sábado, 9 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24637: Os nossos seres, saberes e lazeres (589): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (119): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Primeiro foi a caminhada pelas ruas de Antuérpia, aí uns 3 quilómetros feitos sem esforço, a temperatura estava amena e a arquitetura é pujante e versátil, a importância de Antuérpia não vem de ontem, pense-se que aquele templo gigantesco neoclássico edificado para o Museu Real das Belas-Artes é da primeira década do século XIX, era já terra flamenga muito próspera, uma agricultura invejável, um centro mundial de lapidação de diamantes, uma praça financeira, e já vimos o testemunho das suas muitas igrejas barrocas, com alfaias religiosas riquíssimas. De regresso a Bruxelas, veio um surto de melancolia, nem vos conto a série de imagens que andei por ali a disparar, ruminações de locais de que já aqui falei até à saturação, selecionei um punhado, na convergência da razão e do coração. Amanhã terá lugar a última romagem, Namur e o Meuse, depois é fazer a bagagem, como sempre vão ficar uns trastes em depósito, o low cost é implacável.
Até já.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (119):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (10)

Mário Beja Santos

Que o leitor me permita um desabafo, talvez mesmo uma confissão íntima, nestes lugares belgas, nestes percursos culturais, nestes espaços a que me habituei a calcorrear há décadas, sinto-me não só feliz como eterno devedor de ter feito aqui a minha aprendizagem ao vivo de convivente com o ideal europeu. É facto que devo à cultura universitária o ter conhecido a herança greco-romana, a interseção entre o cristianismo e Carlos Magno, depois das chamadas invasões bárbaras e do recuo do islamismo no nosso continente; e de ter ganho consciência de que o Humanismo foi a catapulta para descobertas científicas ao tempo em que se iniciou a primeira globalização, e por aqui findo, seria longo o itinerário desta cimentação europeia que desaguou com esse histórico lugar de encontro que se chamou a Comunidade Económica Europeia. Procurei estudar, compreender mentalidades, desafios do passado, presente e futuro. Foi graças a uma política minoritária (a dos consumidores) que aqui assentei praça, fui conhecendo gente e habituei-me a trabalho de equipa, a visitar os países com uma outra ótica, mas o meu refefrente foi sempre esta Bélgica, ela própria objeto de uma enorme tensão na convivência entre valões e flamengos, ela é o mais influente baluarte do multiculturalismo, se a pintura flamenga é um dos movimentos estéticos predominantes na pintura mundial, por aqui perpassa um sentimento europeu, basta ver a agenda cultural, desde representações de grupos emigrantes que aqui tanto se orgulham de viver, do teatro ao cinema, do romance à poesia, tudo o que vem de países europeus aqui tem acolhimento. Em suma, e para não estafar o leitor com tanto paraninfo, aqui também me sinto em casa, e com a imensa alegria por aqui ter feito amigos que me recebem e que me dão a honra de os acolher onde vivo.
Tudo isto veio a propósito da felicidade que senti na visita a este Museu Real de Belas-Artes de Antuérpia, agora é mesmo uma despedida sem remissão, passo por uma sala que foi restaurada ao gosto da época do início do século XIX, talvez do dia e da hora está tudo cheio de luz, vejo gente em contemplação, confesso que aquela arte ali exposta não me aquece nem arrefece, mas é a beleza daquela atmosfera que me cala fundo, aqui fica a o registo, adeus, até ao meu regresso.

Não tenho ilusões, aguardam-me alguns quilómetros de passeio pedestre, bem perguntei aos transeuntes se havia para ali um tram que me levasse até à estação central, que não, dentro de cerca de 1h passaria um autocarro, era o que faltava, ficar aqui especado sem beneficiar da condição de andarilho à força, toca de andar a pé e desfrutar do património de Antuérpia. Aqui ficam algumas amostras de belos edifícios, convém não esquecer que no século XIX, quando o rei Leopoldo era o proprietário do Congo, a Bélgica integrara-se na linha da frente da industrialização, fruia do colonialismo, esta Antuérpia estava pejada de joalheiros e artífices do diamantes, o seu porto era dos mais importantes de todo o Norte da Europa. É, pois, natural, que a cidade guarde marcas desses tempos de prosperiedade que, aliás, nunca desapareceram.
Já palmilhei uma boa distância, ainda acreditei que este tram me trouxesse alívio aos pés, doce engano, mas aproveitei a oportunidade para me despedir da catedral e desta sua bela torre.
A prova provada de que Antuérpia tem andado sempre na vanguarda arquitetónica é este edifício, bem andei às voltas por o captar em comprimento, largura e altura, em vão, mas aqui fica uma imagem que permite ver a prosperiedade do Pós-Guerra, as reminiscências da Arte Deco em confluência com os novos materiais, a adaptação aos espaços calafetados, novas formas de iluminação, etc.
O comércio de luxo muda constantemente de dono, o importante é que não se estrague o que a arquitetura e escultura notabilizaram, aqui há esse cuidado, mesmo quando o que foi comércio de luxo se transferiu para as marcas globais, estamos sempre à espera de encontrar um estabelecimento Zara ou Benetton onde outrora pontificavam os costureiros franceses ou ourivesarias de renome.
Já me despedi de Antuérpia, hoje é dia para me despedir de Bruxelas, porque amanhã vou ser recebido em Namur, é grande a amizade e o acolhimento é de excelência. Há aqui uma pontinha de melancolia, não escondo, volto a fazer uma confissão, tirei fotografias a rodos, fui lançando no éter quase todas elas, repetiam, de um modo geral imagens já tiradas, em visitas anteriores, e assim limitei-me a um quadro sucinto de variações sobre o mesmo tema. Logo a riqueza das pinturas murais, muitas delas associadas à genialidade da banda desenhada belga, veja-se como ninguém vandaliza ou estropia o fulgor do pintor de paredes, veja-se a cor e quentura de ambiente que esta parede projeta.
Estou agora num importante boulevard do centro de Bruxelas, de nome Anspach, conheci-o sempre com tráfego intenso, independentemente de os prédios se terem vindo a degradar quando o centro de Bruxelas se despovoou e as classes endinheiradas optaram por viver em comunidades menos ruidosas, deixaram esta porção de casco histórico fundamentalmente a emigrantes e gente envelhecida e mal remediada. Deu-se depois a gentrificação, ainda em curso, a municipalidade devolveu estas artérias aos peões e ciclistas, o património tem vindo a ser revitalizado através de programas específicos e o resultado está à vista, como aqui se mostra, o automóvel já não é o dono e senhor destes lugares.
É uma sensação maravilhosa andar pelo asfalto, mirando para ambos os lados, para analisar recentes ousadias arquitetónicas, uma delas, imagem abaixo, parece-me de perfeita integração, é uma conversação de estilos que não entram em conflito, mas sabe Deus o que sairá do prédio ao lado, talvez um caixotão de vidros espelhados, isso sim, uma agressão e uma contradição.
Impossível despedir-me de Bruxelas sem contemplar este mítico Teatro La Monnaie, onde tive a dita de assistir a espetáculos fabulosos, óperas como Tristão e Isolda, Boris Godunov, Eliogabalo (de Francesco Cavalli, com tenor português), bailados, concertos, saudosos preços de pechincha, no último andar, nem mexia a cabeça com medo de vertigens. O teatro aderiu à campanha de apoio aos monumentos destruídos na Ucrânia, além de anunciar a ópera Bastarda, de Donizetti, nunca a vi, mais uma razão para voltar.
Cirandei pelo templo de cultura e não resisti a registar as grandes mudanças operadas na criação de mais um andar no teatro. É mesmo lá em cima que eu me sentava, um teto magnificamente pintado.
O soberbo teto de La Monnaie, a grande contradição é a de que o público da plateia paga 170€ para ver esta maravilha à distância e os avarentos como eu pagam 12€ para contemplar o espetáculo de perto.
O átrio de La Monnaie, uma intervenção de génio, não se danificando a estrutura básica Novecentista obteve-se uma atmosfera de modernidade.

A que propósito se vai falar de Simenon? Andava a vasculhar pela Feira da Ladra e vi junto das raízes de uma árvore publicações abandonadas por um vendedor. Há anos que não lia o caso Nahour, uma história espantosa, um drama amoroso de um libanês, jogador profissional da roleta, com uma biblioteca de ciência matemática para apurar os seus cálculos, com o adjunto que passava horas a fio nas salas de jogo dos grandes casinos a anotar resultados. A história começa com um telefonema, altas horas da noite, para casa do inspetor Maigret, quem liga é o seu amigo Dr. Pardon, um médico com quem Simenon e a mulher jantam com a respetiva família, em diferentes romances há diálogos com o Dr. Pardon, estuda-se a alma do criminoso, as razões por que se mata, e muito mais. Ora o que Pardon noticia, em estado de grande aflição, é que apareceu uma cliente baleada, acompanhada por alguém que podia ser o marido ou amante, ele fez o tratamento, retirando a bala, subitamente o casal desapareceu. Maigret põe a funcionar a judiciária, pesquisam-se automóveis e voos da madrugada, a meio da manhã já estão identificados os lugares e vai iniciar-se o interrogatório de quem vive na casa da Nahour, é um drama arrebatador, onde não falta um final feliz, um casal que encontrou a felicidade. Pois andei com este Simenon pelos transportes públicos, suspirei quando acabei a leitura, tinha vontade para ler mais Simenon, deixei-o num banco do metropolitano, só espero ter trazido a felicidade a alguém.

Vou agora para Namur, a primavera está em festa, floresceram as cerejeiras do Japão, enchem as ruas e avenidas de cor. Quando, depois de amanhã, partir para Zaventem, com destino a Lisboa, é uma das últimas imagens felizes de um adeus que convoca um regresso em breve.
(continua)
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Nota do editor

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