quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19192: Historiografia da presença portuguesa em África (137): Crenças e costumes dos indígenas da ilha de Bissau no século XVIII - Revista "Portugal em África" (Mário Beja Santos)

Imagem de uma Festa da Luta Felupe (Eran-ai), tirada em Sucujaque, em 8 e 9 de Abril de 2012, enquanto em Bissau decorria o golpe de Estado. 
Fotografia cedida por Lúcia Bayan, investigadora do povo Felupe, a quem agradecemos a gentileza.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Estamos sempre a aprender, por feliz acaso encontrei a publicação "Portugal em África, Revista de Cultura Missionária", tem duas séries, aquela em que ando a remexer data da década de 1940.
Num número de 1945, encontrei este saboroso documento, um ex-Vigário Geral da Guiné, Padre António Joaquim Dias Dinis, franciscano, trabalhou um autógrafo inédito do cronista Frei Francisco Santiago, documento que data de 1697. Por esta época, os franciscanos tinham a seu cuidado os hospícios de Cacheu, Bissau e Geba. Neste manuscrito até então inédito ficamos com um relato dos Papéis, as suas crenças e práticas religiosas, o régulo e os cerimoniais do seu enterro, o que era então a povoação de Bissau e a enternecedora devoção a Nossa Senhora da Candelária.

Um abraço do
Mário


Crenças e costumes na ilha de Bissau no século XVIII

Beja Santos

Causa-me uma certa incompreensão não ver referenciada na principal bibliografia sobre a colónia da Guiné a revista "Portugal em África", Revista de Cultura Missionária, teve duas séries em épocas distintas, vamos agora referir um trabalho do franciscano Padre António Joaquim Dias Dinis, ex-Vigário Geral da Guiné, intitulado “Crenças e costumes dos indígenas da ilha de Bissau no século XVIII”, segundo manuscrito inédito, publicado no Volume II de 1945. Começa por dizer que os missionários franciscanos tinham adquirido, dois anos antes, numa biblioteca particular de Braga, o segundo volume da "Crónica da Província Franciscana de Nossa Senhora da Soledade", autógrafo inédito do cronista Frei Francisco de Santiago. Àquela província pertenceram, depois de 1673, os hospícios de Cacheu, Bissau e Geba. Da Metrópole, os missionários seguiam para a Ribeira Grande, na ilha de Santiago de Cabo Verde, de onde se dispersavam por aquele arquipélago e pelas terras guineenses. Este Frei Francisco de Santiago dedicou algumas páginas aos costumes e crenças dos indígenas, que o autor transcreve dados relativos aos indígenas da ilha de Bissau, têm valor histórico indesmentível por mostrarem costumes dos Papéis, os gentios da ilha de Bissau.
E assim escreve:
“Quadra-lhes bem o nome; porque, com facilidade se dobram, por serem de natural mais dócil e brando que os outros de sua cor, que é negra, o cabelo torcido, como todos os mais daquela Etiópia ocidental. E aos portugueses têm particular inclinação, de tal sorte que, ainda que as outras nações excedam à portuguesa na alvura do corpo, só aos portugueses denominam com apelido de Brancos; ou por ser a primeira nação em que notaram esta cor, para eles estranha no corpo humano, ou porque, com esta antonomásia mostram reconhecer aos portugueses pelos primogénitos da sua veneração.
A sua crença é num Deus, superior a todas as criaturas e essências. Não adoram ídolos, nem os têm. Não crêem na imortalidade da alma racional. Acresce que, supondo que há espíritos diabólicos e que estes lhes podem revelar o futuro e prosperar os seus desejos, lhes fazem sacrifícios, nas suas chamadas ‘Chinas’, que são na forma de um chapéu-de-sol, coberto de palha. Há entre eles feiticeiros chamados Mandingas, etíopes negros, estrangeiros, do interior de África, os quais, feitos missionários do Alcorão, procuram transfundir o veneno da sua diabólica doutrina na singeleza dos naturais daquelas terras.
Porém, é geral a propensão para a religião católica, não somente consentindo que os filhos, sobrinhos e todos em quem têm poder, a recebam, mas ainda algumas vezes espontaneamente os entregam aos missionários para os baptizarem. O motivo que ordinariamente tomam os gentios para consentirem e ainda oferecerem os filhos e filhas ao baptismo é para depois de baptizados se casarem e ainda amancebarem com os cristãos, o que têm por grande honra e crédito. E a isto chamam cunhadio ou parentesco com branco, por ser costume, naquelas partes, sendo todos negros, chamarem brancos aos que são cristãos, sendo pretos, por diferença dos gentios”.

O missionário orienta agora a sua atenção para as guerras e alimentação:
“Quando vão à guerra, chegando à terra dos outros gentios onde têm posto o fito, se escondem nas praias e matos deles, e aí esperam que deles apareçam homens ou mulheres descuidados, e os apanham e amarram com cordas, que para isto levam, e os trazem para vender. Embarcam em canoas feitas de um só tronco de árvore, que tão grandes e grossas são que cada uma delas leva de vinte pessoas para cima. Para se alimentar, levam uma botija com água e fundo, milho ou arroz, esta é a sua vianda comum de toda a vida, com algum peixe seco, mal cheiroso, ou azeite vermelho de palma, que tudo chamam Mafé. Podem também comer uns caranguejos que acham nas covas da terra, na borda das praias, a que chamam Cáquere.
As armas que levam para a guerra são traçados e zagaias. Armas de fogo rara vez as levam. Se acontece matarem a algum ou alguns dos contrários, têm um mais que diabólico costume, que é, podendo havê-los à mão, cortar-lhes as cabeças e as partes pudendas. E, trazendo uma e outra coisa, as cabeças metem em troncos de árvores e as partes vergonhosas as assam ao fogo e, depois de tudo bem torrado, o pisam fazendo-o em pós que todos bebem em vinho de palma. E dizem eles que é para os defuntos não poderem entrar nos seus corpos”.

Frei Francisco Santiago descreve a ilha de Bissau e quem a habita:
“Tem esta ilha de Bissau 28 léguas de circunferência, pouco mais ou menos. É de clima o mais salutífero de toda aquela costa, assim pela pureza dos ares como pela frescura e bondade das águas. O número de seus familiares se estima em 20 mil famílias. Além do rei principal, que se intitula de Bissau, tem a ilha mais outros sete reis inferiores, que são os de Quixete, Cumeré, Safim, Tor, Biombo, Bijamita e Antula.
É esta ilha a mais vistosa e aprazível de toda aquela costa, e os habitantes deles negros bem-parecidos, com dentes e beiços delgados. Tem rei, a respeito do qual é de notar que não herdam o reino os filhos de tal rei; mas, para o ser, vão buscar o filho da irmã do rei. Porque, como este tenha muitas mulheres, duvidam se será o filho seu. Mas o filho da irmã é certo ser parente dele".

Frei Francisco Santiago demora-se nos comentários quanto ao local e cerimonial do enterro do régulo:
“Tanto que o rei se acha mal e se presume que morrerá, poucas pessoas, ainda das suas, entram a vê-lo. Vendo que não tem melhor, prendem a todos os cativos e cativas que ele tem; e apenas morre, se levanta tal alarido de vozes e gritos ao som de tambores, que parece um inferno. E dura este, que chamam choro, muitos dias. Neste choro há de haver muito de comer e beber; e, quanto mais há, mais solene. Nos três dias imediatos à morte do rei, têm todos liberdade para matar, ferir e roubar, sem que por isso se forme crime algum.
Morto o rei, embrulham o corpo em panos e depois em um couro de boi. Põe-no em uma casa de barro, coberta de palha, sobre areia; e aí está até passarem nove dias. Aí o vêm prantear todos os seus amigos. E, se algum não vem, dizem os parentes que o que não vem lhe faz mal; por isso, vêm todos, ainda que saibam que os hão de matar. Nesse tempo, se ajuntam quantidade de ferreiros a fazer-lhe o leite de ferro. Ao terceiro dia da morte do rei, determinam os escravos que o hão de servir na outra vida, e a todos os que se hão de enterrar com o rei dão uma bebida que os faz alegrar excessivamente, e, com esta alegria, bailar de contentes, por irem acompanhar o seu rei, até que, de cansados, caem como mortos. E, dando-lhe garrote, atados ao tronco de uma árvore, os põem de parte, para os meterem na cova com o rei”.

O franciscano faz uma referência à povoação de Bissau e à sua defesa:
“A povoação dos cristãos nesta ilha fica junto ao porto dela, que é à parte do Sul, perto da ponta de Leste. E tem hoje de 500 a 600 pessoas. Já teve mais, e, ainda as tivera se os brancos do reino e das ilhas não fugissem de viver ali, pelas muitas e grandes vexações que lhes fazem o rei e gentios.
Para se defenderem deles os cristãos e portugueses, mandou o rei D. Pedro II levantar ali fortaleza no ano de 1686, com artilharia e munições de guerra”. 

E refere igualmente que foi necessário no reinado de D. José I ali ir um corsário de guerra que travou grande refrega com o gentio, se reedificou a fortaleza, mas praticamente tudo ficou na mesma.
Para finalizar, fala na imagem de Nossa Senhora da Candelária existente na Igreja Paroquial de Bissau, a que dão muita devoção não só os cristãos mas ainda os gentios.
E fala dessa devoção:
“No tempo em que aquela igreja era coberta de palha – que hoje é de telha – costumavam gentios, por devoção, levar dela umas palhinhas para serem bem-sucedidos. E ainda hoje, nas ocasiões de negócio grande, de guerra ou de perigo, invocam a Senhora dizendo em crioulo: Candelária vou-me embora.
Tanta experiência têm já no seu favor e patrocínio em sucessos felizes, que daqui procedia antigamente armarem-se com as palhinhas da sua casa, e hoje procede o invocá-la nas necessidades e perigos”.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19173: Historiografia da presença portuguesa em África (135): Dois mapas da Guiné, 1948, 1951: quantas dúvidas, quantas interrogações (Mário Beja Santos)

6 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Este é mais um daqueles documentos que ilustram que os guineenses nunca se curvaram, admitiram ou sequer aceitaram o domínio dos portugueses.
Os usos e costumes, quando mantidos após a chegada de uma civilização tecnologicamente e filosoficamente/religiosamente superior, são uma recusa de assimilação e diluição entre os recém chegados.
Se isto é uma forma de resistência, não sei, mas fica provado que a integração atingiu metas muito modestas.

Um Ab.
António J. P. Costa

an disse...

Historinhas mal contadas, meu caro Tozé Costa, só comandos africanos e chefes de milícias, fuzilados, pós 25 de Abril, porque estavam mais perto de nós, os odiados e bem amados portugueses,foram centenas e centenas.
Ai, os amanhãs que cantam e a porca da política que obscurece o entendimento.

Abraço,

António Graça de Abreu

António J. P. Costa disse...

Camarada

A revista que o Beja analisa publicava-se quando eu nem sabia onde era a Guiné.´
Estes doc. são autênticos e traduzem a opinião das autoridades e a realidade vivida na Guiné que não era ainda a tal "Guiné melhor"
Foram visados directa ou indirectamente pela comissão de censura que os deixou publicar e, se calhar, até aplaudiu.
Os pretinhos, como Salazar dizia, eram tão castiços... não eram?

Olha um Ab. e bom FdS
António J. P. Costa

António J. P. Costa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
António J. P. Costa disse...

Já agora diz-me lá o que é que têm os fusilamentos a ver com isto?
Os fuzilados não eram em grande parte nem nascidos. Ora explica
Um Ab.

antonio graça de abreu disse...

Dizes, meu caro Tozé Costa: "Os guineenses nunca se curvaram, admitiram ou sequer aceitaram o domínio dos portugueses."
Nunca? Nunca digas nunca!
Foram fuzilados porquê?
Porque admitiram e aceitaram uma Guiné melhor, mais moderna e livre, mais próxima de todos nós, portugueses.
O resto é política, péssima política.

Abraço,

António Graça de Abreu