domingo, 8 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17835: Manuscrito(s) (Luís Graça) (125): Em homenagem ao Gomes Freira de Andrade, mártir da Pátria




Ó pra cima, ó pra baixo, na colina de Santana


Em honra de Gomes Freire de Andrade
e dos demais mártires da Pátria de todos os tempos (*)




por Luís Graça


Pela colina de Santana acima,
lá vamos nós, ó malta,
atrás da banda, em bando,
sonâmbulos, funâmbulos, a quatro patas,
dando vivas à liberdade!

Sete colinas tem a cidade onde cabem todos,
ou quase todos,
os poucos, afinal, que não naufragaram
nas praias dos sete mares.

Vamos amnésicos, e já protésicos,
velhos gaiteiros, pândegos,
infantes e artilheiros,
com muito mundo e poucas vidas,
mal sabendo que, no alto da colina,
boas são as vistas das novas avenidas,
e melhores os ares.

Este país é como a lesma,
agora, ó pra cima,
é o povo, canhestro, quem mais manda,
mas se é outra a banda e novo o maestro,
a música é sempre a mesma, fandanga.

Quer mude ou não o clima, todos querem ficar por cima!
Valha-nos, ao menos, Deus
que ao rei e ao borracho vai pondo a mão por baixo.

E quem não salta, ó malta,
vai no elevador do Lavra, 
é a ralé das vilas e pátios,
a caminho das manufaturas reais,
e alguns, de baraço ao pescoço,
degredados para Angola, Timor ou Guiné.

Se fores senhor com privilégio, valido ou por valer,
ou até doutor em leis e cânones,
não tens nada que saber, segue fora dos carris,
apanha o cortejo régio, 

colina de Santana abaixo até ao Terreiro do Paço.

Bem formosas e melhor seguras
nas suas reais patas vão as açafatas 

da Rainha Catarina, que foi de Inglaterra,
senhora de etiqueta e de berço,
que sabe pôr os pontos nos ii.
No palácio da Bemposta,  meninas,
as leis podem, ser duras mas são leis,
depois do chá e do chichi, o terço
que todas vós rezareis.

Ladinas e engraçadas, essas açafatas,
à noite escapam-se, encapuçadas,
para a sétima colina.
É a movida, qual má vida ?!
Já que não temos os doces prazeres terrenos de Versalhes,
joguemos, ao menos, o jogo do gato e do rato, 
com o pescoço no fio de aço da guilhotina.

Cortesão não é criado, mas criatura,
nunca mostra má catadura,
vai respeitoso, na procissão do Senhor dos Passos,
cabisbaixo, devidamente ataviado, ordeiro,
e nunca é o primeiro a ladrar como um vulgar cãocidadão.
E muito menos dá a palavra à canalha 

que desce o Lavra, alvoraçada, 
a caminho do Rossio onde o poder pode estar por um fio.

Continuará a ir de liteira o nobre
e de chinela no pé o baixo clero,
e, aos dois enchendo a barriga, o pobre, 

o coitado, o proletário,
regista, veemente e fero, o poeta panfletário.

Com tanto palácio, convento e hospital em redor,
não sei o que nos move, senhor físico-mor
do reino de Portugal, dos Algarves
e de além-mar em África…

Não me atrevo a perguntar ao cardeal,
que é o santo inquisidor-mor,
porque aos grandes deste mundo não calam fundo
as perguntas que não têm fácil resposta.

Num país de alarves,

e de brandos costumes, dizem os estranjeiros de fora, 
não quero dizer asneira,
mas, citando o grande pregador António Vieira,
direi que, primeiro, a caridade, depois a esperança,
que é sempre a última a morrer,
e por fim a fé, ou a fezada,
que é irmã da sorte que protege os audazes.

Mas mais do que as três virtudes teologais
é a força da forca e o terror de morte
que nos fazem correr,
a todos nós, simples mortais…
E, no último minuto, a piedade
que a corda do carrasco de el-rei faz suster.

Somos um povo piedoso, meu irmão,
mas finge que olhas, discreto,
para a ostentação dos ricos,
sem a sombra do pecado da inveja dos pobres.

Em Lisboa, que tem arte barroca e forca em cada esquina,
não sigas pelo cume da airosa colina,
foge da Carlota Joaquina,
enfia-te pela viela escura, mal cheirosa e  porca
sem que ninguém te veja.

Esta é a nossa terra, Pátria amada, camarada,
diz a letra do fado do Velho do Restelo,
quem vai à guerra perde o couro e o cabelo.

E logo mais à frente a tabuleta
com a verdade que dói  

e ao mesmo tempo reconforta:
Gomes Freire, de traidor a herói,
hoje enforcado, amanhã condecorado,
que é doce e honroso morrer pela Pátria!

O rei, ou o regente, esse já ninguém o leva a sério,
não será imperador do Brasil,
acabou de perder a coroa e o império,
no casino do Estoril.
De roleta em roleta, o país vai para o maneta,
cobre-se de ervas e de silêncio de cemitério
o campo dos mártires da Pátria.


A gente aqui no bem bom do sobe e desce
e a economia que não cresce, 

ameaça o FMI no Telejornal.
Mas vamos indo, menos mal, 

vendendo aos turistas Portugal,
só não temos é tempo para nada,
e, quando o tivermos, é para morrer.

E o cruzeiro, amor, que queríamos fazer
aos fiordes da Noruega ?
Deixa lá, querido, há-de vir a retoma e o aumento da reforma,
antes de eu ficar velha, surda, muda e cega…

Pela colina de Santana abaixo
lá vamos nós, sonâmbulos, funâmbulos,
a toque de caixa, pró Aljube,

onde nos tratam da saúde…
Deixem lá, camaradas de armas, veteranos,
que daqui a cinquenta anos
já não estaremos cá,
mas haverá de novo festa na urbe,
e os cravos, as rosas e os jasmins
voltarão a florir nos jardins.

Lisboa, Festival Todos 2016,
Colina de Santana, 10/9/2016.
Versão revista hoje.

______________

9 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...


A sede da Academia Militar fica da R Gomes Freire 203, ou seja, na colina de Santana, passamos muitas vezes por ali, e poucos de nós sabem quem foi o Gomes Freire [de Andrade]... Sejamos, no mínimo, curiosos... O saber não ocupa lugar, e sobretudo faz bem aos neurónios... LG

_________________

Gomes Freire de Andrade

General português nascido em 1757, em Viena, e falecido em 1817. Seguiu a vida militar depois de ter vindo para Portugal aos 24 anos. Combateu em Argel (1784), na Rússia (1788), na Guerra do Russilhão (1790), na Guerra das Laranjas (1801) e na Guerra Peninsular, só deixando a carreira das armas após a derrota de Napoleão em 1814. Ligado aos ideais progressistas e membro da Maçonaria, foi acusado de participar na conspiração de 1817, o que lhe valeu a prisão e a forca nesse mesmo ano. Surge como personagem na peça de Luís de Sttau Monteiro Felizmente há Luar (1961).

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Esqueci-me de citar a fionte:

Gomes Freire de Andrade in Artigos de apoio Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2017. [consult. 2017-10-08 18:14:00]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$gomes-freire-de-andrade

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Atenção: a sede da AM é em Lisboa.
A Evocação é na AMADORA, para quem quiser participar.

Um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

Deve ser uma história tão interessante e tão complicada, (para leigo) que se no fim António J.P.Costa deixasse sair uma "pitadinha" para o pessoal...era uma boa guloseima.
Tenho pena de não ter condições nem oportunidade de poder assistir.
Cumprimentos

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Sim, que fique claro, a sede da Academia Militar é em Lisboa, na Gomes Freire... Onde o nosso camarada Tó Zé (Pereira da Costa), para os amigos, é no polo da Aamadora... Vamos ver se há "agenda" para l[a ir, por ele, pelo Gomes Freire e pela histoira da nossa querida Patria amada... (De repente, faltaram me os acentos)...

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas
OK. A pedido de várias famílias direi qualquer coisa.
O texto correspondente ao meu "brilhante improviso" será entregue na AM nos princípios de Jan18.
Um Ab.
António J. P. Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tó Zé, vejo que é um "camarada nosso", de há 200 e tal atrás, cuja "história de vida" te apaixona enquanto objeto de estudo... Algumas ideias eda tua "linha de investigação" sobre o nosso Gomes Freire podem ser pré-apresentadas no nosso blogue... E porque não na tua série, "ZA minha guerra a petróleo" ?!... Mesmo que o petróleo ainda estivesse por "descobrir" em 1817... (em contrapartida, o país estava em véspera de grandes mudanças, políticas, económicas, sociais...).

Ab, Luís

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Eu começo por ser um brandoniano ferrenho e irredutível.
Tenho todos os livros de Raul Brandão e já escrevi e expus umas bocas a respeito dele.
Gomes Freire aparece depois, quando li o livro

BRANDÃO, Raul, Vida e Morte de Gomes Freire, 4.ª edição, Editorial Comunicação, Rua da Misericórdia, 67-2º, 1200 – Lisboa, Janeiro de 1988, Colecção Obras Completas de Raul
Brandão, Depósito Legal n.º 20027/88.

Raul Brandão teve um ataque de patriotismo (1913) que só se tem quando a vida política muda drasticamente e pinta um livro com cores escuras e dramáticas. O texto "descritivo" é notável e o número de documentos consultados, alguns dos quais transcritos na totalidade.
Um tratado de História!
A partir daí comecei a ler sobre Gomes Freire e hei-de continuar.
No próximo dia 19OUT, quinta-feira, ás 18H00 na A25A, Rua da Misericórdia 95, será lançado o livros "Gomes Freire, Um Herói da Pátria de A. J. Rodrigues Gonçalves (Ed. Âncora).

Um Ab.
António J. P. Costa

Hélder Valério disse...

Pois também o livro de Sttau Monteiro o "Felizmente há Luar" fez parte do que li em tempos de juventude e me impressionou bastante.
Nessa altura intuí que os "amigos ingleses" podiam continuar a sua obra de liquidação de patriotas portugueses porque havia luar suficiente para o fazer e percebi que uma coisa é pedir ajuda aos "amigos" para qualquer coisa, outra é a dificuldade em fazê-los sair...

Tenho curiosidade em saber como morreu, quero dizer, como foi assassinado, o Gomes Freire de Andrade, o que sucedeu ao seu corpo, etc. e tal.

Entretanto este caso é mais um daqueles que servem para se perceber o sentido de "ser traidor"... Tudo depende do 'momento histórico'.... O Gomes Freire de Andrade foi julgado como traidor, na medida em que se sublevou contra o poder instituído e, do ponto de vista dos mentores desse poder, quem os estava a afrontar era "traidor". Mas as leis, os conceitos, são feitas para um determinado 'momento histórico', para servir uma determinada situação, na prática para a perpetuar e como essa situação então vigente era lesiva dos interesses portugueses, a acção de Freire de Andrade, ao pretender que os "amigos ingleses" voltassem às suas terrinhas, era para mim algo patriótico.
Portanto, para o poder instituído, à época, o Gomes Freire de Andrade era 'traidor' e como tal seria punido.
Para mim, é mais um herói, um patriota, da nossa galeria de Homens.

Hélder Sousa