sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19225: Notas de leitura (1123): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (61) (Mário Beja Santos)

Edifício do BNU em Lisboa


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Março de 2018:

Queridos amigos,
Enquanto o datilógrafo da alfândega de Bissau está a ser interrogado pela PIDE das suas ligações a panfletos enviados a funcionários e militares, aqui se fala da chegada do franco-guinéu de Sekou Touré que vem trazer dores de cabeça nas operações do BNU de Bissau e para a economia de toda a Guiné, e aproveita-se a circunstância para estabelecer um arco temporal à volta das propriedades rústicas do BNU na Guiné, uma insolvência medonha, em 1927, colocou o BNU como grande proprietário na região do Quínara, com a luta armada e o envolvimento persistente do PAIGC na região, quer o BNU quer a CUF aperceberam-se que era melhor transferir todos aqueles milhares de hectares para bem público, eram propriedades que não rendiam coisa nenhuma e em breve se transformariam em mato puro, havendo o risco de pagar impostos, sem fim feliz à vista.
Chegámos a 1961 e o gerente de Bissau transformar-se-á num importante cronista desconhecido, nem ele fazia ideia das informações que estava a lançar para o futuro do conhecimento histórico.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (61)

Beja Santos

Entrara-se, pois, num período de grande intranquilidade, o gerente do BNU vai ter pela frente, e até 1964, uma intervenção que ele próprio não deve ter dimensionado a importância – vai tornar-se num repórter que acompanha de forma persistente o prelúdio e os primeiros anos da luta armada, como talvez mais ninguém, o governo do BNU irá receber informação privilegiada, através do diretor da PIDE em Bissau, o gerente dispõe de uma informação que nem muitos militares no teatro de operações.

Logo na carta de 8 de março de 1960 em que anuncia a prisão do datilógrafo dos panfletos do Movimento da Libertação da Guiné, dá conta do novo problema de moeda, e com relevo na vida da Guiné, a moeda própria de Sekou Touré, o franco guinéu, tinham sido emitidas notas de 1.000, 500, 100 e 50 francos e moedas de 10 e 5 francos:
“As notas e moedas começaram a circular em 5 deste mês. Conseguimos com algum esforço obter duas dessas notas, de 100 e 50 francos, que aqui juntamos, para apreciação de V. Exas.
Não queremos deixar de chamar a atenção de V. Exas. para alguns curiosos pormenores das referidas notas: a emissão é do Banque de la République de Guinée, entidade que, ao que sabemos, não existe, por enquanto; a data de 2 de Outubro de 1958 é a da independência daquele território; as assinaturas não são, como seria lógico, dos dirigentes do Banco, mas dos ministros da Economia Geral e das Finanças; a figura do frontispício é a de Sekou Touré.
Cremos ser nulo o valor intrínseco de tal moeda, pois desconhece-se o padrão monetário. O que sabemos é que tem curso forçado e não pode circular outra moeda, inclusive os antigos francos da emissão do Banque de l’Afrique Occidentale Française.
A criação de moeda própria, o seu curso forçado, a proibição de circulação de moeda estranha e a quase certeza do seu nulo valor porque se conhece a competente reserva de garantia e ainda a dúvida da sua aceitação no exterior, criou ao comércio fronteiriço desta Província um problema grave. As suas consequências hão-de projectar-se na economia local, atingindo fortemente o seu equilíbrio, já um tanto artificial.

Sabem V. Exas. que toda a actividade comercial da fronteira – relativamente grande e influente – se exerce tendo o franco senegalês como moeda circulante. Sabem V. Exas. que boa parte das mercadorias importadas têm o seu mercado e o seu escoadouro na fronteira, em quase todas as fronteiras do nosso território, originando a entrada maciça de grandes quantidades de francos-notas. Esses francos são enviados para Lisboa e aí convertidos em escudos metropolitanos e outras divisas, para liquidação de boa parte do total de importação. São esses invisíveis movimentos de coberturas que sustêm o desequilíbrio da balança de pagamentos e contribuem, em larga medida, para aliviar a posição cambial do comércio e, portanto, do fundo cambial. Além do que traz à praça quantioso movimento, apreciáveis receitas aduaneiras e bons lucros – mesmo para nós.
Toda esta benéfica actividade se contrairá enquanto se não souber o valor real do papel-moeda emitido pelo senhor Sekou Touré e a audiência que terá nos mercados monetários da Europa.
E assim, a novel Republica vizinha continuará a projectar na nossa Província a sombra má da sua nefasta propaganda, agravada, agora, com um acontecimento que – apesar de previsto – atinge desastrosamente um elemento vital da nossa economia – o comércio fronteiriço”.

É preciso agora estabelecer um arco temporal, que vai de 1927 até ao momento em que o BNU oferece as suas propriedades ao governo da Guiné, em 1973. Recorde-se que só a insolvência de Victor Gomes Pereira, no Sul, fez transferir para o BNU uma quantidade indescritível de hectares de terra, que se distribuíam pelas áreas administrativas de S. João, Tite, Fulacunda e Buba, tudo somado era uma área global de aproximadamente 44 mil hectares, num conjunto de seis blocos.
Logo num documento datado de 4 de abril de 1957 intitulado “Breves considerações sobre as propriedades do BNU", assinado por José Telles Ribeiro, se enunciavam as caraterísticas destes blocos, deste modo:
“Os três primeiros blocos, na sua totalidade na área do Posto Administrativo de S. João revelam-se fundamentalmente constituídos por solos do tipo ‘solos vermelhos’, cujas características principais são a sua fácil drenagem, aspecto cinzento-escuro e arenoso à superfície até 30 ou 40 centímetros e daí para baixo vermelhos de textura argilosa. Estes solos, no aspecto químico, podem-se considerar os mais equilibrados da Província.
Os terrenos destes três blocos, ocupados quase exclusivamente por indígenas das tribos Biafada e Mancanha estão fortemente submetidos à cultura do amendoim, revelando já nítidos sintomas de cansaço. O revestimento florestal é quase inexistente, dominando o aspecto de savana aberta.
O quarto bloco, com uma área de aproximadamente 38 mil hectares, é fora de dúvida o que maior interesse oferece, já pela sua elevada extensão, já pela conservação da fertilidade do solo. Nestas propriedades encontra-se já uma maior diversidade de tipos de solos, indo desde os vermelhos aos amarelados, caracterizando-se estes últimos por uma maior capacidade e o aparecimento da couraça laterítica. O revestimento florestal é mais intenso que nos anteriores. O solo, menos sujeito à agricultura indígena, em virtude de uma mais baixa densidade populacional, aparenta ainda um aspecto de riqueza orgânica que lhe garante, sem dúvida, uma boa fertilidade.
O quinto bloco é a propriedade ‘Ilha do Fogo’, com uma área bastante reduzida e completamente isolada das restantes propriedades, tem como principal particularidade uma extensa mancha de palmeiras espontâneas.
O sexto bloco é a propriedade de ‘Santana’, totalmente ocupada por floresta aberta, tem o particular interesse de, dada a sua situação geográfica na margem do Rio Grande de Buba poder vir a constituir um porto de drenagem para as futuras produções das restantes propriedades.

Os terrenos do BNU integram-se na designação de ‘Propriedades Perfeitas’ o que, segundo os termos do regulamento de concessões, garante ao proprietário o domínio directo, o domínio útil e a faculdade de venda; em contraste com a concessão por aforamento em que o foreiro tem exclusivo direito ao domínio útil, pertencendo o directo ao Estado e revertendo o terreno a este desde que não esteja devidamente aproveitado no prazo de tempo para tal fixado. Daqui resulta o alto interesse e valor das propriedades do BNU e a necessidade de os valorizar ao longo dos anos, mediante uma ocupação agrícola gradual em vez de a deixar ir desvalorizando pelo abandono das mesmas à acção devastadora do indígena.
Com base no conhecimento das condições ecológicas locais, consideramos preferenciais as seguintes culturas: caju (árvore bastante rústica, podendo ser semeada directamente no terreno definitivo, é a que se traduz numa ocupação mais económica, dada a inexistência de granjeios); coleira (com elevados rendimentos por árvore, poderia ser usada na ocupação dos terrenos mais ao sul); coqueiro e palmeira (viável nos terrenos baixos e húmidos, onde seja possível a obtenção de água superficial ou subterrânea); cafeeiro (embora não definitivamente estudado, parece admitir-se como provável de uma boa adaptação da variedade ‘robusta’).
Só assim se poderão valorizar terrenos agora sem valor e evitar por meio de uma acção técnica directa os efeitos devastadores da primitiva agricultura indígena”.

Mais tarde, o BNU encomendou a um perito de nome E. W. Boesser um trabalho nos terrenos seus pertencentes na região de Quínara, é um documento muito minucioso, seguramente que seria da maior utilidade ainda hoje a sua divulgação junto das autoridades guineenses.
Em 13 de dezembro de 1963, no relatório da visita de inspeção à Filial de Bissau inclui-se de novo esta preocupação com a agricultura no contexto económico da Guiné, vale a pena aqui reproduzir o texto introdutório:
“A agricultura, outrora a base da economia da Guiné, não pode hoje ser considerada como elemento efectivo do desenvolvimento desta Província. A situação criada à Região levou o agricultor a concentrar-se nos grandes centros comerciais ou em aldeamentos onde encontra a protecção das Forças Armadas mas depara-se com solos fracos, sem grandes possibilidades.
E ao natural afrouxamento das culturas tradicionais – milho, mandioca, sorgo e arroz – também não será completamente alheio o facto de, por razões de defesa, haverem sido chamadas largas centenas de homens para as milícias e que deixaram assim de prestar o seu contributo braçal à agricultura.
Não se torna por isso difícil explicar a necessidade em que se viu nos últimos anos a Província de, tradicionalmente exportadora de arroz, embora de quantidades reduzidas, passar a importar grandes quantidades deste cereal para sustento das populações.
As indústrias existentes, reflexamente, têm também na actual conjuntura uma muito menor influência na economia da região se atendermos a que a matéria-prima – a mancarra, o coconote e o próprio arroz, escasseou pelos motivos apontados.
Hoje pode-se afirmar que a Guiné encontra relativo equilíbrio orçamental no comércio importador, que passou a disfrutar de grande prosperidade, na medida em que se lhe proporciona um maior poder de compra trazido pela presença dos grandes efectivos militares. Tal situação, no entanto, provoca um desnível muito acentuado da sua balança comercial”.

Esta situação irá agravar-se no decurso da guerra, em 9 de julho de 1973 será entregue ao Governo do BNU uma informação sobre as propriedades rústicas do Banco, urgia tomar medidas para que o BNU se desembaraçasse daquele verdadeiro imbróglio:
“Possui a nossa Filial de Bissau, na circunscrição do Fulacunda, 17 prédios rústicos constituídos por térreos com área global de cerca de 1,2% da área total da Província.
Os referidos terrenos vieram à posse do Banco em 1927, por efeito de execução hipotecária relativa a um crédito concedido.
Em 1965, deu-se na Guiné início a trabalhos de promulgação de uma contribuição predial rústica que, se viesse a ser aplicada, nos obrigaria ao pagamento de 4.391 contos anuais. O Conselho do Banco deliberou então criar uma sociedade em Bissau, à qual seriam vendidas as propriedades, para devida exploração agropecuária.
Nem a prevista contribuição predial rústica chegou a ser promulgada, nem chegou a constituir-se uma sociedade em Bissau para exploração agropecuária, os terrenos mantiveram-se como propriedade do Banco.
Todavia, a continuação do terrorismo na Guiné criou situações delicadas, quer do ponto de vista emocional (dizia-se que o BNU era senhor de grande parte do solo da Província, que mantinha inexplorado…) quer do ponto de vista da limitação de soluções quanto ao aproveitamento e consequente venda dos terrenos, que vieram a ser objecto de ocupação e controlo por parte dos terroristas, enquanto se não levou a efeito determinada operação militar no sul da Província.
Em situação análoga se encontravam na Guiné cerca de 15 mil hectares de terrenos pertencentes ao grupo CUF que vieram a ser doados à Província em 16 de Abril de 1973, para serem explorados pelas populações em regime comunitário.
A partir do momento daquela doação, considerou-se a hipótese do Banco proceder do mesmo modo em relação aos seus terrenos. E, com efeito, quando da visita do Sr. Governador da Província à Metrópole, em Maio passado, ficou verbalmente assente que o Banco faria a doação dos terrenos, desde que para os explorar se constituísse uma cooperativa agropecuária.
Escreve-nos agora o Sr. Governador da Guiné a sua carta de 26 de Junho, enviando um projecto de minuta da respectiva escritura de doação (decalcada da escritura da CUF), bem como os resultados do estudo sobre a viabilidade da constituição de uma cooperativa agropecuária e dos respectivos encargos”.

E o autor da informação analisava a viabilidade e despesas da cooperativa, equacionava o auxílio monetário que porventura o Banco desejasse prestar ao arranque da cooperativa, sugeria-se que a doação dos terrenos devia ser feita sem aparatos de publicidade e sugeria-se um donativo de 6.830 contos para cobrir o investimento a efetuar, mas admitia-se que muito mais dinheiro seria necessário para o amanho de toda a área. Mas dada a complexidade da transferência de posse, o autor acabava por sugerir que só se deviam doar os terrenos e não conceder qualquer subsídio.

Não se conhecem dados ulteriores da doação, assim acabava a história do BNU como proprietário rústico da Guiné.

A partir de 1961, note-se bem, o gerente em Bissau, vai passar a mandar notícias num território que em breve deixará para o passado o sonho pacificador. Como vamos ver.

(Continua)

Edição de selo comemorativo do I Centenário da fundação do BNU

Imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.

Visita do subsecretário do Ultramar, Raúl Ventura, imagem retirada do livro “Uma Apoteose – duas visitas – uma despedida”, 1953.
____________

Notas do editor

Poste anterior de 16 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19200: Notas de leitura (1122): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (60) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 19 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19207: Notas de leitura (1122): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

JD disse...

Caro Mário,
Tens feito excelentes transcrições de diferentes relatórios do BNU, subscritos por diferentes funcionários e respeitantes a diferentes matérias. É do conhecimento geral, que Amilcar também fez vários relatórios e apontamentos sobre a diversidade das actividades, da estrutura social e económica daquele território, pelo que pode haver coincidências temáticas entre uns e outros.
Imagino que possas ter meios para fazeres análises comparativas entre os de Amilcar e os do BNU.
Fica a sugestão.
Um abraço