"O Morteiro" é uma paródia ao poema 'A Lágrima', de Guerra Junqueiro, incluído no 'Relatório de combate de 9 a 12 de Abril de 1918 - Lembranças', caderno manuscrito por Raul Pereira de Araújo, alferes de artilharia, transmontano, sobrevivente da Batalha de La Lys.
O autor do poema é desconhecido, mas foi seguramente escrito por um alferes.
Como escreveu Guilhermina Mota, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbram (2006, p. 92): " Muitos dos poemas de guerra são de autores desconhecidos (...). É provavelmente o caso de "O morteiro". Não restará dúvida, porém, pelo que se depreende da leitura, que foi escrito por um alferes. Pelo que, se os versos não pertencem ao nosso relator [,o alferes de artilharia Raul Pereira d'Araújo], com eles devia sentir forte identificação. Neles, não é a qualidade literária que mais importa, mas sim a manifestação do sentir. Através de uma critica verrinosa, o autor deixa entrever uma grande desilusão com as patentes superiores, insinuando a sua inépcia, a sua tibieza, o seu diletantismo, destacando no "velho solar antigo" a sua origem de classe."
Raul Pereira de Araújo [, foto à esquerda, acima, reproduzido da Ilustração Portugueza. II série, n.° 596 (23 de Julho de 1917), p. 651, cit por Guilhermina Mota, 2006]:
(i) nasceu em Trás-os-Montes, na vila de Mesão Frio, em 15 de Janeiro de 1892;
(ii) ali fez a instrução primári, rumando depois à cidade do Porto, onde completaria, no Liceu Rodrigues de Freitas o "Curso Complementar de Sciencias,com inglez", em 1912;
(iii) assentou praça em 15 de Janeiro de 1913, tendo feito a recruta no Regimento de Infantaria 23, em Coimbra, em cuja Universidade se encontrava a estudar;
(iv) concorreu à Escola de Guerra, no ano lectivo de 1914-1915, tendo terminado o curso em 1916;
(v) foi depois promovido a aspirante a oficial, e colocado no Regimento de Artilharia 7, em Viseu, tendo passado antes pela Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, a fazer o curso de tiro.
(vi) promovido a alferes de artilharia, em 28 de maio de 1917, parte no mês seguinte parte para França para integrar o Corpo Expedicionário Português, tendo sido colocado na 3ª Bateria do 2.° Grupo de Baterias de Artilharia.
(vii) viive os meses seguintes nas trincheiras da Flandres e encontrava-se na frente em 9 de abril de 1918, quando se deu a Batalha de La Lys;
Raul Pereira de Araújo [, foto à esquerda, acima, reproduzido da Ilustração Portugueza. II série, n.° 596 (23 de Julho de 1917), p. 651, cit por Guilhermina Mota, 2006]:
(i) nasceu em Trás-os-Montes, na vila de Mesão Frio, em 15 de Janeiro de 1892;
(ii) ali fez a instrução primári, rumando depois à cidade do Porto, onde completaria, no Liceu Rodrigues de Freitas o "Curso Complementar de Sciencias,com inglez", em 1912;
(iii) assentou praça em 15 de Janeiro de 1913, tendo feito a recruta no Regimento de Infantaria 23, em Coimbra, em cuja Universidade se encontrava a estudar;
(iv) concorreu à Escola de Guerra, no ano lectivo de 1914-1915, tendo terminado o curso em 1916;
(v) foi depois promovido a aspirante a oficial, e colocado no Regimento de Artilharia 7, em Viseu, tendo passado antes pela Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, a fazer o curso de tiro.
(vi) promovido a alferes de artilharia, em 28 de maio de 1917, parte no mês seguinte parte para França para integrar o Corpo Expedicionário Português, tendo sido colocado na 3ª Bateria do 2.° Grupo de Baterias de Artilharia.
(vii) viive os meses seguintes nas trincheiras da Flandres e encontrava-se na frente em 9 de abril de 1918, quando se deu a Batalha de La Lys;
(viii) foi um dos sobreviventes da batalha de La Lyz, traumática para o exército português e para o país, ao ponto de ter chegado a ser descrita na época como o "Novo Alcácer-Quibir"...
Fonte: MOTA, Guilhermina - Batalha de La Lys: um relato pessoal. "Revista Portuguesa de História" t. XXXVIII (2006) pp.77-107
1."O morteiro", paródia à "Lágrima" de Guerra Junqueiro
(Mota, 2006, pp. 104-107)
Noite de frio intenso, uma trincha escavada,
Lúgubre, sepulcral, agoirenta... e mais nada,
Trincheira onde a morte apanha vis pancadas
Em banquetes de sangue arrancado em ciladas
Na trincha oposta, onde o boche reina e impera
Em rasgos e expansões de forte besta-fera.
Um oficial audaz, olho do batalhão,
Descobriu, dum morteiro grosso, a posição,
Maquinismo feroz que se cumpre o dever,
Ao perto e ao longe tudo faz estremecer.
E, ao saber que existia ali a posição,
Caiu sobre os joelhos e disse: - Perdão!
Consente-me que passe; sabes que é preciso
Dar exemplo ao soldado, fingir o sorriso,
Para que ele veja em mim virtude, um nobre exemplo
De guerreiro d' outrora. Mas eu te contemplo
Com o maior respeito; nunca te fiz mal.
Passa depois o chefe de certa brigada,
E o morteiro feroz com o seu norme bojo
Sorriu... tremeu de raiva... e cuspiu com nojo.
Aproximou-se então um cachapim tonante,
Com ar superior, nojento, revoltante.
Imensas ordenanças quais tristes jumentos,
Carregam com mil mapas e regulamentos
Mas, ao saber ali da triste aparição,
Ficou desnorteado e gaguejou então:
- Com a minha inteligência eu posso num momento
O kaiser derrubar e o próprio firmamento!
(Mota, 2006, pp. 104-107)
Noite de frio intenso, uma trincha escavada,
Lúgubre, sepulcral, agoirenta... e mais nada,
Trincheira onde a morte apanha vis pancadas
Em banquetes de sangue arrancado em ciladas
Na trincha oposta, onde o boche reina e impera
Em rasgos e expansões de forte besta-fera.
Um oficial audaz, olho do batalhão,
Descobriu, dum morteiro grosso, a posição,
Maquinismo feroz que se cumpre o dever,
Ao perto e ao longe tudo faz estremecer.
Eis que passa um general com seu estado-maior,
Tenentes, capitães e creio que um majorE, ao saber que existia ali a posição,
Caiu sobre os joelhos e disse: - Perdão!
Consente-me que passe; sabes que é preciso
Dar exemplo ao soldado, fingir o sorriso,
Para que ele veja em mim virtude, um nobre exemplo
De guerreiro d' outrora. Mas eu te contemplo
Com o maior respeito; nunca te fiz mal.
É certo que por vezes do Quartel-General,
Em notas irritantes cheias de iniquidade,
Em notas irritantes cheias de iniquidade,
Ordeno muito tino, muita actividade,
Mas nada mais; já vês portanto que o meu crime
É bem banal e encerra apenas, ele exprime
A pretensão sabuja de mostrar tesura
Que não tenho, confesso. Mas a morte é dura
E eu não quero morrer; por isso tem paciência,
Esparge sobre mim um pouco de clemência
Que a minha cobardia, com respeito e agrado,
Te dirá sempre: mil vezes muito obrigado.
E o morteiro feroz com seu enorme bojo...
Sorriu... tremeu de raiva... e cuspiu com nojo.
Mas nada mais; já vês portanto que o meu crime
É bem banal e encerra apenas, ele exprime
A pretensão sabuja de mostrar tesura
Que não tenho, confesso. Mas a morte é dura
E eu não quero morrer; por isso tem paciência,
Esparge sobre mim um pouco de clemência
Que a minha cobardia, com respeito e agrado,
Te dirá sempre: mil vezes muito obrigado.
Sorriu... tremeu de raiva... e cuspiu com nojo.
Passa depois o chefe de certa brigada,
Muito pressuroso e proa alevantada,
E, ao conhecer a história do grosso morteiro,
Deixou de ser um chefe... para ser sendeiro
Titubeou, vacilou, perturbou-se e caiu.
Depois de um silêncio enorme quando sentiu
Reanimar-se, disse assim: - Morteiro amigo!
Eu tenho, em Portugal, velho solar antigo
Cheio de raridades ao mais alto preço!
E, ao conhecer a história do grosso morteiro,
Deixou de ser um chefe... para ser sendeiro
Titubeou, vacilou, perturbou-se e caiu.
Depois de um silêncio enorme quando sentiu
Reanimar-se, disse assim: - Morteiro amigo!
Eu tenho, em Portugal, velho solar antigo
Cheio de raridades ao mais alto preço!
Pois bem, deixa-me passar, eis o que te peço,
Dez minutos somente de tréguas na guerra
E prometo-te levar-te para a minha terra.
Para no meu solar servires de ornamento
Em rico salão nobre e cheio de espavento
E, se um dia morrer, hei-de deixar escrito
Que tu foste a mais nobre arma deste conflito,
E assim atestarás depois à eternidade
Como nós espalhamos a...Fraternidade!
Para no meu solar servires de ornamento
Em rico salão nobre e cheio de espavento
E, se um dia morrer, hei-de deixar escrito
Que tu foste a mais nobre arma deste conflito,
E assim atestarás depois à eternidade
Como nós espalhamos a...Fraternidade!
E o morteiro feroz com o seu norme bojo
Sorriu... tremeu de raiva... e cuspiu com nojo.
Aproximou-se então um cachapim tonante,
Com ar superior, nojento, revoltante.
Imensas ordenanças quais tristes jumentos,
Carregam com mil mapas e regulamentos
Mas, ao saber ali da triste aparição,
Ficou desnorteado e gaguejou então:
- Com a minha inteligência eu posso num momento
O kaiser derrubar e o próprio firmamento!
Com um papel e um lápis, arte, génio e manha,
Eu faço derruir num ápice a Alemanha!
Eu faço derruir num ápice a Alemanha!
Olhando bem para mim, assim de frente a frente
Vê-se logo que eu tenho um cérebro potente!
E, para corroborar tudo isto, afinal,
Olhai-me bem e vede as palmas e o braçal.
Pois palmas e braçal tudo isto eu dou, morteiro!
Se prometeres deixar-me o meu corpinho inteiro
E eu dou-te mais ainda planos de extermínio
Para espalhares a dor, a dor e o teu domínio
E se não estás contente ainda, paciência,
Só posso dar-te mais e minha inteligência
E assim poderás tu encher a tua pança
À custa de mil bifes e da própria França.
E o morteiro feroz, com seu enorme bojo
Sorriu... tremeu de raiva... e cuspiu de nojo.
De súbito um alferes, que tudo tinha visto,
E, para corroborar tudo isto, afinal,
Olhai-me bem e vede as palmas e o braçal.
Pois palmas e braçal tudo isto eu dou, morteiro!
Se prometeres deixar-me o meu corpinho inteiro
E eu dou-te mais ainda planos de extermínio
Para espalhares a dor, a dor e o teu domínio
E se não estás contente ainda, paciência,
Só posso dar-te mais e minha inteligência
E assim poderás tu encher a tua pança
À custa de mil bifes e da própria França.
E o morteiro feroz, com seu enorme bojo
Sorriu... tremeu de raiva... e cuspiu de nojo.
De súbito um alferes, que tudo tinha visto,
Assoma na trincheira como um imprevisto,
Vem nervoso, colérico, d'olhos em brasa,
O seu olhar crepita, fere, mata, abrasa.
E, meditando assim em tanta vilania
Que por ali passava em todo aquele dia,
Estremece, febril; e, como um furacão,
Dirige-se para a linha todo em convulsão
E, quando chega ali, subindo ao parapeito,
Assim fala ao morteiro descobrindo o peito:
Vem nervoso, colérico, d'olhos em brasa,
O seu olhar crepita, fere, mata, abrasa.
E, meditando assim em tanta vilania
Que por ali passava em todo aquele dia,
Estremece, febril; e, como um furacão,
Dirige-se para a linha todo em convulsão
E, quando chega ali, subindo ao parapeito,
Assim fala ao morteiro descobrindo o peito:
- Que pena a minha Pátria, terra de brasões,
Agasalhar em si canalhas e poltrões!
Nunca julguei em terra de heróis e guerreiros
Pudesse haver assim tamanhos embusteiros!
Nunca, jamais, em tempo algum sequer um dia
Pensei de Portugal em tanta covardia,
Nunca julguei que em campo de heróis e façanhas
Pudessem aparecer sabujices tamanhas!
Que nunca ninguém saiba os crimes deste dia,
Que eu não quero viver em tanta porcaria,
Por isso, ó morteiro, te peço bem do fundo,
Dispara um tiro só, leva-me do mundo.
E o morteiro bojudo, o morteiro audaz
Expediu um pesado... e matou o rapaz.
[Revisão e fixação de texto: LG]
2. Poema original, "A Lágrima", de Guerra Junqueiro, datado de 1888 [, texto recuperado aqui]
E o velhinho andrajoso e magro como um junco,
"Voa a ave no azul e passa longe o amor,
Nunca julguei em terra de heróis e guerreiros
Pudesse haver assim tamanhos embusteiros!
Nunca, jamais, em tempo algum sequer um dia
Pensei de Portugal em tanta covardia,
Nunca julguei que em campo de heróis e façanhas
Pudessem aparecer sabujices tamanhas!
Que nunca ninguém saiba os crimes deste dia,
Que eu não quero viver em tanta porcaria,
Por isso, ó morteiro, te peço bem do fundo,
Dispara um tiro só, leva-me do mundo.
E o morteiro bojudo, o morteiro audaz
Expediu um pesado... e matou o rapaz.
[Revisão e fixação de texto: LG]
Manhã de Junho ardente. Uma encosta escavada,
Sêca, deserta e nua, à beira d'uma estrada.
Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha,
Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.
Sôbre uma folha hostil duma figueira brava,
Mendiga que se nutre a pedregulho e lava,
A aurora desprendeu, compassiva e divina,
Uma lágrima etérea, enorme e cristalina.
Lágrima tão ideal, tão límpida, que ao vê-la,
De perto era um diamante e de longe uma estrêla.
Passa um rei com o seu cortejo de espavento,
Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.
- "No meu diadema, disse o rei, quedando a olhar,
Há safiras sem conta e brilhantes sem par,
"Há rubins orientais, sangrentos e doirados,
Como beijos d'amor, a arder, cristalizados.
"Há pérolas que são gotas de mágua imensa,
Que a lua chora e verte, e o mar gela e condensa.
"Pois, brilhantes, rubins e pérolas de Ofir,
Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir
"Nesta c'roa orgulhosa, olímpica, suprema,
Vendo o Globo a teus pés do alto do teu diadema!"
E a lágrima deleste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
Couraçado de ferro, épico e deslumbrante,
Passa no seu ginete um cavaleiro andante.
E o cavaleiro diz à lágrima irisada:
"Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada!
"Far-te hei relampejar, de vitória em vitória,
Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória!
"E à volta há-de guardar-te a minha noiva, ó astro,
Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.
"E assim alumiarás com teu vivo esplendor
Mil combates de heróis e mil sonhos d'amor!"
E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.
Montado numa mula escura, de caminho,
Passa um velho judeu, avarento e mesquinho.
Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro:
Grandes arcas de cedro, abarrotadas d'oiro.
E o velhinho andrajoso e magro como um junco,
O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco,
Vendo a estrêla, exclamou: "Oh Deus, que maravilha!
Como ela resplandece, e tremeluz, e brilha!
"Com meu oiro em montão podiam-se comprar
Os impérios dos reis e os navios do mar,
"E por esse diamante esplêndido trocara
Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!"
E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
Debaixo da figueira, então, um cardo agreste,
Já ressequido, disse à lágrima celeste:
"A terra onde o lilaz e a balsamina medra
Para mim teve sempre um coração de pedra.
"Se a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso,
O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.
"Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos,
Ouvi trinar, gorgear a música dos ninhos.
"Nunca junto de mim ranchos de namoradas
Debandaram, cantando, em noites estreladas...
"Voa a ave no azul e passa longe o amor,
Porque ai! Nunca dei sombra e nunca tive flor!...
"Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d'água,
Cai na desolação desta infinita mágoa!"
E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Tremeu, tremeu, tremeu... e caíu silenciosa!...
E algum tempo depois o triste cardo exangue,
Reverdecendo, dava uma flor côr de sangue,
Dum roxo macerado, e dorido, e desfeito,
Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito...
E ao cálix virginal da pobre flor vermelha
Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...
25 de Março de 1888.
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Nota do editor: