segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19169: Notas de leitura (1117): “Racismo em português, o lado esquecido do colonialismo”, por Joana Gorjão Henriques; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
O trabalho da jornalista Joana Gorjão Henriques apareceu inicialmente no Público, foi um projeto de cinco reportagens nas cinco ex-colónias africanas. Quarenta anos passados sobre a independência das ex-colónias, importava questionar até que ponto o racismo afeta ainda hoje as relações sociais, políticas e económicas nesses países. Reconheço o mérito do trabalho, mas confesso que o mesmo merecia tratamento caleidoscópico, por isso introduzi uma questão de peso para Angola e Moçambique, os brancos de primeira e de segunda. Acresce que também era útil questionar como é que a descolonização, ao olhos dos portugueses afeta as nossas relações com esses países, também tem que se medir o pulso aos antigos colonizadores e sua descendência para saber como se pôde descomplexar e erradicar as relações sociais em que o branco aparecia sempre em superioridade.

Um abraço do
Mário


Racismo em português, o lado esquecido do colonialismo: 
O testemunho da Guiné-Bissau

Beja Santos

“Racismo em português, o lado esquecido do colonialismo”, por Joana Gorjão Henriques, Tinta-da-China, 2016, é uma reportagem em que 40 anos depois da descolonização a jornalista foi perguntar até que ponto persistem ainda hoje as ideias de raças espalhadas por Portugal nesses países, como é que as populações dos países colonizados olham para o papel de Portugal enquanto colonizador, trabalho feito em cinco viagens às cinco ex-colónias portuguesas. A autora conta-nos como trabalhou: “Em cada país escolhi uma amostra de entrevistados, proporcional ao número de habitantes. O objetivo era reunir vozes que representassem as diferenças existentes: de classe social, de género, de situação profissional, de origem geográfica, de experiência pessoal, de interpretação. Interessou-me ouvir o passado e saber que marcas persistem desse passado ainda hoje”.

Como seria de esperar, há narrativas similares e naturais dissemelhanças decorrentes do processo descolonizador. Veja-se Angola: houve segregação racial em autocarros para brancos e para negros; havia brancos, assimilados e indígenas. A autora não entra em pormenores, mas havia duas categorias de brancos, os de primeira e de segunda, como Jerónimo Pamplona em “Angola Noutros Tempos, Por Terras do Golungo e de Ambaquistas”, Pangeia Editores, 2016, claramente refere: os naturais da colónia e os oriundos da metrópole, brancos europeus e brancos de segunda, estes nascidos nas colónias. A identidade de cada um fixava-se nos documentos oficiais, para os brancos com indicação do território colonial de origem e a menção de não indígena ou europeu para os nascidos na metrópole. E adianta: “O regime colonial português construiu uma hierarquia racial baseada no cruzamento de dois conceitos distintos – raça e naturalidade. Os brancos naturais de Angola foram oficialmente classificados de euroafricanos a fim de os distinguir dos metropolitanos, eram os brancos de segunda”. Os assimilados e indígenas assumiam a inferioridade que lhes era ditada pelo colonialismo. A partida do colonialismo não significou o fim da discriminação, continuam a existir os musseques e desenvolveram-se os arranha-céus para a classe dirigente.

Vejamos os testemunhos que Joana Gorjão Henriques recolheu da Guiné-Bissau. A primeira marca era ditada pela cidade onde podiam viver os civilizados e os assimilados e a periferia onde se espalhavam os bairros indígenas. Pelas seis da tarde, uma sirene recordava a todos que a cidade de Bissau passava a pertencer exclusivamente a brancos, mestiços, comerciantes, enfim, gente que comesse à mesa, que usasse garfo e faca, tivesse um salário ou modo de vida e um estilo de vida português. Quando uma pessoa requeria o estatuto de assimilado tinha de provar que se vestia como um europeu e que já não praticava as cerimónias tradicionais. Leopoldo Amado, diretor do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, lembra a época em que um sinal dava ordem de entrada e saída da população negra na cidade, no porto havia um muro para separar as populações africanas dos moradores. Os assimilados mudavam de nome, quem fosse Fodé ou Braima passaria a ser Fernando ou João.

A potência colonial nunca hostilizou a região muçulmana, pelo contrário, construiu mesquitas e apoiou financeiramente as peregrinações a Meca. Há muitas explicações para este comportamento de uma visível tolerância religiosa: o cristianismo claudicou logo nos primeiros séculos, o missionário sentia a adversidade do clima e a absoluta falta de meios; a colonização portuguesa só se torna efetiva depois das campanhas de Teixeira Pinto e da montagem de uma estratégia de convivência interétnica assente no acicate de clivagens entre elas, dando a certas etnias prerrogativas especiais, caso dos Fulas e dos Mandingas, sociedades verticais, pouco interessadas em aberturas políticas. A administração colonial recorria ao trabalho forçado para a construção de estradas, subtraía o sentimento de resistência junto das populações locais evidenciando os benefícios do avanço nos meios de comunicação.

Durante muito tempo pretendeu-se iludir a natureza e a proveniência dos colonizadores, com a luta armada fingiu-se que não havia uma profunda hostilidade do guineense face ao cabo-verdiano. Saico Baldé, atualmente a fazer um doutoramento sobre os migrantes guineenses em Portugal lança alguma luz sobre a questão: “Quem eram os administradores? Raramente eram os lisboetas, muitas vezes eram os cabo-verdianos. Aliás, 70% dos funcionários coloniais em 1971 eram cabo-verdianos: não lidámos com o colono diretamente, mas com o subcontratado. Isto deixou outra marca, a rivalidade entre a ala originária de Cabo Verde e a da Guiné. Os restantes 30% estavam cá em cima: quem lidava com o nativo não era o colono da metrópole era o cabo-verdiano vindo de S. Vicente ou da Praia”.

Chicoteava-se quem não pagava o imposto de palhota, o que nos remete para um outro colaborador do colono: o sipaio, que pressionava as populações para acatar as ordens ou para pagar o imposto, para trabalhar nas estradas e nas construções. E não podemos esquecer os grumetes, cristianizados, vistos como próximos dos brancos, também eles paus para toda a colher ajudando os colonos, combatendo ao lado dos portugueses em todo o período da ocupação.

A jornalista comete por vezes imprecisões graúdas, caso de atribuir os disparos do Pidjiquiti, em 3 de Agosto de 1959 à PIDE, foi a PSP quem avançou e disparou, a PIDE vem mais tarde.

O sistema educativo era irracional, os alunos eram obrigados a aprender de cor os rios e serras de Portugal (como nós aprendíamos de cor todos os principais rios e linhas de caminho-de-ferro do Império), a realidade local era praticamente obliterada. Nota comum aos inquiridos é ninguém acreditar que o colonialismo português tenha sido brando, é evidente que o governador Sarmento Rodrigues trouxe alterações de tomo, a seguir à II Guerra Mundial e que nomeadamente o período de Spínola foi marcante no desenvolvimento, mas era demasiado tarde. Há quem interprete a postura de Cabral em relação ao colonialismo defendendo que o inimigo do povo da Guiné-Bissau não eram os portugueses mas o sistema como o acontecimento decisivo para a harmonia no relacionamento entre portugueses e guineenses.

Na sua reportagem à Guiné-Bissau, Joana Gorjão Henriques refere a rota da escravatura que teve o seu ponto central no porto de Cacheu. Aqui a repórter comete outra imprecisão grave, diz que Cacheu chegou a ser a capital da Guiné-Bissau, a Guiné só teve duas capitais: Bolama e Bissau, Cacheu não foi que sede de capitania. Teve um papel importantíssimo no resgate de escravos. Era um comércio em que havia intermediários entre os armadores e os régulos africanos. E refere-se à Companhia de Cacheu e Rios de Guiné (1676), à Companhia de Cabo Verde e de Cacheu (1690) e à Companhia do Grão-Pará e Maranhão (1755). Na Igreja de Nossa Senhora da Natividade, criada no século XVI, chegou-se a converter 600 a 800 africanos num dia, afirma Leopoldo Amado. Com a abolição da escravatura, Cacheu definhou e a potência colonial teve que reorganizar a economia da Guiné, centrou-se na agricultura, findo o século do comércio de escravos. Leopoldo Amado lembra que a Guiné-Bissau foi uma colónia de exploração, não de fixação e acrescenta textualmente que era um território que alimentava o comércio de escravos de Cabo Verde, o arquipélago prosperou, a Guiné não. Os portugueses nunca tiveram uma política de conquista e de fixação e não se podiam medir com a resistência dos povos africanos. Era uma presença espúria, os portugueses nunca tiveram o domínio exclusivo do comércio de escravos dos rios da Guiné, nunca houve meios para dissuadir as investidas dos espanhóis, franceses e holandeses. Depois construiu-se a fortaleza de Cacheu, a seguir à Restauração, contribuiu para que o resgate de escravos pudesse florescer. Leopoldo Amado refere o número de 3 mil escravos por ano e conclui: “Se considerarmos que esse resgate durou cerca de 3 séculos, estaremos em condições de dizer que esse forte permitiu que pudesse sair cerca de um milhão de escravos de Cacheu e de povoações vizinhas. Por isso, a importância de Cacheu sobreviveu até aos nossos dias através da história lendária das suas grandes famílias que prosperaram e se multiplicaram”.

Importa não descurar que um dos objetivos do trabalho de reportagem de Joana Gorjão Henriques era o de questionar se os portugueses terão sido mais brandos e menos racistas do que as outras potências coloniais, igualmente questiona o silêncio que mantemos quanto ao trabalho escravo que existiu em parcelas do Império até 1974 e tece por último uma interrogativa que não é menos inquietante: “O que revela esta perspetiva de brandura de olhar sobre nós próprios, portugueses?”.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19161: Notas de leitura (1116): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (58) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Valdemar Silva disse...

Muito interessante.

Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Se em 2016 (42 anos após...)se continua sempre a tentar quantificar e qualificar e tipificar o racismo "á-lá-portuga", é porque de facto é difícil entender o que meia dúzia de gatos pingados andaram a fazer por este mundo a fora.

Será que alguém saberá interpretar quem vinha em primeiro lugar se era o branco de segunda ou o branco de primeira?

Será que alguem saberá quem era mais (des)humano, se o chefe de posto mestiço, caboverdeano, indiano, ou metropolitano?

Será que explorar mais ou menos riquezas naturais, seria pior ou melhor colonizador?

E a desumanidade que era os pretos decorarem as estações da linha do norte mais o rio douro e tejo, e os brancos decorarem os rios e a cultura da mandioca e do dendem, também era um caso de racismo bem rebuscado.

E dava direito a reguada.

No fim fica tudo resumido a uma simples «cova-da-moura» e tudo se resolve!





Valdemar Silva disse...

Rosinha
Não é tão tarde, ou cedo, assim.
Ainda agora se anda a escrever sobre quem seriam, ou o que seriam, os romanos que colonizaram a Lusitânia.

Valdemar Queiroz