Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 1 de dezembro de 2017
Guiné 61/74 - P18032: Notas de leitura (1019): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (11) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2017:
Queridos amigos,
Acabou a I República, entrou-se na Ditadura Nacional. Na Guiné, vão operar-se mudanças e o BNU em Bolama está atento. O seu gerente aproveita o relatório anual para dar um panorama das potencialidades económicas o que urge desenvolver. É um período de escassez, como se verá no ofício aflitivo que o encarregado de Governo envia par o banco em Bolama. Continuam os sonhos das empresas agrícolas, umas já soçobraram, outras dão sinais de resistência e até de revigoramento como a Sociedade Agrícola do Gambiel. Mas é o ano em que a Associação Comercial de Guiné e a comissão urbana da cidade de Bolama abrem contencioso quanto às pretensões de Bissau vir a ser a capital da colónia.
É um extenso documento enviado ao ministro das colónias em 15 de Agosto de 1927. Vamos dedicar o próximo documento a tão importante exposição, carregada de elementos históricos.
Um abraço do
Mário
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (11)
Beja Santos
O relatório de exercício de 1926 da filial de Bolama do BNU tem uma singularidade digna de registo, detalha com inusitado desenvolvimento o quadro económico da colónia. Destas memórias enviadas para Lisboa fica-nos por vezes a dúvida se em Bolama se tomava a parte pelo todo, isto é se os dados apresentados correspondiam efetivamente a um conhecimento de toda a colónia, se incorporavam informações da agência de Bissau sobre outras paragens a que chegavam negócios, empresas, mercadorias.
É manifesto que neste período, e com o desencravamento produzido pelas estradas de terra batida, se avançou para pontos até agora entregues à exclusiva economia de subsistência, onde era mínima ou inexistente a interferência colonial. Mas são os documentos que temos, é sobre eles que importa refletir. Vejamos então o quadro económico apresentado à luz de 1926:
“Agricultura – o indígena da Guiné cultiva quase exclusivamente milho, arroz e mancarra. Entre estes géneros só exporta a mancarra, em quantidades razoáveis. O arroz também figura na exportação: tem-se exportado excecionalmente para Cabo Verde.
Arroz e milho – estes cereais são a base da alimentação dos indígenas; além destes cereais outros há que se dá perfeitamente no solo ubérrimo desta província.
Mancarra – a mancarra tem de ser orientada na sua cultura pois acabando-se com os processos rotineiros com ela é cultivada e fazendo-se rigorosa seleção da sua semente a sua produção aumenta sucessivamente.
Cana-sacarina – dá-se maravilhosamente. Mas, apesar disso, só a Sociedade Agrícola do Gambiel, em Bafatá, e alguns cabo-verdianos em Farim se dedicam à sua cultura mas em pequena escala e unicamente para a destilação da aguardente. A sua cultura, bem orientada, daria perfeitamente para se fabricar açúcar em quantidade apreciável.
Algodoeiro – outra cultura naturalmente indicada para esta província, constitui nas colónias, e especialmente nas inglesas, uma das fontes principais da sua riqueza. Nesta província, porém, só o encontramos por entre as florestas, e do seu produto ninguém mais se aproveita se não o indígena para o fabrico de panos para seu uso, os quais tinge com tinta extraída do anil que cultiva em volta das suas cubatas.
Borracha e coconote – as árvores-da-borracha e a palmeira nascem espontaneamente, como o algodoeiro. Ninguém as cultiva. Encontram-se por toda a parte entre as matas.
Depois da mancarra, é o coconote que se exporta mais e, em alguns anos, tem-se exportado em maior quantidade do que a própria mancarra.
A cultura da palmeira deve merecer a melhor das atenções, pois os seus frutos, bem aproveitados, podem vir a ser, se não o principal, pelo menos uma das mais importantes fontes da riqueza desta província.
O coconote exportado resulta quase exclusivamente do aproveitamento do caroço que cai das palmeiras; não se aproveita a parte interior dos frutos, de que se podia extrair, em grande quantidade, o azeite de palma, se cuidassem das palmeiras devidamente.
As palmeiras, que se encontram disseminadas nesta província sem os carinhos e cuidados que elas encontram em muita parte do vasto continente africano, vão-se definhando aos poucos, fazendo antever a sua completa ruína.
Não é preciso ser-se agrónomo para se saber que as causas do seu definhamento residem essencialmente na falta da limpeza no palmeiral e na palmeira e, também, no abuso da extração do vinho de palma. De facto, as árvores, sejam de que natureza forem, estando aglomeradas num dado terreno, não podem tirar do solo em quantidades precisas as matérias nutritivas e, assim, torna-se-lhes impossível fazer com a atmosfera as trocas suficientes de gases vitais.
Da mesma forma, a extração do vinho de palma rouba à palmeira a seiva que naturalmente se destina à nutrição das flores e dos frutos, dando em resultado a produção enfezada e raquítica destes. A extração desse vinho, além de ser prejudicial às palmeiras, torna-se um perigo para os indígenas que com o abuso desta bebida se vão envenenando. Com o fim de evitar que o indígena continue a fazer um consumo exagerado do vinho de palma, e como proteção às palmeiras, foi publicada legislação atinente, elevando para vinte escudos a taxa da respetiva licença.
Este diploma foi revogado por outro em 1925, que extinguiu o referido imposto “como início e preparação de uma medida radical para a proibição da extração do chamado vinho de palma.
A borracha tem nesta província longo campo para a sua cultura intensiva e extensiva. Só é necessário incentivo para o seu fomento. A exportação da borracha atingiu no último ano 234 toneladas. Apesar disto, não se exporta tudo o que a natureza dá destes produtos porque o indígena só os colhe à medida das suas necessidades inadiáveis.
Cola – a cola que se importa em grandes quantidades da Serra Leoa podia ser aqui produzida abundantemente; Geba, Farim e Cacine já produzem, mas em quantidades insuficientes.
O Tenente Alberto Soares, proprietário da Ilha das Cobras, tem já ali uma boa plantação de árvores de cola e noutros pontos da província muitas se estão plantando.
O indígena da Guiné, sobretudo os Fulas e os Mandingas, têm na cola um dos seus principais alimentos; fomentar portanto a plantação desta árvore é fomentar a riqueza da província.
A árvore da cola começa em regra a produzir dos cinco para os seis anos, computando-se-lhe o seu rendimento, aos dez anos, em mil escudos.
Madeiras – tem esta província florestas onde se encontra o mogno, o ébano e muitas outras madeiras que, convenientemente estudadas e classificadas, podem constituir uma riqueza que não ficará muito aquém de tantas outras que a província possui sob o ponto de vista agrícola, não devendo contudo iludir ninguém a riqueza florestal desta província, pois uma grande parte destas florestas é constituída por pequenos arbustos e árvores de pouco valor.
Pecuária – se da flora económica passarmos à fauna, encontramos também um grande manancial e riquezas ainda por explorar, muito especialmente no que respeita aos gados. A população pecuária da Guiné é muito grande e maior seria se as epizootias não dizimassem anualmente centenas de cabeças. Atualmente há já na Guiné um médico veterinário.
Indústria – a par da sua riqueza em flora e fauna, esta província é talvez a única que, das nossas colónias africanas, apresenta tribos com certas engenhosidades não muito vulgares nos pretos. Dado o atraso de civilização em que se encontram, são de apreciar as obras que eles produzem, e com as quais mostram que são dotados de certas aptidões suscetíveis de aperfeiçoamento. Os Mandingas e os Fulas executam várias obras de ourivesaria como argolas e vários enfeites. Bordam também panos; fabricam vários instrumentos para a lavoura e mobiliário muito parecido com a mobília de verga; trabalham em couro com bastante perfeição, fabricam sandálias, bainhas para espadas e punhais e arreios de formato árabe. Os Balantas fabricam os instrumentos da sua lavoura e mais utensílios de ferro. Os Beafadas fabricam tecidos de algodão, servindo-se de teares muito primitivos.
Quanto à indústria temos a elétrica com uma geradora, a indústria destilatória e a nossa Fábrica de Cerâmica em Bandim".
Estas duas imagens foram extraídas da Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, edição do Secretariado da Propaganda Nacional, Junho de 1944, reproduz uma escultura da arte Bijagó e uma Futa Fula Boé com penteado de gala
Estamos já no período da Ditadura Nacional. Agravam-se as condições de vida na Guiné. O encarregado de governo, António Saldanha, dirige-se em 4 de Janeiro ao gerente do BNU em Bolama nos seguintes termos:
“Encontrando-se atualmente esta província numa situação deveras angustiosa, proveniente da falta de numerário em cofre; e desejando satisfazer o pagamento de rações a presos, doentes, soldados e assalariados, e bem assim os vencimentos aos funcionários de categoria inferior a 1.º Oficial; rogo a V. Exa. se digno autorizar um adiantamento de 300 mil escudos, reembolsável com as primeiras receitas a entrarem, possivelmente, no corrente mês a fim de debelar a situação aflitiva em que se encontram os pequenos servidores do Estado entre os quais já lavra a fome. Saúde e fraternidade”.
(Continua)
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Nota do editor:
Vd. poste anterior de 24 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18009: Notas de leitura (1017): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (10) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 27 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18018: Notas de leitura (1018): "40 anos de impunidade na Guiné-Bissau", relatório da responsabilidade da Liga Guineense dos Direitos Humanos, publicado em 2013 (2) (Mário Beja Santos)
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2 comentários:
Muito interessante.
Curiosamente, não se fala de plantios de cajueiros que actualmente são o grande produto de exportação da Guiné-Bissau.
Cumprimentos
Valdemar Queiroz
Olá Camaradas
Comentários para quê?
É uma colónia portuguesa e está em desenvolvimento há cerca de 450 anos!
Um Ab. e bom feriado e ponte.
António J. P. Costa
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