulações, aliás o final da exposição termina com o tópico “Memória e distanciamento”, atingira-se uma nova dimensão cromática e volumétrica, vamos por ali à volta desta atmosfera experimental e procuramos analogias que nos mostram os prelúdios do afastamento, o encontro com novos processos, no íntimo o visitante vê também a evolução de outros artistas, caso de Maria Keil, Rogério Ribeiro, Nikias Skapinakis. Mas a identidade de Querubim é inatacável, é como estar a ver Almada Negreiros e saber que é impossível não ser Almada Negreiros, ou Cruzeiro Seixas ou Raúl Perez
Exemplos dessa inventividade, temos agora uma paleta mais alegre, um novo tratamento das figuras, nota-se outros chamamentos de artistas figurativos seus contemporâneos, um deles, indubitavelmente, Marc Chagall.
O processo da cor está em alteração, esta vendedeira distancia-se das figuras criadas no Pós-Guerra
Este óleo dá pelo nome “O fardo”, é de 1963, a cromática é de Marc Chagall, a distância do processo neorrealista é insofismável.“O descanso”, tema que apaixonou os naturalistas, os tardo-naturalistas, modernistas como Almada Negreiros, o que é marcante é a expressão lírica da obra, o apaziguamento, a manipulação magistral dos tons neutros e dos verdes e o poder da luz, como se houvesse um candeeiro a iluminar o repouso destes trabalhadores.
Obra icónica de Querubim Lapa na Pastelaria Mexicana, entre a Praça de Londres e a Avenida Guerra Junqueiro
Querubim Lapa na Avenida da Índia, Lisboa
____________Notas do editor:
Vd. poste de 25 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24886: Os nossos seres, saberes e lazeres (601): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (130): Querubim Lapa, mago da cerâmica azulejar, mas irrefutável pintor e desenhador neorrealista (1) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 30 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24900: Os nossos seres, saberes e lazeres (602): Abandono do Património Histórico (Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf)
1 comentário:
É pena Beja Santos não apresentar fotos dos azulejos da cozinha de Querumbim Lapa.
Valdemar Queiroz
Enviar um comentário