segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19187: Notas de leitura (1120): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Setembro de 2016:

Queridos Amigos ,
Pela mão amiga do investigador António Duarte Silva cheguei a esta deslumbrante e controversa obra.
Para minha surpresa, nunca a vejo citada ou comentada pelos melhores analistas da Guiné-Bissau, isto quando o intelectual norte-americano defende a tese que o país tem uma carga histórica de resistência aos poderes centralizados, consegue sempre subsistir por concertações e alianças multi-étnicas: sociedades rurais operativas num Estado permanentemente frágil.

Um braço do
Mário


Guiné-Bissau:
O Estado é frágil, as sociedades rurais são a alma da nação(1)

Beja Santos

O título da obra “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest, Ohio University Press, 2003, parece desconcertante e no entanto trata-se de uma arguta e audaciosa investigação de que, incompreensivelmente, não se vê qualquer alusão nos autores de referência. Tratando-se, em minha modestíssima opinião, de um dos mais importantes trabalhos de tese sobre a Guiné-Bissau, só vejo utilidade em repartir a densa e brilhante argumentação deste investigador norte-americano em vários textos.

Falar em Estado frágil está muito longe de ser uma novidade quando se fala da Guiné-Bissau. Há consenso que um Estado desta natureza tem uma incapacidade estrutural para impor decisões políticas levando a generalidade dos grupos a sentirem-se enquadrados numa perspetiva nacional. Não é frágil o Estado onde se pagam impostos, se possui um sistema educativo, um serviço público de saúde, mecanismos de salvaguarda da segurança pública, intervenções em calamidades, e o muito mais que se sabe. O que não se sucede na Guiné-Bissau. O que Joshua Forrest apresenta como premissa maior é de que este Estado frágil tem as suas raízes no modo de desenvolvimento das sociedades rurais tanto nos períodos pré-coloniais como coloniais. E para dar consistência à sua tese o autor disserta sobre a história da Guiné-Bissau em quatro momentos específico: o espaço político pré-colonial e o encontro afro-europeu; a organização do território durante a presença colonial e a resposta das sociedades civis, na vertente étnica; como as sociedades rurais responderam ao período da ocupação e pacificação; por último, a luta armada e o Estado pós-colonial.

No essencial, Joshua Forrest pretende dar uma sequência às identidades étnico-políticas, mostrando que quando os europeus desembarcaram na chamada Costa da Guiné, Senegâmbia, Terra dos Negros, ou outra expressão equivalente, já existia uma rede comercial e um vasto sistema de alianças à procura de equilíbrio. As identidades étnico-políticas deram provas, sem prejuízo da sua autonomia, de se mostrarem capazes de estabelecer alianças de longo prazo. A relação do colonizador com os reis locais revelou-se bizarra: na generalidade dos casos, o colono, para fazer o seu comércio em paz, tinha que pagar uma taxa, um tributo, não pagando sujeitava-se às mais tortuosas retaliações. Durante séculos, o colono não se propôs ocupar o território e quando o ensaiou encontrou uma reação áspera, daí os múltiplos incidentes e combates. A prova de que estudou e refletiu profundamente sobre os elementos da sua tese, aparecem com clareza quando ele fala nas alianças multiétnicas, à volta do grande cerco de Bissau (1890-1909). Ainda na segunda década do século XX, o Estado colonial controlava uma porção ínfima do território. Há pormenores desta análise do maior interesse, como é o caso do armamento usado por ambas as partes até ao momento em que a evolução do armamento deixou as sociedades guineenses sem capacidade de resposta. O armamento e o número de efetivo a combater. Quando em 1907, o régulo do Cuor, em estreita conivência com outros régulos de regiões limítrofes, impede a navegação do Geba, pela primeira vez Lisboa reagiu autorizando um considerável exército para castigar o rebelde, foram enviados contingentes de Portugal e de Moçambique, embarcações bem equipadas, o exército com o melhor armamento disponível. Mais tarde, durante as campanhas do Capitão Teixeira Pinto, usou-se o terror e a dissuasão combatendo sem tréguas.

Pacificação nunca significou na Guiné domínio absoluto, até porque foi entendido, perante o mosaico étnico e a diversidade de sociedades horizontais e verticais, que o Estado colonial beneficiaria de receber a fidelidade das etnias islamizadas, fenómeno que estará presente na luta armada de 1962 a 1974. Reparo que Joshua Forrest é o primeiro investigador que recua a data da luta armada para 1962, há hoje provas inequívocas de que nesse ano o PAIGC desmantelava infraestruturas, fazia emboscadas, lançava intimidações, socorria-se do terror e assassinava comerciantes brancos e cabo-verdianos. O autor recorda o mercenário senegalês Abdul Indjai, de que Teixeira Pinto fez um herói, no fundo fez do mercenário o proprietário de uma porção do país, embora se tenha virado o feitiço contra o feiticeiro, Abdul Indjai veio a revelar-se um aterrorizador de populações entre o Oio e o Geba, caiu em desgraça, foi preso e retirado da Guiné.

Estamos perante uma investigação em que se pretende dar como facto consumado a autonomia e a capacidade de resistência a nível local. O Estado colonial nomeia régulos que não merecerão a confiança das populações locais. Balantas, Manjacos e Felupes manter-se-ão à margem da administração colonial, a despeito do trabalho forçado e do imposto de palhota. A vida social, política e económica destas etnias manter-se-á inteiramente livre, são sociedades que disporão de uma intensa rede comercial informal, os comerciantes deslocar-se-ão calmamente pelas fronteiras porosas do Senegal e da Guiné Francesa. Quando o Governador Carvalho Viegas escrever nos anos de 1930 o seu importante relato sobre a Guiné não iludirá de que a administração da colónia é mais teórica do que o real, com funcionalismo altamente corrupto e culturalmente desqualificado. Será Sarmento Rodrigues o Governador destinado a ver mais longe e a pretender alterar a situação de ocupação fictícia: Bissau ganha dignidade, lançam-se infraestruturas, procura-se conhecer a cultura guineense, atraem-se os mais capazes, o Governador pretende ver em marcha uma colónia modelo. Serão convocados planeadores urbanos, arquitetos entusiastas, até artistas em lançamento. No momento em que escrevo estas considerações, decorre no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian uma retrospetiva a José Escada. Ele vai aparecer a trabalhar nos painéis da nova Associação Industrial e Comercial de Bissau, no local mais central da cidade. Sarmento Rodrigues cuidou de uma administração mais motivada e capacitada.

Ao iniciar-se a luta armada, a Guiné possui uma administração colonial, um serviço de saúde elogiado pela OMS, Spínola conferirá durante o seu mandato uma enorme respeitabilidade à audição multiétnica através dos Congressos do Povo, eventos que tiveram a particularidade de juntar representantes das sociedades rurais. É nesse contexto que o investigador norte-americano se debruça sobre o soçobro do Estado pós-colonial. Amílcar Cabral falara repetidamente na “armadilha de Bissau”, advertira enigmaticamente quanto ao “suicídio da burguesia”, deixara escrito que o Estado devia descentralizar-se, um país com aquela dimensão, saído de uma dilacerante luta armada, com tais e tantas confrontações étnicas, o Estado pós-independência devia estar junto das populações. Ninguém o ouviu. O Estado na República da Guiné-Bissau permaneceu sempre frágil, distante e indesejável. Os comités de tabanca rapidamente caíram em desuso e praticamente não funcionaram nas regiões onde a presença portuguesa era mais forte. Luís Cabral e Nino Vieira prometiam modernização: surgiram os grandes desastres da pseudo-industrialização, os doadores foram-se cansando de ver tanto projeto posto em abandono. Em poucos anos, as sociedades guineenses aperceberam-se que vinham autocarros oferecidos, automóveis suecos para os governantes, que até o dinheiro da cooperação sueca para pagar aos professores era desviada, os correios deixaram de funcionar, as estradas só eram reparadas com a cooperação chinesa, o sonho dos Armazéns do Povo tornou-se num pesadelo de corrupção e incompetência. Os régulos voltaram a ser a autoridade legítima, floresceram as escolas crónicas.

Enfim, estamos perante um trabalho tão controverso que há inúmeras questões para tentar responder, desde as alianças multiétnicas que precederam a chegada dos portugueses, em que termos mais precisos se pode argumentar que as sociedades rurais guineenses recusaram o Estado, etc. Forrest também implica o novo olhar sobre a luta armada e as propostas de Amílcar Cabral. Creio serem estes os aliciantes fundamentais para percebermos que esta obra é indispensável para entender melhor a Guiné-Bissau de há muitos séculos até hoje.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 9 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19178: Notas de leitura (1119): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (59) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

Este rapaz americano quase sabe tanto da Guiné como o Amílcar e o Spínola, e até tanto como nós aqui à volta do Luisgraca, mas nenhum destes sabe tanto como o nosso "professor" comentador Baldé.

Porque será que os genuinos (étnicos) guineenses, escrevem tão pouco sobre eles próprios?

Também se passa um pouco isso com os angolanos e moçambicanos, são mais os "derivados" a escrever (Pepetela, Mia Couto, Amílcar Cabral...).

Ou então escrevem, mas são pouco divulgados.

Deve haver um motivo não aprecerem mais (os genuinos da Guiné profunda).

Valdemar Silva disse...

Rosinha, tens razão.
E também gostava de ler um comentário sobre este poste pelo o nosso caro Cherno Baldé.

Valdemar Queiroz