sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19178: Notas de leitura (1119): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (59) (Mário Beja Santos)

Fachada principal do Cineteatro de Bolama

Fotografia de Francisco Nogueira, constante do seu website, com a devida vénia


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Março de 2018:

Queridos amigos,
A partir de 1959, o panorama político da envolvente geográfica alterou-se profundamente, Sekou Touré entrou em fratura com a França, o Senegal caminha a passos largos para a independência, o gerente de Bissau lança o alarme, há já ondas concêntricas de contestação, ainda em surdina. O Governo do BNU em Lisboa quer saber tudo do que se passa, vai uma terminação especial, tudo é para comunicar. E em 5 de agosto de 1959 surge um documento de caráter histórico, é um dos raros testemunhos do que se passou no Pidjiquiti. Agiu a polícia, o Exército apareceu quando a contenda serenara, não há qualquer referência à PIDE, criara-se um ano antes uma minúscula delegação, a partir de agora vai encorpar. Depois daquele banho de sangue, os salários foram aumentados em cerca de 40%. E em 1960 surgem novos focos de agitação, há panfletos lançados pela calada, enviados pelo correio, de várias proveniências. A atmosfera de agitação é indisfarçável. Nada voltará a ser como dantes.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (59)

Beja Santos

Estamos a chegar ao fim da década de 1950, a África Ocidental Francesa circunvizinha está a ganhar independência, as repercussões internas já não se podem disfarçar. Embora modestamente, em 1958 já apareceu uma delegação da PIDE.
O gerente da Filial de Bissau sente-se no dever de enviar informações sobre o que se passa à volta, envia em 13 de julho de 1959 a seguinte carta:
“A situação política dos territórios vizinhos desta Província sofreu grandes modificações. O Senegal, como república autónoma, formou com outras ex-colónias francesas a Federação Mali, ingressando na Comunidade Franco-Africana; a ex-Guiné Francesa tornou-se independente, sendo hoje a República da Guiné e tendo à testa do seu Governo Sekou Touré, que dizem ser um marxista ortodoxo preconizador da União dos Estados Independentes da África.
No Senegal já se deu a africanização dos quadros públicos e fala-se com insistência na sua independência para 1960, embora os chefes políticos mais consagrados, tais como Lamine Guey e Leopold Senghor, considerem isso prematuro.
Na República da Guiné os responsáveis pelo seu futuro mostram-se empenhados em incutir, por todos os meios, no espírito da população, o valor que para eles representa a independência, tendo como principal slogan a exortação ao trabalho, cujo benefício – dizem – reverterá agora para o preto e não para o branco. Entretanto têm chegado a Conacri, capital da Guiné, delegações de vários países da Cortina de Ferro, constando que a Checoslováquia lhe forneceu armamentos.
Este país, que pela sua política e situação geográfica mais nos interessa, pois abrange grande parte da nossa fronteira, vem fazendo através da sua Emissora Nacional, todos os domingos, propaganda subversiva contra a nossa soberania nesta Província. Essas emissões têm sido feitas em crioulo e fula e vêm despertando muito interesse na nossa população indígena que para as escutar tem adquirido apreciável quantidade de receptores, em especial de pilhas secas. A Emissora desta Província passou, ultimamente, também a dar, uma vez por semana, noticiários nas línguas fula e mandinga.
Conacri, nas suas radiodifusões, dizendo que a divisão de raças existente na nossa Guiné foi provocada pelos portugueses apenas com o intuito da exploração económica, aconselha a união das mesmas, incitando-as à revolta colectiva a fim de mais facilmente correrem com os brancos até 1963, prazo que consideram como máximo para a libertação da nossa Guiné. Entre os comentários que têm feito à nossa acção colonizadora, sempre depreciativos e sediciosos, como é óbvio, destacam-se pela insistência com que são repetidos os que se relacionam com o ensino e com o trabalho, tendo até numa das últimas emissões atacado o nosso Banco por não admitir ao seu serviço naturais desta Província, o que é falso e foi prontamente desmentido pela nossa Emissora”.

Logo a 15 de julho, o administrador do BNU ligado aos assuntos da Guiné envia a seguinte mensagem confidencial para Bissau:
“Vem-se verificando que nem sempre os senhores gerentes têm o cuidado de informar o governo do Banco das ocorrências de certa monta que se dão na área da sua Dependência.
Queremos acreditar que em muito isso é devido à convicção de que o ocorrido não é de maior interesse.
Estamos atravessando uma época de evolução satisfatória mas também de convolução perturbadora pelo que temos de acompanhar muito de perto tudo quanto se passa nas nossas províncias ultramarinas. Nestes termos, ainda que a um senhor gerente pareça que determinado facto não deve interessar-nos, convém dar-nos dele imediato conhecimento mais ou menos detalhado, enfim, consoante a importância que o ocorrido lhe possa mostrar.
Chamamos para o assunto a especial atenção dessa gerência”.

E aquela gerência, mal sabia, iria participar com um dos poucos relatos sobre o massacre do Pidjiquiti, logo em 5 de junho, com o título “Informações – Acontecimentos Anormais":

“Levamos ao conhecimento de V. Exas. que anteontem, pelas 15 horas, no cais do Pidjiquiti desta cidade, cerca de 100 marinheiros indígenas – na maioria Manjacos – dos transportes fluviais de algumas empresas, exigindo aumento de salário recusaram-se a trabalhar e impediram os que estavam na disposição de fazê-lo.
Pedida a intervenção das autoridades, segundo consta pela firma António Silva Gouveia, Lda., compareceram no local alguns elementos da Polícia de Segurança Pública e, pouco depois, o Administrador deste Concelho. Enquanto este procurava convencê-los a trabalhar, um dos graduados da polícia, apercebendo-se que um dos marinheiros estava armado de um ferro, tentou tirar-lho usando de meios violentos ante a resistência oferecida. Isto foi o suficiente para que grande parte dos marinheiros se amotinasse e agredisse com remos, pedras e outros objectos contundentes não só o referido graduado, que entretanto empunhara a pistola, como também um seu colega e alguns guardas, ferindo-os e a um com muita gravidade, muito embora a polícia tivesse recuado e fugido mesmo em presença desta primeira reacção inesperada. É de anotar o facto de não terem sequer esboçado qualquer agressão contra o Administrador do Concelho.
Estabeleceu-se então grande confusão, apareceram mais polícias e, sem que saibamos ainda por ordem de quem, estes desataram aos tiros contra os grevistas, encurralados no já referido cais do Pidjiquiti. Esta situação manteve-se durante cerca de uma hora, devido à insubordinação dos trabalhadores indígenas, resultando deste inesperado e desagradável acontecimento a morte de 12 trabalhadores, 15 feridos e a prisão de muitos, poucos sendo os que conseguiram fugir.
Por volta das 16,30 horas, já com a rebelião praticamente dominada, apareceram algumas forças motorizadas do Exército, que se limitaram, com a sua presença, a sossegar o ambiente.
Aparentemente afigura-se-nos que houve precipitação por parte das autoridades em resolver este caso com tamanha violência, pois embora as manifestações raciais comecem em regra por falta do cumprimento dos deveres cívicos, este acontecimento teve origem, julgamos, apenas na reivindicação de aumento de salários.
Até este momento os marinheiros de todas as empresas continuam em greve e os que chegam de viajem abandonam também o trabalho, sendo todavia de destacar que os indígenas da mesma raça, exercendo outras ocupações, inclusive os serviçais domésticos, não se solidarizaram.
A vida da cidade voltou à normalidade, muito embora se sinta que continua alguma intranquilidade por parte da população civilizada.
Traremos V. Exas. ao corrente do que se for passando”.

Em 20 de agosto, o gerente de Bissau volta ao assunto:
“Depois de convencidos pelas autoridades competentes, que usaram de meios pacíficos e suasórios, retomaram o trabalho em 11 do corrente, sem que tenha sido satisfeita qualquer das suas reivindicações, todos os marinheiros indígenas que se encontravam em greve desde o passado dia 3.
Passado todo este desagradável acontecimento e sossegado o ambiente após alguns dias de perturbação e intranquilidade, o Governo da Província fez publicar o seguinte comunicado oficioso:
‘Serenados os espíritos e clarificado o ambiente de natural nervosismo dos primeiros dias deste mês, entende o Governo da Província ser oportuno trazer a público uma palavra de esclarecimento sobre os acontecimentos ocorridos:

1.º – Desde o dia 11 ficou normalizada a situação em Bissau, que havia sido alterada em 3 do corrente, quando os marítimos Manjacos que tripulam as lanchas comerciais resolveram abandonar o trabalho, sob pretexto de exigirem aumento de salários.
Trata-se de um incidente localizado que se circunscreveu apenas aquela tribo, não tendo o movimento alastrado aos empregados dos restantes sectores comerciais e industriais da cidade, nem mesmo aos estivadores, na sua maioria Manjacos, que prestam serviço na Administração do Porto.
Há a deplorar o número de vítimas resultantes da repressão prontamente efectuada na medida adequada à intensidade da investida dos amotinados e lamenta-se que estes tenham recorrido à greve como meio de revelar as suas reivindicações, numa ocasião em que o Governo da Província, por intermédio da Secção Permanente do Conselho do Governo, estava de há tempos procedendo ao estudo do ajustamento dos salários dos trabalhadores indígenas.

2.º – Verifica-se com satisfação que a vida no cais retomou o seu ritmo normal e que cessou a perturbação provocada na economia da Província pela suspensão da actividade comercial portuária, durante uma semana.
Não houve transigências, pois as tripulações regressaram ao trabalho sem quaisquer condições e os responsáveis são punidos nos termos das disposições legais.
A população da cidade, civilizada e indígena, ciente de que em caso de alteração da ordem lhe é garantida a integridade de pessoas e bens, mostrou perfeita confiança nos poderes públicos e na actuação das forças de segurança e militares, cuja missão é manter a paz social interna e defender a nossa soberania contra influências exteriores.
Constitui firme propósito do Governo reprimir todos e quaisquer actos ou atitudes que venham comprometer a tranquilidade das populações’.
Segundo resolução recente das entidades patronais a que pertencem os marinheiros, serão imediatamente aumentados em cerca de 40% os que auferem menor salário, até que sejam reajustados os salários de todos os trabalhadores indígenas, a cujo estudo o Governo da Província está procedendo conforme é dito naquele comunicado”.

Os acontecimentos começam a precipitar-se, doravante uma resma de ofícios confidenciais vai seguir para o BNU em Lisboa com o título “Informações – Acontecimentos Anormais”, logo em fevereiro e março de 1960 o aparecimento de panfletos cujos textos vão ser enviados para Lisboa.
A 21 de fevereiro de 1960, o gerente escreve:  
“Não há dúvida que, ao presente, se vive na Guiné numa atmosfera de preocupações e crê-se que, subterraneamente, se está desenvolvendo junto da massa indígena uma nefasta propaganda contra a nossa presença. Sua Ex.ª o Governador vem de há muito seguindo – e impondo a todos os serviços uma política de paternal tolerância para com os indígenas e procura elevar-lhes um nível de vida e de cultura. Entre essas medidas avulta a de não obrigação de trabalhar. Claro que, mal preparados para compreender o fundo humano e patriótico dessas concessões, o indígena interpreta-as como fraqueza do branco e permite-se atitudes de arrogância e de resistência a toda a espécie de colaboração que noutra Província nunca verificámos.”

(Continua)



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Notas do editor

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Último poste da série de 9 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19177: Notas de leitura (1118): O último livro do nosso camarada António Graça de Abreu, um viajante compulsivo e um escritor multifacetado: "Notícias (extravagantes) de uma volta ao mundo em 98 dias" (Lisboa, Nova Vega, 2018, 126 pp.) (Luís Graça)

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