sábado, 2 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18036: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (29): “Amor à Pátria”

Ponte Edgar Cardoso


1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 22 de Novembro de 2017 enviou-nos mais uma memória bem recente para integrar as suas outras memórias da guerra.


Outras memórias da minha guerra

28 - “Amor à Pátria”

Após meses e meses de assédio telefónico para assinar novo contrato por parte de certa empresa de telecomunicações, não resisti às constantes e boas promessas, bem como à obrigação da mudança.
Porém, nova pressão me veio incomodar. Agora, também através de e-mails: “Senhor Fulano, envie-nos os documentos de novo e com nova assinatura, uma vez que a que recebemos, não coincide com a do seu BI“.
Ainda me justifiquei com a penúltima trombose que me alterara a sensibilidade em alguns dedos da mão direita e, por via disso, se nota agora alguma diferença na minha escrita. Todavia, a compreensão desejada não encontrou eco em tanta exigência.
- Vê se resolves isso, porque vamos ficar encravados. – gritava a minha mulher, já farta de ver esquivar-me a este assunto.
- Nem é tarde, nem é cedo, vou agora mesmo.
- Isso, vai e vê se arranjas mais convívios de ex-combatentes, porque parece que é a única coisa que te interessa… e te faz bem.
Saí porta fora, aproveitando o momento e a reclamação sobre o almoço atrasado.

Passar defronte a Crestuma, torna-se obrigatório afrouxar para admirar a sua beleza

Este mês de Novembro já vai a mais de meio e o calor não nos larga. Nunca se viu tal. Até parece coisa do diabo e dos lóbis dos incêndios. Ora eu, o friorento crónico, até ando muito melhor.
Aproveito tudo para me deleitar com o sol e com a paisagem e, num repente, eis-me a deslizar suavemente pela margem direita do Douro, em direcção ao Porto. E, embora a quantidade de curvas na estrada prejudique bastante a atenção à magnífica paisagem que nos envolve, é notório o relaxe que me provoca.

Arnelas é outra lindíssima povoação ribeirinha de V. N. de Gaia

Estes bons momentos, enriquecidos por boa música, apanhada nos intervalos da sintonia radiofónica, foram interrompidos por um telefonema do Joaquim Coelho, o Presidente do MAC – Movimento dos Antigos Combatentes:
- Como vai isso das tuas mazelas? Ainda tens aquele reforço vitamínico que te dei? A segunda trombose está a passar?
Dou-lhe respostas positivas e ele insiste:
- Tem cuidado, não te envolvas demasiado, porque és um afectado com o stresse daquela maldita guerra. Sabes bem o que se passa com a chamada “peste grisalha” e o que nos espera. Estamos a morrer todos os dias.
De seguida, entusiasmado, aproveita para informar:
- Olha que aquele nosso projecto, de apoio aos ex-combatentes mais necessitados, está a andar. Tem havido reuniões e já entregámos novo projecto.
- Ok, Comandante, sabes bem que vos apoio, apesar de já não fazer parte dos Corpos Gerentes. Também sabes que não tenho a tua paciência para aturar essa cambada que nos tem governado. Estamos condenados por esta geração de políticos “democratas”, apátridas e cobardolas, mais especializados na mentira e na corrupção.

Casa do Gramido

Desta vez, a intenção era chegar à Maia e falar com o representante da tal empresa de telecomunicações, mas queria almoçar junto do Rio e, desta forma, aproveitar para prolongar e melhorar uns bons momentos de prazer. Para quem conhece aquela zona próxima da Casa Branca do Gramido, de belos passadiços e bons restaurantes, sente-se tentado a estacionar por aí. Mas, como ia sozinho, optei por procurar mais próximo do Porto um restaurante de aspecto mais modesto e de rápido atendimento.

Eram cerca de 14:00 horas. Já havia várias mesas vazias e desarrumadas, com sinais evidentes de terem sido usadas recentemente. Sentado junto do balcão, espreitava o esplendor do Douro pelos espelhos das prateleiras das garrafas.
- Na horinha, temos frango assado e carne à jardineira – disse o empregado.
Já eu pedira a maçã assada, quando noto a presença de três idosos, de aspecto humilde, junto do balcão. O mais alto (magricela) solicitou meio frango e três pães. O médio não parava de olhar fixamente para o arroz de cabidela disponível sobre a mesa mais próxima. O mais baixo, com os olhos apontados para a cozinha, esticava-se para ser notado:
- Dona Guidinha, não esqueça uns ossinhos para os nossos cãezinhos.
O primeiro saco foi entregue, ao mesmo tempo que se ouvia:
- São 3,90€.
O segundo saco ia ser entregue ao baixinho. Este agarrou bem o boné alusivo à campanha eleitoral do partido do governo, enterrou-o bem na cabeça, esticou-se para receber o “saquinho dos ossos” e esboçou um rasgado “muito obrigado”, ao mesmo tempo que exibia um sorriso com o único dente visível, o que lhe restava. Ao esticar o braço, deixou ver uma tatuagem que dizia: “Amor à Pátria”. Estava gravada sobre o Escudo Nacional e, por baixo estava gravado: “Guiné 1967-69”.

Nota:
Isto aconteceu na semana passada. Qualquer semelhança com a irrealidade é pura ficção.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17263: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (28): Gostaria de lhe chamar pai, autoriza?

3 comentários:

Antonio Rosinha disse...

A ponte lindíssima ferroviária da ponte da foto, projecto do prof. Edgar Cardoso, creio ter o nome de Ponte São João (?).

Ricardo Figueiredo disse...

Não perdes,meu caro Zé , a capacidade de observação do mundo que te rodeia . Mais um texto que , não fora essa tua capacidade , ficaria no passar dos dias ,até que um dia a morte levasse esse Camarada ,como tem acontecido com todos. " Amor à Pátria " aquela Pátria madrasta ,que esquece os seus Combatentes ,os abandona , os maltrata e até os humilha . Mas , desta vez , tu estavas lá e registaste , para memória futura , o esquecimento dessa Pátria de quem ,em dado momento ,lhe ofereceu o próprio sangue e até a vida !
Obrigado , Zé !

Luci Brito disse...

Sempre com a escrita alinhada o meu amigo,gostei,as fotos lindissimas....parabéns..