quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24897: Historiografia da presença portuguesa em África (396): "Viagem ao arquipélago dos Bijagós", 1879, por Maximin Astrié (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Há para aqui um sexto sentido que me alerta para o facto de, pelo menos, ter folheado este opúsculo, não acredito tê-lo traduzido como hoje pretendo. Não é só rico em termos antropológicos. Temos forçosamente de nos interrogar o que era a nossa presença nos Bijagós, é inequívoco que a presença francesa tinha gradualmente ganho peso, eram as tais pretensões de ficar na posse das ilhas e estender o seu domínio até ao rio Nuno, sabemos como a diplomacia francesa saiu vitoriosa ao levar-nos a assinar a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886, tomaram posse de toda a região do Casamansa, cortaram-nos o caminho para os entrepostos da Serra Leoa. Devemos a este negociante francês um relato bem urdido, há que questionar porque nunca tenha sido publicado em português.

Um abraço do
Mário



Viagem ao arquipélago dos Bijagós, 1879 (1)

Mário Beja Santos

A Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa possui um exemplar de Viagem ao Arquipélago dos Bijagós, por Maximin Astrié, negociante francês em Bolama, Luchon, 1880, o exemplar foi uma oferta de Godefroy Gairaud, vice-cônsul de Portugal em Carcassonne. Lembro-me perfeitamente de ter deitado uma vista de olhos a este texto, mas não me recordo de o ter traduzido no essencial, tem elementos até de caráter antropológico do maior interesse. E ficamos claramente a perceber que em 1878 a nossa presença nos Bijagós era por demais ténue. Vamos então ao essencial do texto. Astrié começa por informar o leitor que o arquipélago dos Bijagós está situado na costa ocidental africana entre a Senegâmbia e a Serra Leoa. Com exceção de Bolama, que tem sido civilizada há cerca de 2 séculos pelos portugueses, servindo de entreposto no tráfico de escravos durante muito tempo, estas ilhas são praticamente desconhecidas.

Estamos em Bolama em 1878, recebi de Marselha um telegrama convidando-me a explorar os Bijagós, em caso afirmativo deveria viajar rapidamente até Marselha. O telegrama fora-me enviado pelo sr. Aimé Olivier, homem extraordinário que fundara estabelecimentos na Ásia e África. Acedi viajar até Marselha, fui recebido com um calor tão comunicativo, tinha tal entusiasmo a expor as esperanças que depositava no futuro comercial do país nestas regiões. Não hesitei um instante em aceitar a missão. Cheguei a Bolama em 1 de fevereiro de 1879. Comecei as minhas explorações por Orango, havia dois motivos para me ter decidido primeiramente por esta ilha: é a mais importante do arquipélago e possuiu o mistério de ruídos misteriosos.

É governada pelo rei Oumpané Bijougoth, é um déspota, possuidor de uma tal crueldade que afasta do seu território todos os estrangeiros. Embarquei na chalupa Marie com mais cinco homens na equipagem, incluindo um intérprete de nome Samba Sala, um piloto e um cozinheiro. Recebera na véspera do agente consular francês em Bolama uma carta do seguinte teor: “Meu caro senhor Astrié, tomei conhecimento que se quer aventurar na ilha de Orango. Na minha qualidade de compatriota e amigo, creio dever-lhe pedir energicamente que desista deste projeto. O rei dessa ilha pratica tais atrocidades, como é o caso agora dos marinheiros austríacos que naufragaram nessas terras. Não gostava de o ver exposto a tais perigos, a prejuízos pessoais que porventura exigiriam a intervenção do governo francês; e assinava." Não me demovi, a resolução estava tomada.

Ultrapassadas as dificuldades, viajou-se até Orango. Confesso que não foi sem uma certa emoção que munido de um óculo fui verificando as sinuosidades desta terra, donde talvez eu não voltasse. Fomos recebidos com demonstração de grande regozijo, o intérprete parlamentou com os indígenas, fiquei a saber que o rei me receberia na sua morada.

A tabanca ou residência do rei ficava a cerca de 1,5 km da praia. Chegámos a uma autêntica floresta de laranjeiras no meio da qual ficava a residência do rei, uma casa redonda composta de uma paliçada de bambus e com teto de palha. O rei esperava-me sobre um pódio, uma espécie de peristilo informe onde ele habitualmente praticava a justiça. Estava sentado sobre um escabelo em madeira. Era um homem de cerca de 35 anos, olhos penetrantes, nariz de abutre, coberto por uma tanga. Trazia uma espécie de chapéu alto, tal como usam todos os reis do arquipélago. Vi que tinha na sua coxa direita uma ferida horrível, asquerosa, com pus esbranquiçado, indicador de uma doença muito espalhada pelas populações da costa ocidental africana. De tempos a tempos sua majestade pressionava esta ferida horrenda com os seus dedos e depois limpava-se com um gesto desprovido de nobreza no seu ministro da Justiça. Ofereceu-nos escabelos e começámos a conversar, com recurso a intérpretes.

Muitos viajantes têm o hábito deplorável de se apresentar como se estivessem a conversas diretamente com os indígenas para lhes conhecer a língua. Com o recurso de Samba Sala, o rei dirigiu-me as seguintes palavras: “Quer o Irã, o mais poderoso dos deuses, que tudo o que vou dizer seja a expressão da verdade. Quer o Irã que da tua parte não me mintas. Vou imediatamente oferecer um sacrifício a todos os deuses. Fala, o que vieste fazer a estas ilhas?”

A população envolvia-nos, o círculo fechava-se cada vez mais, senti um odor nauseabundo que exalavam todos estes corpos untados de óleo de palma rançoso. O rei fez um gesto significativo com o bastão que empunhava, a multidão obedeceu-lhe alargando o círculo, ficando mais distantes de nós. Ofereci a sua majestade os presentes da praxe (um lenço para o pescoço, uma faca de talho, tabaco em folhas, um garrafão de aguardente). Recorrendo a Samba Sala, respondi nos seguintes termos: “Diz ao rei que estou pronto a satisfazer todas as suas questões com sinceridade. Vim a Orango para fazer com ele o comércio das nozes de palma, amendoim e borracha. Trago-lhe todos os produtos dos brancos (dinheiro em guinéus, tabaco e aguardente)”. Ao ouvir a palavra aguardente cresceu um murmúrio na multidão. E o rei respondeu: “Diz a este branco que compreendi todas as suas palavras. Vamos agora oferecer um sacrifício aos deuses e agiremos segundo a sua resposta.” E retirou-se, encarregando dois ministros de preparar a cerimónia. Durante os preparativos, trouxeram-nos laranjas, ananases e vinho de palma.

Reparei que uma jovem negra que se colocou atrás de mim com as pontas dos dedos procurava tocar-me o pescoço e manifestava o desejo de me ver o peito. Entendi não lhe recusar este favor e abri ligeiramente a minha camisa e a minha camisola de flanela. A multidão deixou escapar um clamor de espanto, tal a surpresa que lhe causava a brancura da minha pele. Não quis ficar sem resposta. É usual naquelas tribos da costa africana manifestar a sua galantaria às mulheres pressionando com delicadeza os seios e a extremidade superior do fémur, e o maior elogio que se possa fazer da sua beleza é a de mostrar admiração causada pela firmeza destas partes do corpo. Aproximei-me dela e cumpri o dever de responder à sua delicadeza. Mas nesse tempo o rei apareceu no limiar da porta e lançou-me um olhar que não tinha nada de amistoso, aquela jovem era uma das suas favoritas. Será a este fútil incidente que devo atribuir os acontecimentos seguintes?

A uma centena de metros do alpendre onde tínhamos conversado havia uma espécie de praça publicada cercada de laranjeiras e bananeiras. Tinham trazido todos os ídolos da ilha. Os mais belos eram grotescas estátuas em madeira, grosseiramente esculpidas e encimadas com uma espécie de chapéu alto. Havia também divindades secundárias, com cornos de cabra. A multidão esperava a chegada do rei para presidir ao sacrifício. Apareceu finalmente, pôs-se ao meu lado, sempre acompanhado dos seus ministros. A um sinal do rei, o sacerdote, após alguns salamaleques apresentou ao ministro da Guerra um soberbo galo que abanava vigorosamente a cabeça enquanto o ministro da Justiça o segurava pelas patas. Finalmente, o facalhão do sacerdote abateu-se sobre o pescoço do galo que caiu, decapitado, e se revolteou por terra em convulsões de agonia. O galo afastava-se claramente de mim e acabou estendido uns metros à frente. A assistência parecia ter ficado atónita e o rei levantou-se, sem proferir uma palavra. Os deuses tinham-se revelado desfavoráveis para mim. Anunciaram-me que eu estava preso.

Costumes bijagós, imagem publicada em Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, nº10/11, 1954
Régulos bijagós, fotografia de Luís Paulo Ferraz, com a devida vénia
Figura feminina ancestral bijagó, Irã, 1890, coleção particular
Pescador bijagó lançando redes, retirado do Correio da Manhã, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24872: Historiografia da presença portuguesa em África (395): O problema das florestas da Guiné portuguesa, anos 1950 (Mário Beja Santos)

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