quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19173: Historiografia da presença portuguesa em África (136): Dois mapas da Guiné, 1948, 1951: quantas dúvidas, quantas interrogações (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Nunca debatemos aqui a fundo as cartas geográficas da Guiné, antes e durante a guerra e após a independência. As cartas concebidas com a ajuda soviética nos anos posteriores à independência foram um desastre eloquente, estão postas de parte, tal o volume de erros, com distâncias inconcebíveis.
As cartas com que combatemos andavam próximo da realidade, com a natural exceção de que com a passagem dos anos as antigas localidades iam desaparecendo, tomadas pela natureza.
O exemplo de que hoje me socorro são duas cartas, uma com a data de 1948 e outra publicada em 1951, não têm nada uma a ver com a outra, a não ser o nome das principais localidades e o rigor das linhas fronteiriças. O resto é um acervo de dúvidas, hoje irresolúveis, o que levou aqueles geógrafos a referirem povoações inexistentes e posicionamento de etnias totalmente fora da realidade? Isto só para dizer que os historiadores não podem na sua atividade excluir mais este escolho: quem ali vivia e efetivamente ali vivia.

Um abraço do
Mário


Dois mapas da Guiné, 1948, 1951: quantas dúvidas, quantas interrogações

Beja Santos


 (Clicar nos mapas para ampliar)

Quando consultamos as cartas geográficas anteriores àquelas que utilizámos na nossa atividade operacional, elaboradas pelos Serviços Cartográficos do Exército e que contaram com os trabalhos da Missão Geoidrográfica da Guiné, encontramos disparidades de monta. Sugiro, como exercício, que tomemos como referência estas duas cartas geográficas. A primeira foi impressa no Instituto Geográfico e Cadastral, em 1948. Encontramos nela bastante precisão. No trabalho que levo em curso sobre a história do BNU na Guiné, encontrei inúmera informação sobre o início da luta armada. O gerente do BNU em Bissau possuía muito boa informação confidencial e tinha acesso à documentação produzida pela gerência da Sociedade Comercial Ultramarina. Ficamos a saber, por essa documentação, como iam evoluindo as infiltrações do PAIGC, veja-se a região Sul, em meses Xugué, Salancaur, Caboxanque, Cadique, Cafine, Cacoca e Campeame foram sistematicamente sujeitos à pressão do PAIGC, as populações do Sul, ao longo de 1963 foram-se concentrando em Cacine, Cabedu, Catió, Bedanda e Empada. Podemos olhar para a carta e perceber a quase ausência populacional na chamada região do Gabu, as povoações contam-se pelos dedos.

Tive acesso a este esboço da colónia da Guiné através de uma carta adquirida na Feira da Ladra. A segunda carta vem publicada num livro em que muitos de nós estudámos, intitulado “Novo Atlas Escolar Português”, por João Soares, Sá da Costa, 1951. A carta, teoricamente mais recente que a anterior, exclui a generalidade dos nomes que vêm referidos na de 1948, e que se traduziram nos ataques do PAIGC na região Sul e que levaram à concentração populacional em lugares como Gadamael, Cacine, Catió, Cufar, Bedanda e Empada. Refere populações predominantes que não tinham nada a ver com a realidade: nem a região Leste e Centro era esmagadoramente constituída por Fulas, nem a região Sul por Beafadas, não há uma só referência a Mandingas ou mesmo Felupes, destacam-se os Nalus, que já naquele tempo eram uma perfeita minoria. Igualmente o nome das povoações deixa muito a desejar: falando de um território que palmilhei, do outro lado de Bambadinca, refere-se Sambel Nhanta, que há muito não existia, nem mesmo Caranque Cunda e muito menos Checibá de que nunca encontrei qualquer referência. Nunca encontrei qualquer estudo, tirando o trabalho sobre a antroponímia de Teixeira da Mota, que permita pôr luz sobre a verdadeira posição das localidades, em diferentes períodos temporais, e um efetivo posicionamento de etnias, pelo menos no período correspondente à chamada ocupação efetiva, depois de 1915.

Tudo isto para dizer que esta complexidade de fixação de etnias e de designação de povoações dificulta qualquer trabalho historiográfico, subtraindo-lhe rigor e autenticidade. É este um dos empecilhos quase irresolúveis, dado o progressivo desaparecimento dos mais velhos, que poderiam contribuir para dar uma certa ordem e clarificação aos nomes do passado e a sua relação com os nomes do presente.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19152: Historiografia da presença portuguesa em África (134): Relatório anual da Circunscrição Civil dos Bijagós, 1932 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Interessante, Mário... Valeria a pena aprofundar este problema da discrepância entre mapas e topónimos, cartografia e toponímia...Vd. os respetivos descritores:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/cartografia

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/topon%C3%ADmia

Mas isto interessa a quem ? - perguntarão alguns. Espero que haja estudiosos, em Portugal e na Guiné-Bissau, possam ainda resgatar as "memórias" dos mais velhos...

Localidades que foram importantes, em termos geográficos, económicos, políticos, religiosos, militares, administrativos... também muitos em Portugal... As sucessivas reformas administrativos, a par das dinâmicas demográficas, acabam por ir redesenhando o nosso velhinho Portugal...

Por exemplo, o concelho do Marco de Canaveses foi criado em 1852 por decreto de D. Maria II, por anexação dos concelhos de Benviver, Canaveses, Soalhães, Portocarreiro, parte dos de Gouveia e Santa Cruz de Riba Tâmega. A vila foi, pomposamente, elevada a cidade em 1993...

Antº Rosinha disse...

Não era fácil o trabalho de cartografia em África, mesmo após a fotografia aérea aparecer nos anos 40 e 50.

Mas as colónias portuguesas eram das que estavam mais adiantdas nos levantamentos em escalas 50 e 100.ooo tal como essas exibidas no blog.

Podiamos ser muito pobrezinhos a explorar riquezas (madeiras, minérios), estradas, hospitais etc. até os indigenas da sanzala sabiam o atrazo do português, porque viam os vizinhos ingleses e franceses e belgas, mas sabiamos que em levantamentos cartográficos em África, outros estavam mais atrasados que nós.

Quando começaram as independências muitas fronteiras ainda não estavam bem definidas cartograficamente e materializadas no terreno , caso de Cabinda, Congo Francês e Belga.

Aqui o Estado (Salazar) não foi muito miserável, investiu no melhor.

Também eu batizei muitas sanzalas e rios em Angola nos Serviços Geográficos e Cadastrais, em vários idiomas, uns com sotaque do norte outros do sul outros do leste outros do oeste.

Eu e muitos colegas meus registámos regiões onde jamais qualquer europeu, branco ou preto, tinha sido visto por aquela gente.

Tinhamos 10 escudos por dia, para gastar com interpretes, para não termos desculpa de não apresentar trabalho.

Às vezes interpretávamos mal os interpretes e os nomes saiam muito chatos.

POr exemplo, traduzindo, saiam , rio "não sei", sanzala "não tem" montanha "talvez"...que cena!