sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19161: Notas de leitura (1116): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (58) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Março de 2018:

Queridos amigos,
Aquele gerente de Bissau tem um relacionamento preferencial com as altas instâncias da administração do BNU. Todas as peripécias sobre Fernando Correia, que estava à testa dos negócios em Bissau da Sociedade Comercial Ultramarina, a sua substituição, por razões de uma cunha, e sob a discreta acusação de que praticara mão baixa, as ofertas de emprego que o Governador da Guiné lhe propõe, a sugestão de se fazerem casas de férias em Varela, as tensões com a Casa Gouveia, a grande rival da Sociedade Comercial Ultramarina, afloram nesta correspondência dirigida a Gastão de Bessone Basto e Francisco Vieira Machado.
Aqui se publica, com mera curiosidade da pequena História, a passagem do Duque de Bragança, D. Duarte Nuno, por Bolama, a caminho do Rio de Janeiro, com absoluta discrição do Ministro das Colónias e do Governador da Guiné foi acolhido nas instalações do BNU de Bolama, houve que trazer faqueiro, móveis e tapetes de Bissau.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (58)

Beja Santos

Não é de mais insistir que este avulso acervo documental depositado no Arquivo Histórico do BNU é, por definição, heterogéneo, abarca desde considerações pessoais, a pedidos de mobília e utensílios até documentadas exposições sobre o comportamento comercial dos grandes exportadores de mancarra.

Há pedidos aparentemente bizarros, o leitor da documentação não deve abstrair como o mercado de Bissau tinha infindáveis limitações e daí o recurso insistente para virem objetos de utilidade pessoal a partir de Lisboa, mesmo que a sede fosse reticente em proceder a tais envios.
Vejamos esta carta de 12 de março de 1958 em que António de Aguiar a partir de Lisboa se dirige ao gerente do BNU em Bissau:
“Em 5 do corrente recebemos o seu telegrama de 4 do seguinte teor: enviem primeiro avião um par óculos miopia quatro dioptrias. O Banco não se ocupa destes assuntos pois estão fora das suas funções especiais, mas por consideração por essa gerência damos ordem ao nosso arquivo para lhes enviar os óculos pedidos.
As casas da especialidade exigiram que se lhes indicasse a distância pupilar, sem o que não forneciam os óculos e em 8 telegrafámos como segue: Seu 4 óculos telegrafe distância pupilar. Em resposta recebemos em 10 o telegrama de 9 dessa agência: Seu ontem distância normal. Comunicámos este conteúdo ao nosso arquivo para dar andamento ao assunto, o qual nos comunicou o que abaixo se transcreve: Os oculistas, consultados sobre os óculos para Bissau, esclarecem que é necessária a distância pupilar, observa-se que a distância normal é variável. Dizem que é muito fácil obter essas dimensões desde que se coloque um metro ou uma fita métrica sobre o nariz, estando a pessoa, a quem se tira a medida, a olhar bem de frente, a outra pessoa medirá do centro de uma pupila ao centro da outra pupila a distância que se pretende saber.
Posto isto, queiram considerar-nos desligados do assunto.”

Recuemos a 1957, encontram-se no arquivo cartas de grande interesse, uma dirigida ao administrador Gastão Bessone Basto e as duas seguintes a Francisco Vieira Machado, o governador.
Diz-se na carta de 27 de março dirigida a Bessone Basto:
“Penso haver alguma utilidade em relatar-lhe o que tenho sabido e observado quanto à saída do Fernando Correia da Sociedade Comercial Ultramarina. Em carta apressada disse-lhe o que tinha sabido pela boca do Dr. Serra Brandão e transmiti-lhe uma primeira impressão, agora conheço mais versões.
Comecemos pelo princípio. Em Dakar, em 10 de Março, fui abordado por dois rapazes que se apresentaram: Comandante Dr. Serra Brandão e Dr. Camacho Coelho. O último tinha estado dois meses na Guiné em visita de inspecção à Sociedade Comercial Ultramarina, o primeiro havia-se demorado um mês, na sua qualidade de administrador da mesma Sociedade.
Disse-lhes que sabia da visita do Serra Brandão à Guiné e perguntei-lhe como iam as coisas com o Fernando Correia. Que estava tudo arrumado e pela melhor forma, respondeu-me. Que tinham chegado a completo acordo, acrescentei que me alegrava por saber o caso arrumado, visto que a situação do Fernando Correia na Sociedade Comercial Ultramarina não podia ser indiferente ao BNU.
Houve um certo engasgamento e quando eu dava outro rumo à conversa o Serra Brandão dispara: ‘V. Ex.ª sabia que o Fernando Correia tinha pedido a demissão propondo-se sair em Dezembro. Ora isto não era possível. Ou saía já ou saía depois de Dezembro. Concordou em sair já. E já está nomeado gerente da Sociedade Comercial Ultramarina o Dr. Ribeiro e o Fernando Correia sairá definitivamente no fim do mês.
Confesso que a coisa me deixou sem fala, entre a dúvida se aquele sujeito se tinha entretido a chuchar comigo ou se se tratava de um caso de palermice qualificada. O Serra Brandão leu certamente a coisa na minha cara e acrescentou: ‘Ficou tudo arrumado e nos termos mais amistosos. O Fernando Correia confessou ao Dr. Camacho Coelho que de facto nos tinha metido algumas rasteiras, que não tinha sido inteiramente leal com a nova administração da Sociedade.’
O Grave Leite, que assistia à conversa perguntou: ‘E o que vai fazer o Fernando Correia?’ Resposta do Dr. Serra Brandão: ‘O Fernando Correia disse-nos que tudo dependia da indemnização que a Sociedade lhe vier a dar. Se atingir determinada quantia, liquidará compromissos que tem e virá para a Metrópole. Caso contrário, terá de continuar em África’.”

O autor da carta dá-nos saborosos detalhes, o tal Fernando Correia teria praticado deslealdades, fora forçado à demissão. Foi depois conversar com Fernando Correia, este expressara ao autor ter havido má vontade da nova administração, fora intimidado a pedir a demissão ou a ser posto na rua. Fernando Correia dizia ao autor da carta que a hostilidade do Dr. Serra Brandão tinha dois motivos essenciais, não querer que houvesse na Sociedade quem, como ele, estivesse fiel e ligado ao BNU e o Dr. Serra Brandão queria arranjar uma situação para um amigo íntimo, o tal Sr. Ribeiro, que ele, Fernando Correia, considerava pessoa sem qualidades para o desempenho do cargo. Fernando Correia alegava ter trabalhado durante 26 anos, fora sempre servidor dedicado acima de tudo ao Banco (mesmo depois da venda da Sociedade Comercial Ultramarina à Sociedade Nacional de Sabões), pedia ao Banco que utilizassem qualquer serviço.

E o autor da carta mostra-se insinuante:
“A impressão causada na Província pela saída do Fernando Correia não é favorável à Sociedade Comercial Ultramarina. Considera-se que se cometeu uma injustiça e, sobretudo, que a Sociedade Comercial Ultramarina, privada da sua peça essencial, administrada por senhores que só conhecem a Guiné por ouvir dizer e gerida por um rapazola sem prestígio, caminha para um desastre retumbante. Estive no domingo em Catió, em casa do Sr. Álvaro Camacho, o maior produtor de arroz da Guiné e o primeiro cliente da Ultramarina. Considera a saída do Fernando Correia um disparate, mais um disparate a juntar à série de disparates que a Sociedade Comercial Ultramarina tem cometido desde que pertence à Sociedade Nacional de Sabões, disparates que só o Fernando Correia tem remediado. Não terminarei estas notas sem lhe dizer que o Fernando Correia disfruta em toda a Província de um real prestígio. É certo que distingue sobre ele o prestígio inerente a ser o gerente da Sociedade Comercial Ultramarina. É o presidente, respeitado e acatado, da Associação Comercial. É vogal do Conselho do Governo. É vogal da Administração do Porto. Peço-lhe que transmita aos nossos colegas o pedido do Fernando Correia, visto que foi formulado ao Banco por meu intermédio.”

O mesmo autor da carta escreve em Bissau em 28 de março para Francisco Vieira Machado, em Lisboa:
“Como é sabido, a Guiné Portuguesa está situada na zona tropical, a meio entre o Equador e o Trópico de Câncer, entre o Atlântico sul e o enorme bloco continental sudanês-sariano. A sua situação geográfica caracteriza o clima com a existência de duas estações, com uma temperatura média anual à volta de 26,6º e uma humidade que ronda os 86%.
O clima é, pois, extremamente depauperante, sobretudo para os indivíduos vindos da Metrópole ou, mesmo, de Cabo-Verde.
Independentemente de outras razões, o Banco tem toda a vantagem em que os empregados desta Dependência se recuperem dos efeitos do clima guineense por forma a darem melhor rendimento do que o até aqui obtido.
Sucede que na própria Província existe uma praia que pelas suas excepcionalíssimas condições climatológicas permite uma óptima recuperação. Trata-se da praia de Varela, situada na Circunscrição de S. Domingos. Há uns anos a esta parte, Varela começou a ser ‘descoberta’ e a ter uma frequência que se vai acentuando. O governo da Província está interessado em fazer de Varela a estação de repouso dos funcionários públicos e de quantos necessitam de uma mudança de clima. Para tanto: facilitarem-se os transportes, reduzindo-se a 205$00 ida e volta por pessoa a viagem de avião; subsidia-se o concessionário do restaurante por forma a que uma diária completa custe 150$00 para casal e 75$00 por pessoa; alojam-se os turistas, com preferência para os funcionários nos bungalows propriedade do Governo, estando o custo desta hospedagem incluído na diária; fazem-se captações de águas, instalação eléctrica, etc.

Pensa o atual Governador, com quem troquei impressões acerca desta praia e seu futuro, que Varela seria o local de repouso e recuperação de quantos aqui trabalham através das facilidades que vai concedendo, contribuindo essas mesmas facilidades para intensificar a frequência dos europeus residentes na Guiné Francesa, sobretudo de Ziguinchor. Quanto ao grande turismo internacional pensa – e a meu ver muito bem – que o arquipélago dos Bijagós poderá vir a ser um estupendíssimo centro de atracção, dadas as suas excepcionalíssimas condições de exotismo, desporto e beleza natural.
À semelhança do que está estabelecido para os empregados do Continente – e aqui por maioria de razões – proponho que seja concedido aos empregados da Dependência de Bissau um subsídio de férias, pelo menos igual ao estabelecido pelos CCT do Continente, mas só para os que se proponham gozar as suas férias em Varela. Com efeito, não se justifica tal subsídio para um empregado que resolve gozar as férias em Bissau ou em qualquer outro ponto da Província – que são todos piores que Bissau.
Proponho, ainda, que o Banco mande construir em Varela dois bungalows, cada um com dois a três quartos e uma ou duas casas-de-banho. O preço destas construções não será superior a 60$00 por bungalow. A oportunidade da elaboração dos projectos e adjudicação da construção seria a mesma da edificação das moradias dos empregados.
Peço a V. Ex.ª que transmita os meus mais afectuosos cumprimentos aos nossos colegas. O melhor abraço do seu amigo certo e muito dedicado.”

Lendo as duas missivas, pelo teor das mesmas infere-se rapidamente que o autor da carta é o gerente de Bissau, como se vê altamente bem relacionado a nível da administração em Lisboa.
A preparar-se para viajar no “Ana Mafalda” a 8 de abril desse mesmo ano dirige-se ao governador do BNU, tem novidades:
“Tive uma curiosa conversa com o Governador acerca da Sociedade Comercial Ultramarina. Começou por me anunciar que ia nomear Presidente da Câmara Municipal de Bissau o Fernando Correia. Justificou a nomeação por ela corresponder a um movimento unânime das pessoas representativas de Bissau e deplorou o erro gravíssimo em ter sido substituído na gerência da Sociedade Comercial Ultramarina.
A conversa continuou acerca da Ultramarina, tendo-me o Governador manifestado a opinião de que a empresa corre aceleradamente para um desastre. Está entregue, aqui, a um rapaz estimável mas sem a menor experiência. Os sujeitos de lá (como o comandante, Dr. Serra Brandão) não perceberam nem percebem que os esquemas teóricos não correspondem de modo nenhum às realidades guineenses.
A conversa foi muito longa e eu gostaria de dar apenas o essencial pelo que a resumo num dos seus passos: a situação criada pela saída do Fernando Correia pôs os concorrentes da Ultramarina em euforia porque irão rapar-lhe toda a clientela que tenha interesse.
A coisa, como V. Ex.ª vê, não está brilhante e os interesses do Banco não se defendem, apenas, com mais ou menos garantias. Se a Ultramarina se estende, entregam-nos um cadáver porque não são os prédios que numa empresa destas têm valor. O seu valor está no potencial económico, constituído ao longo de muitos anos e que numa campanha – que pode ser a próxima – se pode totalmente perder.”

(Continua)

Com os cumprimentos de Saúde e Fraternidade, uma carta dirigida ao Dr. Malva do Valle, comissário do Governo junto do BNU, com data de 3 de março de 1921, uma queixa acerca da gerência da Filial de Bolama sobre a importância de direitos alfandegários.

Notícia do jornal Arauto, 7 de abril de 1957 sobre a independência de Singapura, a descolonização na Ásia e em África estava já na rampa de lançamento.

Carta do gerente Virgolino Pimenta endereçada para a sede em Lisboa, dando notícia da estadia em Bolama de D. Duarte Nuno de Bragança, a caminho do Rio de Janeiro, onde vai casar-se. Em junho de 1942, o duque de Bragança faz uma curta estadia em Bolama, é deferentemente acolhido pelo gerente de Bissau, chegado ao Rio agradece por telegrama. Sempre pragmático, Virgolino Pimenta termina a carta dizendo que se fizera uma despesa de 730$00, que a Filial adiantara sob a sua responsabilidade, o Governo da Colónia pagaria a conta.
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Notas do editor:

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Último poste da série de 29 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19146: Notas de leitura (1115): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (2) (Mário Beja Santos)

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