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sábado, 3 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10615: A minha CCAÇ 12 - Anexos (I): Sansacuta, tabanca fula em autodefesa no sul do regulado de Badora, onde estive em março de 1970 e onde um dia recebi, do vagomestre, um lata 5 kg de fiambre dinamarquês... que tive de consumir e repartir pelos putos em escassas horas (Luís Graça)






Guiné > Zona leste > Seto  L1 (Bambadinca) > BARt 2917 (1970/72) > Tabancas fulas em autodefesa do Regulado de Badora: crianças... e cães.

Fotos: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados



1. Enquanto não aparece o poste relativo ao mês de novembro de 1970. quando a CCAÇ 12 perfazia 18 meses de Guiné (, mês que me traz amargas memórias) (*), vou iniciar um séria paralela, para lá pôr uns textos anexos... O primeiro tem a ver com a temporada (duas semanas e meio) que passei em Sansacuta, no sul do regulado de Badora, do lado esquerdo da estrada Bambadinca-Mansambo, comandando uma secção do 4º Gr Comb da CCAÇ 12, entre 24 de fevereiro e 12 de março de 1970.

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Uma aldeia fula em autodefesa:  Sansacuta, regulado de Badora

por Luís Graça



1. Como esses bandos sinistros de jagudis (abutres) que pousam sobre a morança dos que estão a morrer, também o espectro negro da fome paira sobre as tabancas da Guiné. Porque a desnutrição, essa, é já endémica: facilmente se constata, sobretudo nas crianças, toda uma série de sintomas patológicos provocados pelas carências proteicas e vitamínicas de uma alimentação quase só à base de cereais (arroz, milho, fundo) e túbérculos (mandioca, inhame), acompanhos de molhos de origem  vegetal (óleo de palma). 

A alimentação é, pois,  deficiente, sobretudo em qualidade. O peixe (sobretudo seco) e a carne são raros. Além disso, os fulas, que são islamizados, não comem carne de porco. Em contrapartida, não têm os problemas de alcoolismo dos povos ribeirinhos, animistas (como os balantas de Nhabijões).

E, no entanto, trata-se dum território aparentemente fértil, mas com umas das mais elevadas densidades demográficas do continente africano, concentrando-se as populações em especial nas bacias hidrográficas, junto às bolanhas e lalas (regiões alagadiças ricas em húmus) onde cultivam o arroz.


Mas a guerra e a sua escalada vêm modificar profundamente a geografia humana e económica da Guiné: por um lado, provocam o êxodo maciço de populações inteira (balantas, beafadas, mandingas, manjacos, etc.) para as zonas controladas pelos guerrilheiros e para os países límitrofes (Senegal e Guiné-Conacri). E por outro, assiste-se ao fenómeno da militarização dos fulas (uma tribo islamizada cujos régulos detêm ainda algum do seu antigo poder feudal), através não só do reagrupamento e organização em autodefesa das suas aldeias como também da formação de milícias.

2. Eis a razão por que, a partir de 1963, se tem vindo a acentuar o decréscimo da produção agrícola (que aliás é cada vez para autoconsumo). Mas vejamos as duas culturas ainda comercialmente importantes: o amendoim e o arroz.

O amendoim (ou mancarra) só por si deve representar hoje  cerca de metade do valor total das exportações (da Guiné para a Metrópole).

Muito antes ainda de passar à clandestinidade, o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral (que terá dirigido uma brigada técnica dos Serviços Agrícolas Coloniais, não  em Fá, aqui perto de Bambadinca, mas em Pessubé, tendo feito estudos sobre a produtividade de diversos tipos de amendoim), já tinha denunciado o perigo que representava a monocultura desta oleaginosa para o desenvolvimento económico e social da Guiné, e criticando implicitamente a sua importância estratégica como matéria-prima para os monopólios metropolitanos (a CUF, aqui representada pela Casa Gouveia).

Tendo sido imposta ao indígena pela administração colonial, a cultura da mancarra está hoje em declínio irreversível: os fulas ainda são os únicos que lavram mancarra (cultivam amendoim) na periferia das suas tristes tabancas, cercadas de arame farpado e de minas. É com o produto da sua venda que o camponês fula paga, no posto administrativo, a sua taxa domiciliária (imposto de palhota), colectada na base do número de mulheres (e moranças) que possui! 


Curiosa é a origem da mancarra, a semente do diabo, segundo a lenda fula, que aqui ouvi em Sansacuta (em 8 de março de 1970):

Na mitologia fula a mancarra (amendoím) está associada ao Diabo em pessoa (Iblissa). O cherno Umaru que dirige uma pequena escola islâmica nesta tabanca e que se prepara , como bom muçulmano devoto (tijanianké), para fazer no próximo ano a sua peregrinação a Meca (Iado Hadjo, em fula) e assim juntar ao seu nome o título venerando de al-hadj,contou-me a seguinte história,  traduzida  pelo Suleimane, o José Carlos Suleimane Baldé (o meu braço direito, guarda-costa, intérprete, cozinheiro, secretário):

- Um dia Iblissa (o Diabo) quis desafiar a autoridade divina de Mohamadu (o Profeta Maomé). Tinha chovido muito e o Profeta dissera que então nasceriam todas as sementes que fossem lançadas à terra. O Diabo, em vez de uma semente de milho ou de arroz, deitou leite numa cova que ele próprio tinha feito no chão. Mohamadu, intrigado e inquieto com a provocação de Iblissa, foi falar com Alá, que lhe mandou guardar uma semente. E ao fim desse tempo, não é que do leite nasceu mesmo a mancarra ? (**)

O segundo produto é o arroz (***). Antes da guerra, dois terços eram exclusivamente produzidos pelos balantas, a maior etnia do território (que são 150 mil, segundo o censo de 1962). Inclusive o arroz chegou a ser exportado. Hoje mal chega para o autoconsumo, tornando-se dramática a sua carência nos anos de menor pluviosidade.



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Subsetor de Bambadinca > Detalhe > Tabancas fulas em autodefesa, Samba Juli, Sinchã Mamadjai e Sansacuta, situadas entre os rio Querol e Timinco, a leste da estrada Bambadinca-Mansambo > Carta do Xime (1955) (Escala 1/50 mil)... Lugares que continuam no nosso imaginário...



Entretanto, no circuito da economia monetorizada, devido à inflação provocada pela guerra, a população que está sob o nosso controlo vê-se muitas vezes na contingência de vender, ao pequeno comerciante português ou libanês, o arroz que produz para comer (preço por quilo: 3 pesos!) para comprar umas chinelas de plástico:

- O senhor administrador dá porrada se pessoal africano anda descalço em Bambadinca!-, diz um dos meus soldados fulas.

Noutras ocasiões, trata-se de fazer dinheiro para pagar a taxa domiciliária I"o famigerado "imposto de palhota"), imposta ao guinéu e devida pelos escassos metros quadrados de superfície que ocupa a sua morança. 
Entretanto, quando as reservas se acabam no tempo seco, o guinéu volta a adquirir o mesmo arroz pelo dobro do preço (6 pesos).

O drama destes pobres camponeses que foram obrigados a abandonar as suas áreas de cultura, arrancadas à floresta tropical ou à savana arbustiva, de geração em geração, pude senti-lo aqui em Sansancuta onde estive em autodefesa. (****).

3. Sansancuta faz parte dum eixo de aldeias estratégicas, como se diz no Vietname, no limite sul do regulado de Badora, no Sector L1, e que funciona como uma espécie de pequena muralha da China, cortando as linhas de infiltração das forças da guerrilha que eventualmente se dirijam para o interior daquele regulado a partir do Rio Corubal.

Estão aqui reagrupados os habitantes de três tabancas, uma das quais Sare Ade cuja população, sobretudo os mais jovens, não se conformou com a ordem de deportação dada pelo comando militar de Bambadinca, tendo fugido para o nordeste (Gabu) e inclusivamente para o Senegal, que também é chão fula.

Hoje, de resto, só há duas alternativas para um homem fula: (i) oferece-se como voluntário para o exército colonial, passando primeiro pela milícia; ou (ii) emigra todo os anos, na época das chuvas, para o chão de francês (Senegal ou Guiné-Conacri) a fim de trabalhar nos campos de mancarra.

É a única maneira de fugir ao universo concentracionário da sua tabanca, e sobretudo à fome. Essa fome visceral que leva as crianças a aproveitar tudo aquilo que nós, tugas, nos damos ao luxo de deitar fora (vi-as aqui a assaram na brasa as vísceras de um frango que o bom do José Carlos Suleimane Baldé me arranjou e reparti-las equitativamente entre si).


Tínhamos uma secção destacada em Sinchã Mamadjai  [ou Mamajã] que foi transferida em 24 de Fevereiro de 1970 para Sansacuta, com o objetivo de controlar os trabalhos de autodefesa [, e que haveria de  regressar definitivamente a Bambadinca a 12 de Março de 1970].

Fome, subnutrição, carências de toda a ordem (roupas, medicamentos...), doenças como paludismo, mortalidade infantil,  etc., contrastam, de modo chocante, com a relativa opulência com que um tuga , como eu, aqui vive: ainda ontem me vieram trazer o reabastecimento semanal e, entre outros produtos enlatados, deixaram-me cinco quilos (!) de fiambre dinamarquês, para dois mecos, para mim e para o operador de transmissões, os dois únicos brancos, já que as praças são desarranchadas. 


Tivemos de comero fiambre em menos de vinte e quatro horas, sob pena de se estragar com o calor (, frigorífico a petróleo ka tem!), e, uma vez aberta a lata, repartir o resto do fiambre pelos putos da aldeia e soldados africanos da secção. É claro que lhe chamaram um figo, não tendo desconfiado sequer que tal iguaria pudesse ser feita de carne.. de porco!

Deportado e reagrupado em aldeias estratégicas (ou tabancas em a/d, chamem-lhe o que quiserem), o camponês da Guiné que ama os grandes espaços livres (a floresta onde vai caçar a gazela, a bolanha onde cultiva o arroz, o rio onde vai buscar o mafé) vê-se confinado a uma área de reserva onde pratica uma miserável agricultura de subsistência.

Ironicamemnte as fiadas de arame farpado que cercam as palhotas cónicas,as trincheiras e os abrigos de combate, os espaldões para as armas pesadas, as valas de comunicação e os abrigos passivos das tabancas em a/d, ficarão proventura como os únicos vestígios arqueológicos da presença duma civilização tecnologicamente superior nesta parte ocidental de África...

Luís Graça




Guiné > Zona Leste > Croquis do Sector L1 (Bambadinca) > 1969/71 (vd. Sinais e legendas).  Dentro retângulo a vermelho, ficavam localizadas as duas tabancas aqui referidas neste poste, Sansacuta e Sinchã Mamadjai, no limite sul do regulado de Badora,  entre Bambadinca e Mansambo. A sudeste ficavam três importantes (e das últimas) tabancas fulas do regulado do Corubal,  Afiá, Candamã e Camará,  eestas já pertencentes ao subsetor de Mansambo.

Infografias: © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados

______________



Excertos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1969/71. 
Cap. II.26: A secção destacada em Sinchã Mamadjai foi transferida em 24 de Fevereiro de 1970 para Sansancuta a fim de controlar os trabalhos de autodefesa da tabanca, regressando definitivamente a Bambadinca a 12 do mês seguinte [Março de 1970].~


Notas do editor:


(*) vd. último poste da série > 30 de julho de 2012 > Guiné 62/74 - P10209: A minha CCAÇ 12 (26): Outubro de 1970: o jogo do rato e do gato... (Luís Graça)

(**) Números sobre a mancarra:  Principal produto de exportação da Guiné nos anos 60: 76% do total (em 1964), percentagem que decresce para 61% em 1965, em consequência do agravamento da guerra. A área cultivada atingia os 100 mil hectares (um 1/4 do total da área cultivada da província). A produção rondava as 65 mil toneladas. A produtividade era baixa: 600 kg / ha (2 mil kg /ha em casos excecionais).

A cultura era feita em regime de rotação, sem seleção de sementes, sem recurso a adubos ou estrume, proporcionando fracos rendimentos e exigindo grande esforço nas várias fases do ciclo de produção (sementeira, monda, colheita, protecção contra os babuínos...). Principais regiões de produção: o leste da Guiné, Farim, Bafatá, Gabu, onde os solos são mais leves e a precipitação menor. 

No entanto, esta cultura era já considerada na época como muito lesiva do ambiente, pelo uso intensivo dos solos, a redução do pousio, as queimadas... Tradicionalmente os camponeses da região praticavam um sistema de rotação mancarra - cereal - pousio, considerado pouco eficaz. Acrescente ainda o sistema de comercialização, penalizando fortemente os produtores. (Fonte: adapt. de Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa,  1996,  44 pp., policopiado).

(***) Arroz: a área de cultivo devia representar 150 mil hectares no início da década de 60, antes da guerra, o que equivalente a 38% do total, concentrando-se em especial nas regiõe do Cacheu, Bissorã e Mansoa, a norte do Rio Geba, e Fulacunda e Catió, a sul. Havia dois tipos de cultura de arroz: o alagado, ou de bolanha (nas regiões mais ribeirinhas, no litoral); e o arroz de sequeiro, no interior, praticado sobretudo pelos manjacos e fulas. 

A produtividade é também baixa, oscilando entre os 30 kg e os 2 mil kg por hectare, com um a média de 800 kg/ha. A produtividade é sempre maior no arroz alagado. A Guiné passou a ser autossuficiente em matéria de arroz, sobretudo a partir dos anos 30 até ao início da guerra colonial. Exportava arroz para a metrópole, para a África francesa (Senegal e Guiné-Conacri) e para Cabo Verde. Com a guerra, a situação inverteu-se: passou a importar. (Fonte: Dragomir Knapic, 1966, op. cit.).

(****) A terceira cultura de maior peso na Guiné era a do milho (cavalo, preto e basil), mas que tinha um baixíssimo valor alimentar. A área ocupada era sensivelmente a mesma do arroz, mas a produção era 3 vezes inferior: apenas cerca de 50 mil toneladas. Era também uma cultura devastadora para o ambiente, sendo precedida de derrube da floresta e de queimadas...

Outras culturas, mas de menor  impacto na economia e na dieta do guineense do nosso tempo: fundo (30 mil hectares / 10 mil toneladas /  300 quilos por hectare), o feijão, a mandioca, a batata doce, o inhame... Dos frutos mais comuns,  e com relevância para a alimentação, destaque-se a manga, a papaia, a banana, a laranja,  a tangerina, o limão,  a cola, o cajú, o coco... A cana de acúcar também era cultivada, no litoral, destinando-se praticamente apenas para a produção de aguardente de cana.

Outras culturas, com valor económico e alimentar: o óleo de palma (extraído da palmeira de dendê, "Elaeis guineensis"), o coconote, gergelim...

Quanto á riqueza pecuária era estimada, em 1961,  em mais de 230 mil cabeças de gado bovino. Havia umas escassas dezenas de cavalos e mais de 3800 burros. Outros animais domésticos: cabras (c. 144 mil), porcos (c. 98 mil) e ovelhas (c. 54 mil). (Fonte: Dragomir Knapic, 1966, op. cit.).


segunda-feira, 30 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P32: As aldeias fulas em autodefesa (Luís Graça)

Excertos do diário de um tuga. Texto de L.G.:


7 de Março de 1970:

Sansancuta [regulado de Badora]:

1. Como esses bandos sinistros de jagudis (abutres) que pousam sobre a morança dos que estão a morrer, também o espectro negro da fome paira sobre as tabancas da Guiné. Porque a desnutrição, essa, é já endémica: facilmente se constata, sobretudo nas crianças, toda uma série de sintomas patológicos provocados pelas carências proteicas e vitamínicas de uma alimentação quase só à base de cereais (arroz, milho, fundo).

E, no entanto, trata-se dum território fértil, com umas das mais elevadas densidades demográficas do continente africano, concentrando-se as populações em especial nas bacias hidrográficas, junto às bolanhas e lalas (regiões alagadiças ricas em húmus) onde cultivam o arroz.

Mas a repressão colonialista e a escalada da guerra vêm modificar profundamente a geografia humana e económica da Guiné: por um lado, provocam o êxodo massiço de populações inteiras (balantas, manjacos, mandindas, beafadas, etc.) para as zonas controladas pelos guerrilheiros e para os países límitrofes (Senegal e Guiné-Conacri). E por outro, assiste-se ao fenómeno da militarização dos fulas (uma tribo islamizada cujos régulos detêm ainda algum do seu antigo poder feudal), através não só do reagrupamento e organização em autodefesa das suas aldeias como também da formação de milícias.

2. Eis a razão por que, a partir de 1963, se tem vindo a acentuar o decréscimo da produção agrícola (que aliás é quase estritamente para autoconsumo). Mas vejamos as duas culturas ainda comercialmente importantes: o amendoim e o arroz.

O amendoim (ou mancarra) constituiu só por si cerca de metade do valor total das exportações (da Guiné para a Metrópole).

Muito antes ainda de passar à clandestinidade, o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral (que dirigiu uma brigada técnica dos Serviços Agrícolas Coloniais em Fá, aqui perto de Bambadinca, tendo feito estudos sobre a produtividade de diversos tipos de amendoim), já tinha denunciado o perigo que representava a monocultura desta oleaginosa para o desenvolvimento económico da Guiné, e criticando implicitamente a sua importância estratégica como matéria-prima para os monopólios metropolitanos (a CUF, aqui representada pela Casa Gouveia).

Tendo sido imposta ao indígena pela administração colonial, a cultura da mancarra está hoje em declínio irreversível: os fulas ainda são os únicos que lavram mancarra (cultivam amendoim) na periferia das suas tristes tabancas, cercadas de arame farpado e de minas. É com o produto da sua venda que o camponês fula paga, no posto administrativo, a sua taxa domiciliária, colectada na base do número de mulheres (e moranças) que possui! Curiosa é a origem da mancarra, a semente do diabo, segundo a lenda fula.

O segundo produto é o arroz. Antes da guerra, dois terços eram exclusivamente produzidos pelos balantas, a maior etnia do território: 150 mil, segundo o censo de 1962. Inclusive o arroz chegou a ser exportado. Hoje mal chega para o autoconsumo, tornando-se dramática a sua carência nos anos de menor pluviosidade.

Entretanto, no circuito da economia monetorizada, devido à inflação provocada pela guerra, a população que está sob o nosso controlo vê-se muitas vezes na contingência de vender, ao pequeno comerciante português ou libanês, o arroz que produz para comer (preço por quilo: 3 pesos!) para comprar umas chinelas de plástico:

- O senhor administrador dá porrada se pessoal africano anda descalço em Bambadinca!, diz um dos meus soldados fulas.

Noutras ocasiões, trata-se de fazer dinheiro para pagar a taxa domiciliária, imposta ao guinéu e devida pelos escassos metros quadrados de superfície que ocupa a sua morança.

Entretanto, quando as reservas se acabam no tempo seco, o guinéu volta a adquir o mesmo arroz pelo dobro do preço (6 pesos).

O drama destes pobres camponeses que foram obrigados a abandonar as suas áreas de cultura, arrancadas à floresta tropical ou à savana arbustiva, de geração em geração, pude senti-lo aqui em Sansancuta onde estive em autodefesa.

3. Sansancuta faz parte dum eixo de aldeias estratégicas , como se diz no Vietname, no limite sul do regulado de Badora, no Sector L1, e que funciona como uma espécie de pequena muralha da China, cortando as linhas de infiltração das forças da guerrilha que eventualmente se dirijam para o interior daquele regulado a partir do Rio Corubal.

Estão aqui reagrupados os habitantes de três tabancas, uma das quais Sare Ade cuja população, sobretudo os mais jovens, não se conformou com a ordem de deportação dada pelo comando militar de Bambadinca, tendo fugido para o nordeste (Gabu) e inclusivamente para o Senegal, que também é chão fula (Cassamance).

Hoje, de resto, só há duas alternativas para um homem fula: (i) oferece-se como voluntário para o exército colonial, passando primeiro pela milícia; ou (ii) emigra todo os anos, na época das chuvas, para o chão de francês (Senegal) a fim de trabalhar nos campos de mancarra.

É a única maneira de fugir ao universo concentraccionário da sua tabanca,e sobretudo à fome. Essa fome visceral que leva as crianças a aproveitar tudo aquilo que nós, tugas, nos damos ao luxo de deitar fora (vi-as aqui a assaram na brasa as vísceras de um frango que o bom do Suleimane me arranjou e reparti-las equitativamente entre si).

Fome, subnutrição, doença, carências de toda a ordem (roupas, medicamentos...) contrastam, de modo chocante, com a relativa opulência com que um tuga , como eu, aqui vive: ainda ontem me vieram trazer o reabastecimento semanal e, entre outros produtos enlatados, deixaram-me cinco quilos (!) de fiambre dinamarquês, para dois mecos, para mim e para o operador de transmissões, já que as praças são desarranchadas. Tivemos de o comer em menos de vinte e quatro horas, sob pena de se estragar com o calor, e, uma vez aberta a lata, repartir o resto do fiambre pelos putos da aldeia e soldados africanos da secção. É claro que lhe chamaram um figo, não tendo desconfiado sequer que tal iguaria pudesse ser feita de carne.. de porco!

Deportado e reagrupado em aldeias estratégicas (ou tabanacs em a/d, chamem-lhe o que quiserem), o camponês da Guiné que ama os grandes espaços livres (a floresta onde vai caçar a gazela, a bolanha onde cultiva o arroz, o rio onde vai buscar o mafé) vê-se confinado a uma área de reserva onde pratica uma miserável agricultura de subsistência.

Ironicamemnte as fiadas de arame farpado que cercam as palhotas cónicas,as trincheiras e os abrigos de combate, os espaldões para as armas pesadas, as valas de comunicação e os abrigos passivos das tabancas em a/d, ficarão proventura como os únicos vestígios arqueológicos da presença duma civilização tecnologicamente superior nesta parte ocidental de África.

Luís Graça

______________

Excertos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II.26:


A secção destacada em Sinchã Mamadjai foi transferida em 24 de Fevereiro para Sansancuta a fim de controlar os trabalhos de autodefesa da tabanca, regressando definitivamente a Bambadinca a 12 do mês seguinte [Março de 1970].