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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24748: Manuscrito(s) (Luís Graça ) (238): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte V: um país de brandos costumes: quatro mil degredados em Angola, nos finais do séc. XIX, três em cada quatro dos colonos brancos


Porto : Museu Nacional Soares dos Reis > "O desterrado"0¥(¥, escultura, em mármore de Carrrara, datada de 1877.  Uma obra-prima da escultura portuguesa naturalista do séc. XIX. Autoria; Soares dos Reis (1847-1889). Inspirado no extenso e pungente poema de Alexandre Herculano, que conheceu bem o exílio:  "Tristezas do Desterrado" (1852):  Fonte: Imagem do domínio público,  adaptada. Cortesia da Wikimedia Commons. 



Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, I e II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 53 e 54")



Camilo Castelo Branco.
Cortesia de Wikipedia


1. Às voltas com a figura, intrigante e contraditória, de Zé do Telhado (1816-1875) (*), tinha que ler as "Memórias do Cárcere", do Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825-Vila Nova de Famalicão, 1890), obra que eu, confesso, não conhecia.

Trata-se, de resto, de um autor prolífero, compulsivo, que, para além de uma história de vida, pessoal, amorosa, familiar,  turbulenta, truculenta, infeliz, que acabou em tragédia (o suicídio, aos 65 anos), nos deixou mais de duas  centenas e meia de títulos, de quase todos os géneros, embora de qualidade literária desigual. (Declaração de interesse: não é um dos meus escritores favoritos, mas têm sido as "Memórias do Cârcere", nos últimos tempos,  uma leitura de cabeceira; a par disso, conheço meia dúzia de títulos do autor.)

É um prosador portentoso, genial, um mestre da língua, com uma enorme capacidade de efabulação, e com grandes recursos estilísticos, mesmo se algumas das suas criações são dramalhões de ""faca e alguidar, ao gosto do público burguês oitocentista, que devorava os "folhetins" camilianos  (publicados semanalmente na imprensa), com a mesma avidez com que os portugueses no pós-25 de Abril consumiam as telenovelas brasileiras.

Deixou-nos, muitas vezes a traço grosso, um retrato de uma época conturbada socialmente em que Portugal estava longe de ser o tal país de brandos costumes que, no nosso tempo de meninos e moços, nos tentaram impingir na escola e na catequese.

O livro, "Memórias do Cárecere", foi escrito em 40 dias (cerca de 500 pp.
), depois dele sair da prisão, como explica no prefácio da 2ª ediçáo (1862). É constituído por mais de uma trintena de "historietas" (o termo é dele), incluindo um esboço biográfico relativo à figura do Zé do Telhado (op. cit, vol, II, cap XXVI, pp. 83-107).

E é seguramente ele, Camilo,  quem, através do seu advogado do Porto,  Marcelino de Matos, o salva da condenação à morte (pena que ainda não tinha sido abolida...), a ele,  Zé do Telhado, e  depois, com o livro, o transforma  numa herói romântico, com um destino trágico ( tal como  a  Brasileira de Prazins e tantas outras figuras da tragicomédia camiliana, sem esquecer o Simão Botelho e a Teresa Albuquerque, protagonistas da novela, com muitos traços autobiográficos, "Amor de Perdição", escrito na prisão, em 15 dias, em 1861).

Na realidade, o Zé do Telhado (das "Memórias do Cárcere")  é também uma criatura camiliana, romântica e trágica como o  seu criador...

No ano e picos em que esteve na cadeia do Tribunal da Relação do Porto, entre outubro de 1860 e novembro de 1861 (se não erro), pelo crime de adultério, o escritor conheceu dezenas e dezenas de homens (e também mulheres), a maior parte condenados, à espera de partir para Lisboa para depois aí embarcarem para o desterro em África; homicidas, parricidas, 
infanticídas, violadores, adúlteras, ladrões, bandidos, sicários, loucos, cleptómanos, moedeiros falsos, etc.

Um pouco ao acaso, ao sabor da leitura, selecionei uns tantos excertos do livro (I volume),  com algumas destas figuras, representantes da subumanidade que apodrecia nas enxovias da cadeia do Porto. Escolhi excertos menos "sombrios", de preferência com descrições  e cenas galhofeiras,   grotescos ou picarescas, fazendo  jus sobretudo ao sarcasmo com que o autor tratava os "maus fitas" de então ( a "corja", como ele lhes chamava).

Na época já se discutia vivamente a urgência da reforma do sistema prisional e o livro do Camilo, ao denunciar as miseráveis condições de carceragem em que viviam então os reclusos (que tinham de pagar "cama, mesa e roupa lavada"!), também dá um importante contributo nesse sentido. Aires Gouveia era então o grande paladino dessa reforma, cuja efectivação há de chegar ao séc. XX, com a criação de um moderno sistema penitenciário. (**)

2. Excertos de "Memórias do Cárcere" (I Volume, 1862):

(i) José Bernardino Tavares, lavrador de Santa Maria da Feira, que roubou a Felícia ao abade, acabando por ser preso por ajustes de contas com o rival (pp. 170/178):

(…) Tinha o padre no presbitério uma espadaúda a moça, que era o feitiço de seu amo, e dos rapazes. Rentavam-lhe todos, e ela a todos voltava as costas de esquiva, e de soberba pelas peias em que trazia o coração do abade (pág. 170).

(…) José Bernardino tirou-se de seus cuidados e fez dois dedos de namoro à sécia. (pág. 170).

(…) As carícias do abade como que lhe cheiravam a simoneta, os colóquios ao lar com ele, nas noites grandes, faziam-na tosquenejar, bocejar e dormir sobre a roca (pág. 171).

(…) Aquela casta de mulheres, quando adregam de amar, criam sangue novo, espanejam-se, enramalham-se, são como leoas na selva, quando ruído do leão lhes sacode os músculos (pág. 171).

(…) – Traz o leite, Felícia!, berra o pastor daquele tinhosa ovelha, que àquela hora estava já tresmalhada e sisada no aprisco do senhor José Bernardino (pág. 171).

(…) O abade amava Felícia quando todos as potências da sua imoralidade, da sua compleição, da sua estupidez (pág. 172).

(…) Uma noite pegaram lhe fogo à casa, e por um triz que a labareda não chorrisca os torresmos do padre (pág. 174).

(…) Nenhum outro preso [como o José Bernardino] encontrei ali tão ansioso da liberdade, e ao mesmo tempo tão regalado de amiudadas visitas de valentes e atoicinhadas mocetonas de sua terra (pág. 175).

(…) Com a morte do soberano [o rei Dom Pedro V (1837-1851), que visitou duas vezes o cárcere do Tribunal da Relação do Porto, quando o Camilo lá estava, em 1860/61 ] morreram as esperanças do preso [de obter perdão ou comutação da pena]. Desvanecidas estavam elas já para mim. A palavra dos reis era sagrada quando os reis governavam; agora apenas reinavam. Um amanuense de secretaria basta a entupir os canais por onde aflui a misericórdia do rei ao povo (pág, 177).

(ii) Outra história de um abade, minhoto, mas este homicida (matou a tiro o irmão da amante), e que conseguira fugir da cadeia de Braga, antes de voltar a ser apanhado e metido no cárcere do Tribunal da Relação do Porto (pp. 221/227)

(…) O padre Manuel [dos Arcos] teria cerca de trinta e oito anos, os olhos espelhavam melhor a alma, que eu sinceramente imaginava má (pág, 221).

(...) Estava ao padre condenado a calceta perpétua. Não sei de pena mais dura nem mais aviltante (pág. 221).

(…) Padre Manuel tinha uns amores com uma mocetona do concelho dos Arcos; e a mocetona tinha um irmão honrado, contrário a tais amores. Prevaleceu o coração do padre sobre as razões do irmão, e o escândalo sobre os rumores da opinião pública.

O padre era valente e temido; e a moça, afoitada por ele, afrontava o desprezo, e ostentava despejadamente a sua concubinagem (pág. 222).

(…) Estava o padre Manuel nas cadeias de Braga e entendeu que estava mal (pág. 222).

(…) Tomou por caminhos travessos que o levavam aos Arcos, e, porventura, surpreendeu a moça fiando e humedecendo a estriga com lágrimas, senão é que a encontrou contemplativa e sentada no rebordo da pia dos cevados (pp. 223/224).

(…) A moça foi à salgadeira, escolheu os melhores salpicões, respigou da horta os mais tenros renovos, e fez a ceia como as mulheres laboriosas de Homero, e ele comeu à tripa forra, como os heróis do mesmo poeta, que conhecia melhor o seu mundo e o nosso, que nós outros romancistas, falsificadores do coração humano (pág. 224).

(iii) Sobre o parricida, que foi desterrado para África (pp. 180/187):

(…) O hospital da misericórdia [do Porto] não queria receber doidos, porque não tinha enfermaria especial. Ninguém o dirá do estabelecimento de caridade mais dotado e rico do país. (pág, 180).

(…) Eu tenho de coração humano ideias sempre em divórcio com as ideias comuns. Quero acreditar que há remorsos e saudades naquele homem, que foi filho, que teve mãe, que orou com ela, que a viu morta, que a chorou talvez nos braços do pai, que foi tudo o que são os bons filhos, antes de serem parricidas. (pág. 187).

(iv) Os fabricantes e passadores de moeda falsa também passavam pela cadeia da relação do Porto, era um delito frequente na época. Um deles foi desterrado para Cabo Verde, deixando no Porto mulher e três filhos (pp. 117/129)

(…) Três deles esta hora estão a caminho da África, e não mais para eles aquele ardente céu lhes dará monção de voltarem à pátria. (pág. 117)

(…) [Um deles] o senhor Máximo que, ao tempo da sua prisão, tinha um lá, tinha no largo do Carmo um botequim. (pãg. 117)

(…) Na prisão trabalhava ele incansavelmente, desde o arraiar da manhã até alta noite na manufatura de caixinhas para as boticas, e fazia trezentas por dia. O lucro de cada tarefa diária orçava por quatrocentos e oitenta réis.

(...) Quando foi preso, tinha ele em começos de formatura na escola médico-cirúrgica um filho; outro em latinidade, e projetava educar o terceiro também na carreira das letras. Sua mulher tinha nascido, senhora, e recatada se mantivera sempre como exemplar mãe e esposa (pág. 118).

(...) Vou, como iria para a sepultura, deixando protegida mulher e filhos (...). De ora avante, já se me dá de morrer aqui ou no degredo (pág. 119).


(v) Zé do Telhado, salvo da pena capital, condenado a degredo perpétuo com trabalhos públicos  (pp.  83/107)

(…) Marcelino de Matos defendeu gratuitamente o seu cliente. Querer dar-lhe a liberdade era um paradoxo,  querer salvá-lo da pena capital era um arrojo. E salvou-o! 

Não foi o sofisma que embaíu os jurados;  foi a sincera e comovida eloquência que os pungiu a lágrimas. Muitas deviam ser necessárias para lavar tanta nódoa de sangue acusador! (pág. 105).

(…) Marcelino de Matos venceu muito; fez que José do Telhado fosse julgado como réu de uma única morte, sem premeditação, e como caluniado na maioria dos roubos arguidos. Fez muito ali, onde estavam os testemunhos, os roubados, os feridos, a multidão que o vira,  ou só vira pelos olhos do seu terror!

José Teixeira foi condenado a degredo perpétuo com trabalhos públicos.

A meio caminho, quando voltava ao antecipado inferno da reclusão incomunicável, encontrou sua mulher que lhe saiu a despedir-se… para sempre (pág. 106).

(…) Um dia, quando eu já era livre,  foi-lhe intimada imprevista ordem de embarcar para Lisboa. José Teixeira entroixou a sua pequenina bagagem, desceu a entrar na escolta, estendeu os pulsos às cordas, e pediu a um preso circunstante um vintém de esmola para cigarros. E recebeu a esmola mais alegre do que tinha recebido, em Valpaços, uma condecoração  [a "Torre e Espada"] por ter salvo a vida ao Bayard português [o  general Sá da Bandeira]   (pág. 107).

(...) Os jornais têm contado façanhas do José Teixeira do Telhado  contra a negraria [em Angola] . O comércio de África deve lhe muito, e espera muito mais daquele braço de ferro, e sede de sangue. Os pretos é que pagam os agravos que os brancos lhe fizeram cá. Se José Teixeira for esperto, pode morrer, pelo menos, rei daqueles sítios. (Nota da segunda edição). (Nota de rodapé, pag. 107). (#)

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Fonte: Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, I Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 53).

(#) Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966 (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 54).

(Seleção, revisão, fixação de texto e notas, LG)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24745: Manuscrito(s) (Luís Graça) (237): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte IV: 10 anos de impunidade

(**) Vd. Diário de Notícias, 1 de julho de 2017 : "A pena de morte estava abolida na consciência social desde 1840". Entrevista do director do Museu do Aljube, por Ana Sousa Dias.

 [O entrevistado é Luís Farinha. Estranhamente não é mencionado o seu nome, nesta peça do DN. Recorde.se que ele, com o nosso Renato Monteiro, é autor do livro "Fotobiografia da Guerra Colonial" (Publicações Dom Quixote, 1990; Círculo de Leitores, 1998)]

(...) Qual foi o percurso até à abolição?

Os abolicionistas começaram por tentar que nos códigos e nas leis houvesse menos motivos para a pena de morte, é uma estratégia clara desde a Viradeira, desde Pascoal de Melo e Freire, a quem D. Maria I manda fazer um Código Penal novo. As razões previstas na lei vinham desde as Ordenações Filipinas do século XVII, era uma longa listagem. A outra estratégia era tentar que o rei comutasse a pena, o que aconteceu constantemente com a D. Maria I, D. João VI , D. Maria II e D. Pedro V - com os reis da Guerra Civil, D. Pedro IV e D. Miguel, não, evidentemente.

Comutação em prisão perpétua?

Pode ser perpétua, trabalhos forçados ou degredo. Normalmente é degredo... as colónias nesse sentido deram sempre muito jeito. Um dos argumentos dos finais do século XIX contra a abolição era o facto de se mandar pessoas para as colónias aos milhares. Entre 1870 e 1896 há quatro mil degredados, são três quartos da população branca de Angola. (...)

(...) Os bem-intencionados queriam construir penitenciárias em todos os distritos, mas não havia dinheiro. E os que eram contra a abolição da pena de morte diziam: "Se não conseguem construir é melhor matar. Para que estão a criar ilusões? As pessoas vão para o degredo durante anos e anos - há lá alguma penitenciária, algum trabalho que regenere?" Claro que não havia. Os desgraçados viviam miseravelmente de trabalhos forçados, não só para o Estado mas também para particulares que faziam deles escravos. É isso que diz Ramalho Ortigão: estão a criar uma situação falsa, não há meios para regenerar as pessoas, não há cadeias preparadas. (...)

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24390: O segredo de... (38): António Branquinho (1947-2023): Passei-me dos carretos... Perante a recusa dos helis em levaram os nossos dois mortos, puxei a culatra atrás da G3 e gritei: 'Levais os mortos ou… dou-vos um tiro nos c….!' (Acção Galhito, 22/6/1971, regulado do Cuor, sector L1)

Guiné > Zona Leste > Região de Baftá  Sector L1 (Bambadinca)  > Regulado do Cuor > Missirá > 1969 > Aqui esteve destacado, em 1970/712, o seu Pel Caç Nat 63, com os nossos dois tabanqueiros, que a morte já levou, o alf mil art Jorge Cabral (1944-2021), natural de Lisboa,  e o fur  mil art António Branquinho (1947-2023), nascido em Vila Nova de Foz Coa. 

Entre 1971 e 1974, os Pel Caç Nat 52, 54 e 63 passaram "rotativamente" por vários aquartelamentos e destacamentos do Sector L1: Bambadinca, Fá, Missirá, Mato Cão, ponte do rio Udunduma , Enxalé, etc. O Jorge Cabral foi substituído, no comamdo do Pel Caç Nat 
63, em 1 de julho de 1971, pelo alf mil at Manuel David Coelho (oriundo da  CART 2714 / BART 2917).

O Pel Caç Nat 54, até 18/11/1970, era comandado pelo alf mil Correia. A partir desta data até para além do regresso do BART 2917 à Metrópole, passou a ser comandado pelo alf ml Hélder P. R. Martins.

Por sua vez, o Pel Caç Nat 52, era comandado pelo alf mil Mário Beja Santos, até 24/7/1970, sendo nesta data substituído,  até para além do regresso do BART 2917 à Metrópole, pelo alf mil at Nelson Alberto Wahnon Reis.
 
Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Guiné > Região de Bafatá > Carta de Bambadinca (1955) > Escala de 1/50 mil > Detalhes: posição relativa de Bambadinca, Nhabijões, Mato Cão, Missirá, Sancorlá e Salá. O PAIGC só mandava (alguma coisa), a partir de Salá... tendo "barracas", mas a noroeste, na zona de Madina / Belel). Já no Oio havia a "base central" de Sara Sarauol... O destacamento, mais a norte de Bambadinca, no setor L1 era Missirá, guarnecido por um Pel Caç Nat (52 ou 63, em diferentes períodos) e um pelotão de milícias... Vários camaradas nossos, membros da Tabanca Grande, andaram por outros sítios, "pouco recomendáveis"...  A Madina/ Belel (que já não vem neste excerto do mapa) ia-se uma vez por ano, na época seca... para dar e levar porrada.  A história abaixo contada passou-se no trilho Missirá - Sancorlã - Salá, em 22 de junho de 1971, no decorrer da Acção Galhito.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)


1. O Antóno Branquinho deixou-nos no passado dia 27 de maio, aos 76 anos (*)... Natural de Vila Nova de Foz Coa, vivia na Covilhã, era irmão do Alberto Branquinho. Escreveu poucas coisas para o blogue. Tem vinte e tal referências. Mas há um "segredo" que ele não leva para o Olimpo dos antigos combatentes: já aqui o contou, em 2010 (**). De maneira singela, sem fanfarronice, mas também sem alguns detalhes importantes, como o local e a data... (Fomos recuperar, entretanto, essa informação de contexto.) Vale a pena recordar esse poste, agora republicado na série "O segredo de..." (***)


O segedo de... António Branquinho: "Passei-me dos carretos..."

Missirá, pelas 6 da manhã, preparação e início de mais uma operação de rotina. 
O Pelotão tinha sido “convocado” para proceder a uma operação de reconhecimento e patrulhamento, conjuntamente com outros dois grupos de combate. Tínhamos ainda como objectivo, desactivar uma mina anti-pessoal, detectada há já muito tempo.(**=

Durante o percurso íamos passando por locais paradisíacos, com palmeiras, mangueiros, outras árvores exóticas e pequenos cursos de água. Se não houvesse guerra e tivesse dinheiro, não me importava de construir uma vivenda num daqueles locais. Maldita guerra!

Ia eu nestas cogitações, quando me dá uma valente dor de barriga. Desta situação avisei o Jorge Cabral, como comandante do Pel Caç Nat 63, informando-o que iria sair do trilho para fazer uma necessidade fisiológica. 

Estava eu a preparar-me para baixar as calças, quando se ouve um violento estrondo. De imediato, ponho-me a correr em direcção à cabeça da coluna, ainda com as calças em baixo. Sabendo da existência da tal mina, corri de imediato ao encontro do Jorge Cabral, pensando que a mesma tinha sido accionada pelos elementos da frente. Por sua vez o Jorge Cabral pensou que eu,  ao sair do trilho,  teria accionado outra mina. Encontrámo-nos ao meio do percurso, em direcções opostas, ficando ambos estupefactos e felizes por estarmos sãos e salvos.

Como seria de esperar, gerou-se uma certa confusão. Após a acalmia das “tropas” e de se averiguar a situação, constatou-se que tinha rebentado uma mina (reforçada com granada de canhão sem recuo), na retaguarda da coluna. Tendo esta provocando dois mortos e vários feridos, uns graves e outros leves.

Perante esta situação, via rádio, pediu-se a evacuação dos elementos atingidos pelos estilhaços da mina. De imediato procedeu-se à organização da segurança a prestar aos meios aéreos.

Há já cerca de duas horas, que os grupos de combate estavam devidamente instalados, quando se ouviu o som característico dos helicópteros. Eram dois. Voando em círculos, aterraram numa clareira. Do seu interior saíram duas enfermeiras paraquedistas para se inteirarem da situação. Verificaram que além dos feridos havia dois mortos, recusaram de imediato o transporte destes, levariam só os feridos. 

Comunicaram esta decisão aos pilotos, com a qual eles concordaram. Ao aperceber-me daquela decisão, pedi-lhes para que transportassem também os mortos. Mantiveram a sua posição, dizendo:

– Não levamos os mortos!

Perante as suas atitudes drásticas, quanto ao meu pedido “passei-me”. De modo bastante drástico e enervado, empunhei a G3 em riste, puxei a culatra atrás e vociferei:

– Levais os mortos ou… dou-vos um tiro nos c….!

Como seria óbvio, eu não daria nenhum tiro, era só “ronco”. Uma coisa é certa – levaram também os mortos.

Em consequência de todas estas peripécias, não mais me lembrei da dor de barriga. Lembrei-me, sim, ao regressarmos a Missirá de beber não sei quantas “bazucas” para matar a sede.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Negritos: LG]


2. Comentário do editor LG:


Dos 8 comentários ao poste P7291 (**), escolhi três, mais pertinentes:

(i) Luís Graça;

(...) Ora aqui está uma boa questão a pôr às nossas queridas camaradas enfermeiras paraquedistas... Por que é que elas se recusavam a levar os mortos? Eram elas ou eram eles, os homens da FAP, os pilotos e os melec?

Seguramente que havia "instruções de cima"... O custo de um heli era equivalente a 15 contos, na época, por HORA!, ou seja o vencimento (mensal) de dois alferes, se não mais, ou o pré (mensal) de 25 soldados de 2ª classe (leia-se: do recrutamento local, sem a 3ª classe da instrução primária)...

De facto, a mão de obra do exército, a tropa-macaca (sem ofensa para ninguém...), era muito mais "barata"...

No mato, para transportar, a pé, um morto, até ao aquartelamento mais próximo ou à estrada mais próxima (onde pudessem chegar as nossas viaturas) era preciso "mobilizar" um grupo de combate (30 homens) que se ia revesando... Era a tarefa mais penosa (física e psicologicamente falando) que nos podia caber, transportar, ao sol ou à chuva, um camaradda morto, em maca improvisada com paus de arbustos, impermeáveis e lianas...

Esse "calvário" está magistralmente descrito no livro do Amor Pires Mota, que eu li de um trago, a "Estranha Noiva de Guerra"...

16 de novembro de 2010 às 13:32

(ii) José Corceiro:

Numa narração que hoje escrevi para o blogue, que oportunamente irei enviar, durante uma emboscada tombaram no mato dois militares, também houve feridos. Pediram-se evacuações de heli, mas os mortos não foram no heli, ainda que não pertencessem à CCAÇ 5, foram em viatura para Canjadude, onde foram amortalhados.

É lógico, neste caso, se fosse só uma questão económica, teria sido mais vantajoso transportá-los no heli, a partir do local onde tombaram. Porque teve que vir meio aéreo, a Canjadude, trazer duas urnas. Posteriormente voltou a vir meio aéreo para levá-los já nos caixões, creio que para o local onde estava sediada a companhia à qual eles pertenciam. Eram duma companhia de “Paras”.

Interpreto a recusa de transportar mortos nos helis, por uma questão de utilidade e eficácia, porque durante o percurso do transporte dos feridos e mortos, poder-se-ia dar a coincidência de na mesma rota, aparecerem mais feridos e neste caso a lotação dum morto poderia impedir a evacuação dum ferido.

16 de novembro de 2010 às 22:20


(iii) Jorge Cabral:

Olá, Branquinho! Foi mesmo assim que aconteceu no dia 22 de Junho de 1971, na área de Salá (****). Eu já passara os 24 meses, mas ainda havia de lá voltar a 14 de Julho, quando o Pelotão já não se encontrava em Missirá. Os mortos foram Cherno Sanhá e Sambaro Embaló, ambos do Pel Caç Nat 54. (...)

17 de novembro de 2010 às 09:48
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 11 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24389: In Memoriam (479): António Branquinho (1947-2023), ex-fur mil, Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, set/69 - out/71)... Nosso tabanqueiro desde 24/9/2010, era irmão do advogado e escritor Alberto Branquinho, também ele membro da nossa Tabanca Grande

(**) Vd. poste 16 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7291: Estórias avulsas (100): A mina, que seriam duas (António Branquinho)

(***) Último poste da série > 21 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P23012: O segredo de... (37): Demburri Seidi: demorou mais de dois anos para sair da sua boca o testemunho sobre os trágicos acontecimentos de Cuntima, em novembro de 1976, devido em parte ao medo que sentia e a manifesta dificuldade em falar sobre a "justiça revolucionária" praticada pelos vencedores contra os vencidos (Cherno Baldé)

(****) Segundo a História do BART 2917 (pág. 78) 

22 de junho de 1971: 

No decorrer da Acção “Galhito”, realizada por forças dos Pel Caç Nat 54 e 63,  na área de Sancorlã – Salá – Paté Gidé, as NT accionaram uma mina anti-pessoal reforçada em (BAMBADINCA 2F4-76) sofrendo dois mortos e dois feridos.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24261: Palavras fora da boca (3): As nossas santas ingenuidades... A propósito da violència do PAIGC nas "áreas libertadas" (Luís Cabral / Luís Graça / António Graça de Abreu / António Rosinha / Cherno Baldé)


República da Guiné > Conacri > c. 1960  > Dirigentes do PAIGC, junto ao Secretariado Geral: da esquerda para a direita:  (i) Osvaldo Vieira, (ii) Constantino Teixeira, (iii) Lourenço Gomes e (iv) Armando Ramos. 

O Osvaldo Vieira (1938-1974), também conhecido como "Ambrósio Djassi" (nome de guerra), terá morrido, de doença,  dizem,  por complicações pós-operatórias, em  31 de março de 1974 (não num hospital da ex-URSS, mas na base do PAIGC, em Koundara, Guiné Conacrii), e  sobretudo com a terrível suspeita de ter estado implicado na conjura contra Amílcar Cabral... Era primo do 'Nino' Vieira... Ironia(s) suprema(s):  repousam os dois, o Amílcar e o Osvaldo, lado a lado, na Amura; e o seu nome (e não o de Amílcar) foi dado ao Aeroporto Internacional de Bissau, em Bissalanca...

Recorde-se que o "estado-maior" do PAIGC instalara-se em Conacri em maio de 1960. A foto deve ser do ano de 1960, já que em janeiro de 1961 Osvaldo Vieira e Constantino Teixeira faziam parte do grupo de futuros históricos comandantes, mandados por Amílcar Cabral para a  Academia Militar de Nanquim, na China, para receber treino político-militar. Uns meses antes, em agosto de 1960. Amílcar Cabral em pessoa tinha-se deslocado a Pequim para negociar o treino dos quadros do PAIGC na Academia Militar de Nanquim.  

No grupo de quadros do PAIGC que vão nesse ano para a China incluem-se, além dos supracitados Osvaldo Vieira e Constantino Teixeira, os nome de João Bernardo Vieira ['Nino'], Francisco Mendes, Pedro Ramos, Manuel Saturnino, Vitorino Costa [irmão de Manuel Saturnino],  Domingos Ramos [irmão de Pedro Ramos e amigo do nosso Mário Dias], Rui Djassi, e Hilário Gomes.

Foto (e legenda): Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral  > Pasta: 05222.000.084 (adapt por Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2018, com a devida vénia...)


1. Seleção de comentários ao poste P24232 (*)... A questão da "violência" (policial ou militar) no TO da Guiné, antes, durante e depois da guerra, dá pano para mangas... Mas está longe de estar (bem) documentada no nosso blogue (Pijiguiti, Samba Silate, Cassacá, chão manjaco, Conacri, Boé, Bambadinca, Cumeré, Porto Gole...).

É um tema "delicado", para não dizer "tabu" e "fracturante",  para um blogue de antigos combatentes. Está mal documentada de um lado e do outro do conflito.

Por exemplo, do lado do PAIGC:  "A luta foi difícil, mas nunca pensei em abandonar. Quanto aos desertores, a lei do Partido exigia que fossem executados… Era a lei militar” (p. 67) (**, disse  Bobo Keita  no livro de Norberto Tavares de Carvalho, "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita /Edição de autor, Porto, 2011, 303 pp., posfácio de António Marques Lopes) .

Nas suas memórias ("Crónica da Libertação", Lisboa, o Jornal, 1984) (memórias que vão até ao assassinato do líder do PAIGC, em Conacri, em 20 de janeiro de 1973), Luís Cabral também não esconde que o Partido (sic) resolveu graves conflitos internos com execuçóes sumárias e públicas, como por exemplo, em  fevereiro de 1964, em Cassacá (pág. 190).  sobre

Nem esconde também a violência que era exercida sobre as populações civis sob controlo do PAICC (mas também sobre combatentes e até dirigentes), como no caso do Morés, em fevereiro de 1966. Violència nas suas diversas formas (incluindo a violència sexual)...

 Violência essa que escapa à "santa ingenuidade" de todos os observadores estrangeiros ocidentais  que são convidados a "visitar as áreas libertadas", dos nórdicos (suecos, noruegueses, holandeses) aos italianos e franceses... para não falar dos oriundos dos países "não-alinhados",  os do "bloco soviético", sem esquecer os da China e de Cuba...Todos (a começar pelos médicos cubanos, talvez os mais cínicos)  levavam "vendas nos olhos" ou "óculos cor de rosa", como é normal em situações de conflito em que  se polarizam as posições... Ontem como hoje, a verdade é sempre a primeira grande vítima dos conflitos armados... 

Claro, neste caso, nem o governo português de então nem o Amílcar Cabral convidavam observadores independentes (a começar pelos jornalistas) para ver o que se passava no "terreno"...  Mas ambos sabiam da enorme importância que tem/tinha a "propaganda"... E nessa matéria Amílcar Cabral era uma mestre: foi muito mais hábil que os nossos "cabos de guerra", do Arnaldo Schulz ao António Spínola, para não falar do Bettencourt Rodrigues (que foi mais um erro de "casting")... De qualquer modo, temos que ter em conta a conjuntura histórica, geopolítica, da época, muito mais favorável ao discurso anti-colonialista e anti-imperialista...

(i) Tabanca Grande Luís Graça:

"O Amílcar Cabral era bom de mais", dizia o Osvaldo Vieira...

(...) Apesar da receção calorosa que ele e os cineastas italianos (***)  tiveram no Morés, o Luís Cabral (LC) não deixa de experimentar um sentimento de isolamento e desconforto: 

“Quando eu decidia mandar chamar um ou outro camarada que conhecia bem, ficava com a sensação de que ele não estava à vontade, parecia ter medo de qualquer coisa” (pág. 262).

LC irá constatar, algum tempo depois, que a “disciplina rigorosa” que prevalecia na base, por alegadas razões de segurança, implicava também o recurso (frequente) a “castigos corporais”, a única maneira de prevenir a deserção de populações e guerrilheiros.

LC ficou impressionado com uma cena que observou, de um grupo de um dezena de homens e de uma mulher com o filho ao colo. Os homens tinham as mãos inflamadas das palmatoadas que acabavam de receber, castigo de que escapara a mulher por causa da criança (uma vez que a tinha de transportar).

LC terá ficado indignado, argumentando que o AC nunca aprovaria o uso de “castigos corporais”, prática que associava ao colonialismo

O Osvaldo Vieira “insistia que a nossa gente não compreendia outra linguagem e que o Amílcar era bom de mais” (sic)… e que não se agissem assim, com dureza, quer em relação aos combatentes, quer em relação à população, nos casos de infração às regras estabelecidas, “estavam perdidos” (sic) (pág. 265). (Negritos nossos)

É uma delícia, esta explicação, a do Osvaldo Vieira, deitando por terra o “mito” das “regiões libertadas”…

19 de abril de 2023 às 13:08

(ii) Antonio Graça de Abreu:

Afinal a "disciplina rigorosa" exercida pelo PAIGC sobre a população pobre das "regiões libertadas": Palmatoadas, mãos a sangrar, violência primária sobre um humilde povo que apenas desejava pão e dignidade, e viver em paz!

Posso imaginar o sofrimento de Amílcar Cabral, resguardado na outra Guiné-Conacri, distante das "regiões libertadas". No aparente conforto, no seio dos seus correligionários, em Conacri. Se Cabral não foi ingénuo, morto pelos seus próprios homens, em Conacri, foi o quê?

19 de abril de 2023 às 14:38

(iii) Cherno Baldé:

Eu li o livro "Crónicas da libertação" do Luós Cabral em 1989, precisamente quando estava de férias em Lisboa, mas, se a memória não me falha,  o cenário que o LC descreveu foi de um grupo de pessoas (civis) que eles encontraram amarradas com cordas, estando alguns com os membros inchados e que ele teria mandado desamarrar e, tendo confrontado o caso as pessoas presentes no local, disse que ninguém teve coragem de indicar quem tinha sido o mandante que, tudo indicava, seria o Comandante Osvaldo Vieira que reinava em chefe absoluto na zona Norte. 

No fim, o LC afirmava, no livro, que ainda não tinha chegado o tempo para se falar de todas as verdades da luta do PAIGC. O livro tinha sido publicado em 1984, salvo erro.

Levar a cabo uma guerra como o fez o PAIGC por mais de 10 anos não é uma brincadeira de crianças nem de ingénuos ou inocentes, por isso e para que a luta não resultasse num redondo fracasso, foi preciso combinar a "bondade" do Amílcar Cabral com a dureza vs crueldade do Osvaldo Vieira e no final, esta última acabou por prevalecer, da mesma forma como acontece com todas as boas intençóes. 

Como disse um filósofo inglês do século XIX , "Tentem fazer o bem e as forças do mal prevalecem"

19 de abril de 2023 às 16:46
 
(iv) António Rosinha:

António Graça de Abreu, a maioria dos dirigentes dos partidos ganhadores das primeiras independências dos anos 60 em África, ou se liquidaram uns aos outros, ou escaparam a atentados, sendo eles a matar os outros.

Os que foram assassinados, tal como Amílcar Cabral, não foi por serem "ingénuos". Eles apenas arriscaram, deram o peito às balas, só que Cabral arriscou mais que qualquer outro.

Pela sua condição de ser visto como um cabo-verdiano pelos guineenses, que facilmente ficou "desarmado" quando Spínola pôs em prática a política da Guiné para os guinéus, foi com muito risco consciente que ele corria, tanto que ele mencionou as traições a que estava sujeito, dentro do próprio partido.

Mas sobre Cabral e outros "não indígenas" das ex-colónias portuguesas que optaram por formar os tais partidos ganhadores, tiveram a sua lógica anti-colonialista e simultaneamente anti-salazarista, mas haveria muito a escrever sobre eles, mas seria também muito chato.

20 de abril de 2023 às 00:59 

(v) Tabanca Grande Luís Graça:

Cherno, só agora, em 2023, li o livro do Luís Cabral, "Crónica da Libertação", edição de "O Jornal", Lisboa, 1984, 464 pp. Livro brochado, uma encadernação horrível, que se desconjunta toda. A editora já não existe, o livro é difícil de encontrar, a não ser talvez nos alfarrabistas e, claro, nalgumas bibliotecas públicas.

A cena da violência contra um grupo de população civil na "base central" do Morés encontra-se descrita nas pp.265/270. Isto passa-se por ocasião da visita, à região Norte, do realizador italiano Piero Nelli, na 1ª quinzena de fevereiro de 1966: vd. pp. 259/270. (É o autor do filme "Labanta, Negro!", premiado no Festival de Veneza desse ano.)

O Osvaldo Vieira (OV) era o responsável da Frente Norte (pág. 259). O comissário político da Inter-Regiáo do Norte era o Chico Mendes, membro do Bureau Político (tal como o Luís Cabral, LC (pág. 260). O Osvaldo trabalhou na Farmácia Moderna (diretor técnica, a dra.Sofia Pomba Guerra) (pág. 260). O Inocèncio Kani (IK), o futuro assassino de Amílcar Cabral (AC), era o "responsável da base" (pág. 267): encontrava-se pela primeira vez com o LC, tendo mostrado "um comportamento um tanto reservado". 

LC também conheceu dessa vez o Simão Mendes, enfermeiro no tempo colonial, responsável da saúde (que viria a seguir num bombardeamento à base).

Numa visita à base, o OV diz ao LC que ali teve que se impor "uma disciplina rigorosa, para neutralizar o mal que o inimigo podia fazer-lhes, partindo dos vários quartéis da região"...

É nessa visita, já depois das filmagens da fracassada emboscada, em 11/2/1966 (cito de cor), às NT na estrada Mansoa-Mansabá (que estava a ser alcatroada) e que fora preparada para "italiano ver e filmar"), o LC deu conta da existència de um pequeno grupo de civis que tinham sido maltratados:

(...) "Num pequeno largo da base, estava o Inocèncio e mais alguns camaradas de um lado, enquanto que do outro vi aproximadamente uma dezena de de homens e uma mulher com o filhinho no braço" (pág. 265).  

OV explicou "que se tratava de prisioneiros, apanhados quando se dirigiam aos quartéis inimigos da região" (sic).

"Olhando com mais atenção para os homens, verifiquei que tinham as mãos inflamadas", chamando a atenção do OV para isso. 

"Respondei que a lei estabelecida na inter-reiáo era essa e que a a mulher só tinha escapado porque tinha de carregar o filho e não podia por isso receber as palmatoadas" (sic).

O LC diz que ficou "muito impressionado com esta cena" e esperou a oportunidade para falar com o OV. Ele estava "absolutamente seguro" de que o AC "nunca daria o seu acordo a tal forma de proceder" (pág. 265)...

O OV "insistia que a nossa gente não compreendia outra linguagem e que o Amílcar era bom de mais", e que "estavam perdidos" (...) "se não agissem com dureza" tanto em relação aos combatentes como á população civil...

Na pág. 268, LC conclui que "a disciplina em Morés era (...) imposta em grande parte pela força"... e que o responsável da base, o IK, era criticado, por todos, pela sua dureza, "que muitas vezes chegava a atingir a malvadez"... Mas ele beneficiava da "confiança total" do OV... (pág. 268)...

Enfim, chega de citações, Cherno, e tira as tuas conclusóes. (Nada disto, claro, transparece no filme, de propaganda, do camarada Piero Nelli.)

19 de abril de 2023 às 22:48
 
(vi) António Graça de Abreu:

Também fui ingenuamente ingénuo. Eis a Prova, escrito há quarenta e sete anos::

Pequim, 25 de Outubro de 1977

Nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras, secção portuguesa, o camarada Fu Ligang trabalha na mesma sala que eu, na mesa mais pequena, à minha direita. É uma espécie de meu secretário. O Fu estudou português em Macau, numa leva de 60 ou 70 jovens chineses que em 1964 a República Popular enviou quase secretamente para Macau, a fim de estudarem a língua de Camões.

O Fu Ligang adquiriu excelentes conhecimentos de português. Teve um professor que nunca esqueceu com o nome de Júlio Pereira Dinis. Responsável e trabalhador -- creio que é membro do Partido Comunista da China --, hoje de manhã perguntou-me:

“Então, camarada António, está a gostar de viver em Pequim, está satisfeito com a China que veio encontrar”?

Assumindo os meus antecedentes meio comunistas, na versão meio maoista, ainda com meia convicção política, respondi-lhe mais ou menos nos seguintes meios termos:

“Sim, vim encontrar um país a crescer, um povo simpático e tenho boas condições de vida e de trabalho aqui em Pequim. Depois, estou a dar o meu pequeno contributo para ajudar a construir o socialismo, para a criação do homem novo, para a construção de uma sociedade mais justa e de um mundo melhor”.

O Fu Ligang ouviu o meu discurso impassível, um levíssimo sorriso a aflorar nos lábios e, passados uns longos segundos, olhou-me pelo canto do olho e disse-me, em excelente português:

“O camarada é ingénuo.”

E não houve mais conversa. Durante o resto da manhã debruçámo-nos sobre os textos a traduzir e a corrigir.

O Fu deve ter razão. Nestes meus quatro anos de Pequim, vou tentar entender e digerir a minha ingenuidade.

20 de abril de 2023 às 13:34

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Itálicos / Negritos: LG] (****)
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(****) Último poste da série > 26 de abril de  2023 > Guiné 61/74 - P24252: Palavras fora da boca... (2): "Prós insultos não há contemplações nem indultos"... e também: "Quem não tem poilão, acolhe-se à sombra do chaparro"... Proverbiário da Tabanca Grande, 5ª edição revista e aumentada