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sábado, 11 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18914: Memória dos lugares (379): No restaurante e cervejaria Pelicano, à noite, acabado de desembarcar em Bissau, em 9 de novembro de 1970, ouvindo "embrulhar" lá longe, talvez Tite, talvez Fulacunda...(Hélder Sousa)



Guiné-Bissau > Bissau > 1996 > Rua onde ficava a célebre cervejaria Solmar, aqui evocada pelo Hélder Sousa, acabado de chegar a Bissau, em 9 de novembro de 1970: "Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse, a Solmar, o Solar do 10, a Ronda, o inevitável Café do Bento (5ª Rep.), a casa das ostras na rua paralela à marginal, o Pelicano"...

Foto: © Humberto Reis (2005). Todos os sireitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Guiné-Bissau >  Região de Bafatá > Saltinho > Abril de 2006 > Um olhar de esperança no futuro ?... É, pelo menos, o que gostaríamos de adivinhar neste olhar inocente de uma criança às costas de sua mãe... O que mudou na Guiné-Bissau, desde que o Hélder Sousa desembarcou, em Bissau, do T/T Ambrizete, em rendição individual, em 9 de Novembro de 1970 ?...

Foto: © Hugo Costa (2006). Todos os sireitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada, amigo e grã-tabanqueiro  Hélder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72), desembarcou, em Bissau, do T/T Ambrizete, em rendição individual, em 9 de novembro de 1970 (, tendo partido de Lisboa ao findar dia 3). 

Apresentou-se no STM (Serviço de Transmissões Militares), em Santa Luzia, e depois foi dar uma volta para conhecer Bissau "by night"... São as primeiras impressões da cidade que ele relata aqui, telegraficamente (*).  É mais um contributo para a nossa "memória dos lugares" (**)... Curiosamente, do seu roteiro inicial de Bissau, "by night", não constava o Chez Toi..."Boite", "cabaret", "night club"...era a coqueluche de Bissau "by night", no início da década de 1970...Não havia cão nem gato que não conhecesse ou quisesse conhecer o "Chez Toi" onde "gajas brancas",,,


(...) O camarada que fui substituir deixou-me depois aos cuidados dos meus conterrâneos vilafranquenses, furriéis milicianos José Augusto Gonçalves e Vitor Ferreira, o primeiro deles meu colega da Escola Industrial e o outro das tertúlias do Café A Brasileira, mais parceiro que adversário das partidas de bilhar, os quais estavam integrados nas Transmissões (nessa ocasião ainda estava em criação o futuro Agrupamento de Transmissões) os quais arranjaram um espaço para me acomodar no quarto que compartilhavam nas instalações para sargentos em Santa Luzia, juntamente com outro Furriel, de apelido Pechincha, que tinha estado numa Companhia de Caçadores Nativos [, CART 11,] e que estava agora destacado numa repartição qualquer do QG.

Levaram-me a jantar à Meta (já li algumas referências no Blogue mas não me parece que lhe tenham dado o relevo que de facto tinha naqueles finais de 1970), lugar muito frequentado, com uma zona de Bar, zona de restauração e uma enorme pista de minicarros, muito maior que as que conhecia cá na Metrópole e que era palco de acesas e renhidas disputas de competição dos vários miniaceleras que por lá iam gastando o seu tempo e dinheiro.

Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse:


  • a Solmar;
  • o Solar do 10;
  • a Ronda;
  • o inevitável Café do Bento (5ª Rep.);
  • a casa das ostras na rua paralela à marginal;
  • o Pelicano.
Aqui no Pelicano, quando para me integrar saboreava a minha coca-cola com uísque (era um privilegiado, já tinha tido a oportunidade de beber aquela coisa quando em 1968 estivera em França, Bélgica e Inglaterra), tive contacto directo com mais algumas das realidades do mundo onde estava a entrar...

O primeiro foi a sensação estranha de estar ali na esplanada a ouvir embrulhar lá longe, do outro lado do grande e largo Geba, diziam que era em Tite, ou Fulacunda ou qualquer outro nome que para mim naquela ocasião não assumia personalidade, coisa que mais tarde já não era assim, os nomes tinham depois uma identidade própria, acho mesmo que havia até uma como que espécie de hierarquia, no que respeita à forma como eram identificados pelas dificuladdes de vida que lhes eram inerentes.

Estar ali a ouvir os rebentamentos abafados pela distância e a ver alguns clarões deu logo um arrepiozinho na espinha, com aquele misto de temor e de ansiedade que nessas ocasiões nos assaltam, mas também com um pensamento de solidaridade e angústia pela impotência de quem só pode assistir e não intervir.

O segundo contacto foi mais do género de constactar a degradação moral que a permanência em situações daquelas podia produzir em espíritos mais fracos. Já se falava do que acontecia no Vietname com os soldados americanos consumindo droga para resolver os seus problemas mas ali no Pelicano não foi esse o caso.

Tratou-se apenas do facto de que em determinado momento um desgraçado qualquer acercou-se da mesa onde estávamos e procurou vender uma fotos "de gaijas nuas". É claro que recusámos mas fui depois esclarecido de que não se tratavam de "gaijas" mas sim de "uma gaija", a própria mulher dele, a quem ele (diziam que era um fulano já bastante apanhado do clima) enviava fotos que tirava a si mesmo sem roupa e pedindo que ela lhe enviasse fotos do mesmo jeito, que ele depois reproduzia e tentava vender.

Fiquei bastante impressionado com aquela demonstração prática da alienação a que o clima de guerra e o consequente improviso da vivência podiam produzir em seres humanos e jurei a mim mesmo que haveria de sair da Guiné são de cabeça e mais determinado em contribuir para as mudanças inevitáveis que haveriam de ocorrer na nossa sociedade. (...)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2008 >  Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

(**) 10 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18910: Memória dos lugares (378): Restaurante, pensão e "boite", o Chez Toi fazia parte do roteiro de "Bissau, by night"... O estabelecimento situava-se na rua engº Sá Carneiro... Desdobrável publicitário: cortesia de Carlos Vinhal.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Guiné 63/74 - P11346: Álbum fotográfico de Abílio Duarte (fur mil art da CART 2479, mais tarde CART 11 / CCAÇ 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70) (Parte X): Xime, Canquelifá, Bissau...



Foto s/ nº > Guine > CART 11 >  [No cais fluvial do Xime:] "Eu [, em primeiro plano, à esquerda] e o alferes Martins [, em segundo plano] no Xime" [O Xime era a "grande porta de entrada" do leste]




Foto s/ nº > Guine > CART 11 > "Eu, quando estive em Canquelifá" [, na foto, não é bem legível o título da tabuleta: Aeroporto  e Termas de Canquelifá ? ]


Foto s/ nº > Guine > CART 11 > "Eu, o Pais, furriel mecânico, e o Valdemar, algures no leste"


Foto s/ nº > Guine > CART 11 > "Eu e o Valdemar, salvo erro na Solmar, em Bissau"


Fotos (e legendas): © Abílio Duarte (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: L.G.]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Abílio Duarte, ex-fur mil art da CART 2479 (mais tarde CART 11 e finalmente, já depois do regresso à Metrópole do Duarte, CCAÇ 11, a famosa companhia de “Os Lacraus de Paunca”) (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70). (*).

[, Foto à direita, o Abílio Duarte, lendo a revista brasileira "O Cruzeiro", na messe,  em Nova Lamego, no Quartel de Baixo... Foto de Abílio Duarte]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 27 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11324: Álbum fotográfico de Abílio Duarte (fur mil art da CART 2479, mais tarde CART 11/ CCAÇ 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70) (Parte IX): Piche, vista aérea... E as valas onde se "despistou" o nosso camarada e amigo comum Renato Monteiro...

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2987: Os nossos regressos (1): Lisboa, dois anos depois (Virgínio Briote)

O Uíge zarpou à hora prevista, mais minuto menos minuto. Tripulação civil e transporte de tropas, quase todos com as comissões terminadas. Como era costume naqueles tempos os oficiais e sargentos tinham direito a camarotes, as praças iam lá em baixo, nos porões. Repartia o compartimento com o capitão Viegas. Um homem calado, as falas que bastavam, mais simpático ainda. Não era tempo para grandes conversas.

Último jantar no Uíge. Serventes fardados, mesa com Vista Alegre e Cristofle, uma alegria entristecida.

Texto e fotos: © Virgínio Briote (2008). Direitos reservados

Ao jantar, o comandante do navio com o comandante de bandeira ao lado, deu-lhes as boas-vindas, desejou-lhes boa viagem. Que iriam directos a Lisboa, sem escalas. Que bom, ao menos isso. Depois jantaram com aquelas cerimónias todas que a marinha, seja mercante ou de guerra, gosta de se tratar bem e gosta também que se veja. Quando terminaram, Bissau era uma mancha iluminada, já muito longe.

Encostado à amurada, ficou sozinho, a olhar para trás. Uma brisa fresca, continuava febril, os olhos com água. O que fiz aqui, que levas na memória? Voltarias a esta Guiné, outra vez de arma na mão? Farias o mesmo, da mesma maneira?

Farim, o Ten Coronel Cavaleiro, o Mealha, o infeliz do capitão de Cuntima, o Didi, o Fininho do bar. O enxerto de porrada que vira um deles dar a um negro que caíra na emboscada em Sitató. As mãos, os nós dos dedos, e o infeliz não dizia nada, não sabia nada. A cena do batuque. O pedido que lhe tinham feito para fazerem uma festa entre eles. Que sim, mas só até às 11 da noite. O batuque, muito para lá da meia-noite, não parava nem com o piquete ali, à espera que tudo acabasse. A ordem que dera para darem por finda a festa. Vai já, vai já e nunca mais acabava. A tropa a querer descansar, iam sair lá para as cinco. Pega no gajo e manda-o parar a merda do batuque. Porrada no gajo, o tipo no chão aos gritos, os batucantes em alvoroço. Parou tudo. Começou foi uns dias depois, um auto de averiguações e, se houvesse matéria, um auto de corpo delito, que só não teve seguimento porque o Ten Coronel de Farim lhe pôs ponto final. O administrador de Posto, civil, vira tudo de longe, fizera uma participação ao Governo-Geral, a relatar o que vira, soldados a espancar nativos. A psico, que chatice, a dar passos para trás. Tempos depois, o Ten Coronel pegou-lhe num braço, levou-o para um canto, quis ouvir a história da boca dele. Mandou vir à sua presença, o oficial responsável pelo processo de averiguações, pô-lo ao corrente do que ouvira do alferes. Antes de terminar, ouvira-o dizer, não se bate nestes gajos, nunca permita uma coisa dessas, ouviu? O que lhe custara mais nesta história foi a reacção do Didi, o camarada de Cuntima. Se eu for chamado a depor, ficas avisado que vou testemunhar contra ti. Não se bate em ninguém, muito menos num desgraçado que não se pode defender contra uns gajos de G-3 na mão! Custara-lhe ouvir, é certo, mas acabara por aceitar. Voltaram a falar-se e voltaram a ficar amigos, mais tarde.

Meses depois, lançados num final do dia na zona de Canjambari, nem queria acreditar, viu o saco, o que o capelão das calças do cocó lançara do Dornier! Não pode ser. Mas era o mesmo saco do pão, a olhar para ele, formigas brancas, enormes por todo o lado, o saco todo roto. Os gajos de Canjambari, do alferes ao corneteiro, todos com os cabelos oxigenados, a gargalhada interrompida com as duas morteiradas da praxe.

A bela mulata escura de Cuntima, que reencontrara quando lá voltara, sentados no alpendre da casa dela, com a noite a abrigá-los. A estadia em Barro e Bigene a dar-lhe a volta, a marcá-lo. Achas que a tua presença foi benéfica para a população, como te disseram tantas vezes? O Rasas que conheceste, os outros Rasas todos com quem tiveste de conviver, em quartos espalhados por Buba, em Tite, no Xitole, em Mansoa, no Hospital, pela Guiné toda. Até o Rasas tu encontraste em ti, não uma vez, mas muitas, vezes demais. O Joaquim com as costas todas furadas, eram balas 7,62, nossas, de quem havia de ser, o médico "legista" para ele, uns dias depois. O Kássimo, voz de menina, um bailarino no mato, o Roberto e a carta da mulher endereçada ao capitão Leandro. A nossa filhinha morreu, cuidado com o meu marido, peço-lhes por tudo, senhores alferes e capitães, por tudo! Desenrasque-se, alferes, o capitão a assinar no envelope.

O Matos, o miúdo do AN-PRC10 com a coronha partida da G3 no meio do fogaréu, e agora, que porra? O Álvaro com um estilhaço alojado no ombro. O Caeiro, um bigodinho fino que lhe raparam no hospital, para lhe tirarem areia e pedacinhos de ferro da cara, o Angola, um grande soldado. A saída prematura do Furriel Azevedo e a falta que fez.

E o Silva à procura da sua morte, mais de quinze dias depois de terminar a comissão, uma azelhice sem retorno. E logo ali, um minuto antes ou depois, um guerrilheiro desesperado, arma branca na mão para os dois metros curvados do Albino. A MG-42 naqueles dedos de artista, a desenhar a cara de um gajo com um cigarro na boca, até o fumo subia. A carta do padre da terra do Silva a querer saber pormenores. Que é que este gajo quer que eu diga? Desenrasque-se, escreva qualquer coisa que fique bem, o capitão sempre a chutar. O Guimarães das Taipas, um falador e o Mamadú Djaló que só falava quando alguém se dirigia a ele. O Moura, um beirão com pouco mais de metro e meio de alegria, o Bacar Djassi do caso de Barro, "intelectual" e com vontade própria, um assunto bem arrumado. O Black, o Pascoal, o valente Carvalho, um alentejano de força, a quem dera o fato novo que comprara em Lisboa, numa alfaiataria junto ao elevador de Santa Justa, um dia antes de embarcar. Para que queres o fato, pá? É um azul invulgar, lindo, o Leite, o tal apanhado à mão em Sare Bacar, a opinar. Mudara de cor em Bissau, parecia um espelho, um azul eléctrico, faíscas para todo o lado. O Caleiro, calças numa poça escura, sem um ai, encarrapitado nas costas de um deles a caminho do heli, amor de Mãe e de fetura noiva no braço. O Furriel Valente de Sousa e o Sargento Valente, sempre a moderar-lhe os ímpetos. E outros que ficaram pelo caminho. E o caso de Jolmete, a arrastar-se quase até ao fim. Uns dias antes de ir para Mansoa, um alferes dos serviços de justiça do QG dissera-lhe que afinal o Ministro lhe tinha agravado a pena para 10 dias de prisão disciplinar agravada. Como, isso ainda mexe? Ora, vamos lá ver. Era verdade, pois claro, estava lá na ordem de serviço, prontinha a sair. Onde pára o nosso Brigadeiro, na vivenda dele? Onde fica? O nosso Comandante está lá dentro, preciso avisar, a sentinela negra à frente, é urgente? Pode entrar, o Brigadeiro e coronéis num salão, portas envidraçadas, à volta de uma mesa de bridge, então há problemas? 10 dias de prisão disciplinar agravada, do Ministro do Exército, sobre aquele assunto que o meu Brigadeiro tinha dito estar sob o seu controle. Para saber da minha boca, com os meus respeitos, meu brigadeiro, boa-noite. E o capitão Leandro, dias depois a dizer-lhe da conversa com o Comandante Militar que não apreciara nada a entrada intempestiva.

Crescera tão depressa, com tanta merda que tinha feito, se pudesse voltar atrás estes dois anos! Sinto-me velho, faço 23 dentro de dias, lembrei-me agora. Deitava-se tarde, levantava-se tarde, ainda não arrumara as horas do sono. Tomava o pequeno-almoço e o almoço ao mesmo tempo.



... E agora só paramos em Lisboa!

As tardes passava-as nos conveses, junto à balaustrada, sentado naquelas cadeiras que os navios têm. Sempre com bom tempo, mar também, olhava para longe, vinham-lhe lembranças, adormecia, voltava a olhar, memórias futuras, como seriam, como seria o reencontro com os seus, com a namorada. Arrepios de febre, de medo e contentamento. Só deveria ter à sua espera o conhecimento de Angra. Numa correspondência cada vez mais esporádica, meses sem lhe dar notícias, ela na mesma. Recebera para aí há um mês um postal dela, de Lisboa, tinha vindo para o continente, fixara-se na Parede. Deves estar a sair daí, não? Não voltes a escrever, não vale a pena, arranco no mês que vem, parece que é o Uíge que vai levar este esqueleto. No dia em que chegara com a mala nova ao quarto, já em Sta Luzia, tinha uma carta dela. Iria procurar saber a data da chegada do navio, esperava poder estar lá e, quem sabe, reeditar a correspondência ao vivo. Não, agora é outro tempo. Foi bom, passou. Uma noite daquelas, já se deviam ver as ilhas de Cabo Verde, o comandante do Uíge informou-os que teriam que escalar S. Vicente. Atracariam no Mindelo, só o tempo para meter águas. Como é possível, para meter águas? Não as meteram antes, só agora é que se lembraram que lhes está a faltar água? Nunca mais chego a Lisboa.

O N/M Uíge, que tantos milhares de tropas transportou, de Lisboa para Bissau e de Bissau para Lisboa, ao longo da guerra do Ultramar, aqui visto do Mindelo, Cabo Verde, com o Monte Cara ao afundo...

Meio-dia no Mindelo. Tanta vontade de partir dali, que nem saiu do navio. Ficou-se aquele tempo todo no barco, a olhar para a cidade, para os montes, Clicks na Ricoh até acabar o rolo. Muitas mais horas do que lhes tinham dito, finalmente tiraram as amarras, outra vez no bom caminho.
Nem acreditava, devia estar a sonhar, um ponto ao longe primeiro, uma recta de pontos uns minutos depois, uma curva cada vez maior no meio do rio, o Tejo a levá-lo até Lisboa, desde a manhã cedo desse dia, 27 de Janeiro.
 
Finalmente Lisboa e a sua belíssima nova ponte, que levou menos de 4 anos a construir (de 5 de Novembro de 1962 a 6 de Agosto de 1966), uma obra emblemática do Estado Novo

Tinha embarcado em Lisboa em 10 de Janeiro de 1965, pôs os pés pela primeira vez em Bissau, em 19 do mesmo mês e ano. Embarcou em Bissau em 19 de Janeiro de 1967, exactamente dois anos depois. Uma cena já filmada muitas vezes, uma multidão no cais, na Rocha Conde de Óbidos, gente de idade, muitas roupas escuras, de inverno, algumas jovens também. Tinha tudo preparado, mala e saco em cima da cama. Vai assim, só com a camisa vestida? É Janeiro em Lisboa, sabe? Não tinha nada mais para vestir, também não tinha frio, o calor da Guiné, mais o calor que sentia de deixar para trás aquele tempo todo. Foi lá para cima, para o ponto mais alto que pôde, ver a multidão, lenços no ar, os militares aos gritos, ó Nuno olha-me para aquela brasa, um esqueleto qualquer lá de baixo com um lenço na mão a acenar cá para cima, um contentamento que não há palavras que contem. Saíam aos trambolhões, malas com eles a caírem pelas escadas. Não vem? Fico para o fim, não tenho ninguém à minha espera, pelo menos quem eu queria.

Saíram todos, uns mais lentos, agora mais espaçados e lá em baixo, os abraços intermináveis, os choros de alegria, e uns óculos escuros no meio de um cabelo farto até aos ombros, um casaco preto comprido, uma figura que lhe fez lembrar a Juliette Grecco, era ela, o conhecimento de Angra. É pá, os teus pais estão aqui em baixo! Saiu mais depressa do que contava, num rápido passava-se com ele o que se estava a passar com os outros, abraços e lágrimas nos olhos do pai, a mãe aos gritos, o meu menino, o choro pela cara abaixo, Angra a meia dúzia de metros, sem saber o que fazer, depois discreta a acenar-lhe, a dizer-lhe adeus para sempre. Depois, a Mercedes a andar por aquela Lisboa, a 24 de Julho, o Terreiro do Paço, a rua da Prata, até ao Rossio. Os olhos a passarem por tudo. Mataste muitos turras? Juntaste muito dinheiro? Mal respondia ao que lhe perguntavam. Eram horas de tirar a farda. Passou por uma loja (Lourenço e Santos?), na esquina do Rossio com os Restauradores, um casaco azul-escuro, calças cinzentas, camisa branca e uma gravata a condizer, nem reparou que era tudo dois números abaixo para aí. Almoçaram no Solmar. A olhar para o salão do restaurante, dois anos, tudo na mesma, como se tivesse estado lá ontem.

No Depósito de Adidos, pediram-lhe que aguardasse, só o tempo para lhe passarem um papel para as mãos. Passa à disponibilidade desde amanhã o Sr. Alferes Mil. ...., indo domiciliar-se em Fonte Seca, freguesia de Fonte Seca, concelho de Braga. O portador deste documento deverá apresentá-lo quando lhe for exigido pela autoridade militar ou civil, em substituição da sua caderneta militar. Quartel em Lisboa, 24 de Fevereiro de 1967. O Comandante, Fulano Ferreira de tal, coronel.

Na estrada para o Porto, mal deu pela viagem, fartou-se de dormir. Nem se lembra onde ficou, talvez em casa dos pais em Fonte Seca, ou em casa dos tios em Gaia. Recorda-se, isso sim, do dia seguinte, a seguir ao almoço. O eléctrico para o Monte dos Burgos, o 6 por ali acima até ao Carvalhido, o passo acelerado até à rua dela, o toque na campainha, a corrida pelas escadas acima e ela a vir por ali abaixo.

vb