terça-feira, 10 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17846: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXVI Parte: Cap XVI - O Adeus às Armas


Foi há 52 que a guerra acabou para os "Lassas"...com o regresso a casa, no T/T Niassa, em 26/11/1965.

Texto e fotos: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Do mesmo autor já aqui publicámos, em 2008, em dez postes, o seu fascinante livro "Pami N Dondo, a guerrilheira", ed. de autor, Estoril, 2005, 112 pp.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto em baixo, à direita, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, março de 2016]


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XXVI Parte > Cap XV (pp. 94-97)

por Mário Vicente


Sinopse:

(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),

(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na
Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:

(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;

(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;

(xvi) a lavadeira Miriam, fula, uma das mulheres do srgt de milícias, quer fazer "conversa giro" com o "Vagabundo" e ter um filho dele;

(xvii) depois de umas férias (... em Bissau), Mamadu regressa a Cufar e á atividade operacional: tem em Catió, um inesperado encontro com o carismático capelão Monteiro Gama...

(xviii) Op Tesoura: dezembro de 1965, tomada de assalto a tabanca de Cadique, cujas moranças são depois destruídas com granadas incendiárias.

(xix) Cecília Supico Pinto e outras senhoras do MNF visitam Cufar no início do ano de 1966 e Mamadu é internado no HM 241 (Bissau).

(xx) um mês depois, regresso a Cufar, regresso à guerra. Põe o correio em dia. Lê e relê a carta de Maria de Deus [MiMê], uma paixão escaldante dos tempos de "ranger" em Lamego e por quem estava quase para desertar, antes da data de embarque para a Guiné; a jovem morrerá prematuarmente, em França, aos 24 anos.

(xxi) revolta e dor pela morte do seu camarada e amigo, o fur mil Humberto Gonçalves Vaz (Op Teste, na região de Cabolol];

(xxii) o cap Costa Campos deixa a companhia; a comissão está a chegar ao fim: a Op Suspiro é a última operação realizada, a 5/11/1966.

(xxiii) regresso a casa, no T/T Niassa. a 26 de novembro de 1965.



Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXVI Parte: Cap XV: Adeus à guerra  [3] [pp. 95-97]

XV Adeus à Guerra




A 10 de Novembro de 1966, completamente rota, a CCAÇ 763, começa a ser rendida para regressar a casa. Os primeiros dois grupos de combate partem para Catió, no dia em que é inaugu­rada oficialmente pelo Rev Capelão do Batalhão, a Capela construída exclusivamente por elementos da CCAÇ 763. Assiste à ceri­mónia a maioria da Companhia. O restante pessoal seguirá dois dias depois.

Não sabemos quando embarcaremos, mas já estamos desarmados. Resta saber se ainda vamos para Bissau, ou como será.

Finalmente sabemos que as lanchas nos vêm buscar no dia 18 e que faremos a viagem directa para o barco. Só mais tarde viemos a saber que seria o Niassa. Sim, senhor, bem nos foderam, nem uma lembrança nos deixam levar. Tiraram-­nos tudo e para não recordarmos, nem um boneco de madeira, ou outra bugiganga qualquer de missanga podemos adquirir. Temos de nos cingir ao mercado de Catió, cujos preços sobem em flecha imediatamente. Compram-se alguns tapetes pelo dobro e triplo do preço, e ficam os militares parvos sem saberem o que levar para pais, esposas, familiares e amigos. Vão eles. Que melhor recordação se pode levar?

Foi a prenda que António e Francisca receberam: o regresso de seu filho.

O voltar para casa é um drama que nos traz sempre problemas. Os soldados, uns festejando o regresso à sua terra, outros para gastarem o dinheiro que não lhes servirá para nada, encharcam-se em cerveja e whisky. É cada bebedeira! Começamos a tentar controlar, não vá haver problemas. Os soldados não largam a casa da libanesa, e vai haver bronca de certeza. Felizmente as coisas não correram muito mal. Uma dezena de blenorragias, e os Lassas embarcam em Catió, directamente para o Niassa.


Nas lanchas que transportam o pessoal, há um misto de alegria e tristeza, reflexo do estado de espírito que antecede os grandes momentos. Os soldados olham-se incrédulos, num so­nho de abandono, ou de retomo à guerra. Vagabundo, vai olhando para as margens da floresta e do tarrafo, entrando rio dentro em maré-cheia. A Natureza pode agora ser admirada na sua pleni­tude, e volta a verificar como é linda esta terra. África! Mistério, que prende e faz o homem branco, sentir-se a ela ligado por um feiticismo indefinível, e que lhe faz sentir uma atracção especial pela Guiné! O sol esconde-se, e podemos continuar a apre­ciar ao luar, como se dia fosse, todas as suas estranhas e selva­gens belezas. Embalado pelo ronronar do barco, o furriel Vaga­bundo puxou por um cigarro, deixou-se escorregar suavemente, e o seu cérebro começou deambulando no sonho ou realidade!?

Vagueando, a sua mente navegou a seu belo sabor.

A amizade é, sem dúvida, uma perene transportadora da paz. Pode-se entender como um êmbolo corrector das tensões. Entre homem e mulher, ela pode até mesmo ensinar o homem a dominar a sua brutalidade e o seu orgulho machista e levar à doação total da mulher sem sacrifício e sem baixeza. Amizade, escolha entre pessoas. Restitui-lhes o seu lugar afectivo, consubstanciando a unidade de dois seres insubstituí­veis entre si, subtraindo-se às ligações efémeras de dois egoís­mos. Se a carne aproxima a mulher e o homem, só a amizade pode abri-los um ao outro. Nesta terra em Guerra se semeou a amizade. Minha boa Miriam!...Obrigado, não és mulher grande, mas foste uma grande mulher.

Vagabundo está encarcerado nas pa­redes da sua prisão, com falsas janelas e portas, símbolos de ilusões e indefinidas perspectivas. Está encarcerado nos seus limites, sendo um homem completamente livre. A sua alma está tão ligada à de Tânia que não necessita dela só para se abrir, mas mais para existir. Mas vê-se caminhar só, numa turbulência de sobe e desce. O vazio escurece-lhe a alma e desce mais do que sobe.

No amolecimento do deslizar da lancha, encostado ao saco de lona verde, sente-se livre da guerra, mas olha para as suas mãos, e estas apresentam-se sujas de sangue e vazias completamente. Estes últimos anos tudo tentou, mas nada en­controu. Apenas dor e guerra. Quem o ajudará a encontrar a tão necessária estabilidade de que tanto carece? Puxa novamente outro cigarro instintivamente, sem o pensamento se lhe ir. Se ao menos uma companheira, amante e amiga, lhe estendesse a mão e apenas pronunciasse:

- Vem!... O tempo é agora todo nosso, repousa no meu ombro, e varre da mente toda a lama da guer­ra!...

Maria de Deus? Tânia? Não, a realidade é outra! Há questões sem solução.

Pois não, não será assim! Apenas sua paciente mãe Francis­ca, o ajudará e sofrerá a sua recuperação de homem, esquecendo a máquina de guerra em que se transformou.

Se a morte existisse, neste momento, a união seria perfei­ta. Há duas coisas que merecem ser desejadas: o impossível e a realidade, mas sente-se, por puro desconhecimento, desejo do impossível.

A fama da guerra na Guiné alastrou cedo entre os militares, e não só. Ao próprio povo incógnito, também chegou essa informação, como ao tio Chico da Camioneta. Só quem não queira, se faz ignorante de que, a simples mobilização para a Guiné, é condenação pura a próximo de vinte e dois, ou vinte e três meses de apodrecimento, enraizados na lama das bola­nhas, dos pântanos, e dos rios de maré, piores que quatro anos de meio barril às costas, subindo a ladeira da fonte do Marechal ao Forte da Graça, em Elvas!... Resta, após a partida, o desejo que a chegada não seja entre tábuas, de muletas ou carrinho de rodas.

Só quando se chega à Guiné, se conhecem os nomes as­sombrados das matas do Cantanhez no sul e do Oio-Morés no norte. Recordando, o furriel faz a comparação, mais uma vez, das matas com a solidão.

Solidão! Degradação de existência não compartilhada!... Dementação de espírito, que  se destrama no escorregadio carrei­ro da mata, inspirando o seu nauseabundo odor a morte. Neste estádio, apenas as figuras sombras dos companheiros da frente, e a pressentida presença dos que nos precedem, momentos cruéis de stress, sentindo olhares de seres invisíveis, trespassando-nos em minuciosa tomografia computorizada, esperando a altura ideal para clicarem o botão gatilho que nos queimará a car­ne.

São estes os momentos em que a mente, em louco des­prendimento, se desapega do corpo e vagueia, em sonhos de rea­lidade distante. Mortificando, são estes os momentos que nos trazem os mais excêntricos pensamentos da vivência existida, e daquela que é o túnel escuro, do amanhã que se espera ...

Cansado o guerreiro, esgotado o cérebro, o homem duro adormeceu.

Vinte e quatro anos! Quanto pesarão estes últimos dois na sua vida?!...

Chegada a Bissau, ao princípio da tarde do dia seguinte.

Há que embarcar e distribuir o pessoal pelas camaratas, colchões colocados nos porões. Os oficiais e sargentos irão para os cama­rotes. O Niassa largará na maré cheia que acontecerá pelas duas da madrugada. Os oficiais e sargentos, que não estejam de servi­ço, são autorizados a saírem até à meia noite, impreterivelmente.

Chico Zé, Vagabundo, Jata e António Pedro saem juntos e abancam no Tropical. Camarão de Quinhamel, ostras e cerveja, até encharcarem. Fartos como brutos, bêbedos que nem cachos, cada um sonha com a chegada a Lisboa. Próximo da meia-noite, António Pedro, já amparado por Chico Zé e Jata, sobe as escadas do Niassa, mas o peso de António Pedro é cada vez maior. Vagabundo, a meio das escadas manda sentar o pessoal e diz para Chico Zé:
- Porra! Não cantamos um fado à despedida desta linda terra?

Silêncio! Os camaradas não respondem.

-É cambada, ninguém diz nada, cabrões? Se não falam, então ouçam a minha Florbela!

E parecendo que o álcool lhe tomava a voz suave e pro­funda, começou:

“Almas de Vagabundos
Onde há charcos e lagos,
Pântanos e lamas ...
Onde se erguem chamas,
Onde se agitam mundos,
E coisas a morrer. ..
E sonhos... e afagos...


Almas sem Pátria,
Almas sem rei,
Sem fé nem lei!
Almas de anjos caídos, 

Almas que se escondem para gemer
Como leões feridos!”


- Merda, já acabou tudo! Amen!...

Jata pede a Calças de Palanco que dê uma ajuda. Este estende o braço mas escorrega e cai para dentro do portaló. Dois vultos indefinidos rolam no escuro pelas escadas do Niassa. Um mer­gulha nas águas do rio Geba, o outro dilui-se.

Silêncio absoluto.  Nenhum marinheiro gritou: Homem à água!

Na sua voz pastosa alcoolizada, António Pedro perguntou:
-O que ... foi?

Calças de Palanco, agora já em pé, respondeu:
-Foi o Mamadu que não quis abandonar a sua terra e preferiu ficar nas águas e lama do Geba!
-Que fique em paz na lama a sua sombra!

Saiu em uníssono da boca dos quatro militares.
-E o Vagabundo?
-Voltou para Cabolol, para recomeçar a Guerra.


 (FIM)

[O próximo poste será o último desta série: índice, glossário, contracapa e listagem de todos os postes publicados]
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2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"Merda! Já acabou tudo?!"... Quantos de nós não fizemos esta pergunta, para nós mesmos, em silêncio, ou em voz alta, para o resto da maralha, numa rodada de copos no bar, em Bissau, na véspera do embarque e do regresso a casa, ou já no Niassa, no nosso último cruzeiro...

Muitos de nós andaram anos com esta pergunta atravessada na garganta: "Merda!... Já acabou tudo?!"... E, se calhar, alguns ainda a andam... LG

Hélder Valério disse...

Meu caro Mário "Mamadú" Vicente, respigo estas duas frases da parte final da tua narrativa:

"Cansado o guerreiro, esgotado o cérebro, o homem duro adormeceu.
Vinte e quatro anos! Quanto pesarão estes últimos dois na sua vida?!..."

Certamente pesaram bastante mas, daquilo que te conheço, também te moldaram o carácter de forma indelével.

Um abraço
Hélder Sousa