quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22919: Historiografia da presença portuguesa em África (299): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Senna Barcelos é muito estudado pelos investigadores de Cabo Verde, tem infelizmente uma procura residual por quem estuda a Guiné. O que é injusto, ele procedeu a um levantamento muito sério do estado da Senegâmbia Portuguesa, teve mesmo intentos de procurar fazer um levantamento dos factos históricos a partir do século XV, como é evidente todo este período acabou por ser credor de mais rigorosas investigações, mas mantém a maior pertinência tirar do limbo todo este quadro convulsivo da mais completa derrisão em que se perpetuava a presença portuguesa, impressiona a péssima qualidade de gente que se mandava para a Senegâmbia, desde governadores ladrões a falanges completas de presos do Limoeiro. O que aqui se anota são alguns casos, e se o leitor se der à tarefa de ler estes Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné não tenho dúvidas que sentirá o maior desconforto com tanta sublevação, subornos, compadrios e ganância desmedida.

Um abraço do
Mário


Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (4)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que agora nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense. Tendo em conta os quatro principais depoimentos sobre a presença portuguesa da Guiné ou o estado da Senegâmbia Portuguesa na primeira metade do século XIX (são eles Conrado de Chelmicki, Travassos Valdez, Honório Pereira Barreto e Senna Barcelos) é indubitável que foi este oficial da Armada quem mais investigou nos arquivos, lançando as bases ténues da historiografia guineense. Possui um olhar implacável, não gosta de dourar a pílula, denuncia corrupções e mostra à saciedade a péssima qualidade da maior parte dos governantes, isto para já não esquecer as condições precárias reveladas a todo o momento da presença portuguesa naquele espaço.

Estamos ainda no período correspondente à parte III, estende-se de 1793 a 1816, edição de 1905. Veja-se a vivacidade de certos pormenores:
“Em 5 de Abril de 1795 saiu de Lisboa o novo governador Maldonado de Eça, na galera Leonisa, e como esta levasse rumo errado foi parar a Bissau com 30 dias de viagem! Encontrou a Praça em guerra com os gentios Papéis, vizinhos da mesma, e deu conhecimento deste facto ao ministro em carta de 9 de maio, dizendo-lhe que apenas chegasse ao seu governo, mandaria soldados por não os haver ali senão velhíssimos!”. E, mais adiante: “Para a Praça de Bissau seguiu em 1799 o novo comandante José das Neves Leão, que comunicou a sua chegada ali e não ter encontrado ali quem lhe entregasse o comando, porque o seu antecessor, José António Pinto, já em Lisboa, havia abandonado o lugar, fugindo para o gentio de Fá por os soldados, na Praça, se terem levantado contra ele pelas delapidações e opressões que exercera em todo o tempo do seu comando”. Como o leitor não ignora, Cabo Verde sofreu as consequências do bloqueio continental e a luta assanhada nos mares entre britânicos e franceses. O autor aliás adverte-nos: “A França e a Espanha declararam guerra a Portugal, baseando-se na repugnância com que o príncipe-regente aderia à causa continental e de não ter confiscado as propriedades inglesas no seu reino”.

Senna Barcelos, quando necessário, corrige Chelmicki ou Travassos Valdez. A propósito de direitos de exportação da cera da Guiné e da cultura do algodão, observa: “Diz Chelmicki na sua Corografia que foi por esta época que se introduziu em Cabo Verde a cultura do algodão. Merece-nos muito respeito o ilustre escritor, hoje falecido; a sua afirmação, porém, fora inexata. A cultura do algodão começou a fazer-se na ilha de Santiago logo que a esta chegaram os primeiros colonos italianos com pretos da Guiné. No século XV já se exportava bastante e no XVI os navios iam recebê-lo também à Ilha do Fogo, onde já se tratava da sua cultura em larga escala. Era com algodão cultivado ali durante aqueles séculos e posteriores que se fabricaram milhares de panos, com os quais se adquiriam por compra negros da Guiné”.

Senna Barcelos recorda-nos as tentativas dos comerciantes de Cacheu e Bissau escaparem ao pagamento de direitos alfandegários diretamente a Cabo Verde. Em 1795, os comerciantes de Lisboa que negociavam com Cacheu e Bissau reclamaram contra o capitão-mor de Bissau por este ter elevado os direitos, alegando que não era das suas atribuições. O ministro, o Marquês de Ponte de Lima, dirigiu ao Governador Maldonado de Eça uma carta na qual pedia que lhe suprimissem a jurisdição que tinha sobre os comandantes de Bissau e Cacheu, e mais praças e portos da Guiné, retirando qualquer liberdade para a imposição de taxas alfandegárias por iniciativas do capitão-mor de Bissau.

Há um relato bastante impressivo sobre a natureza de estado de sublevação permanente em que se vivia em Bissau e outras praças e presídios. Tome-se em atenção este esclarecedor relato:
“Em Bissau instigava uma revolta nos soldados o capitão-mor de Farim e comissário volante da Praça de Bissau, Tomás da Costa Ribeiro, aconselhando-os a que principiassem por negar o pagamento, com a promessa de lhes oferecer muita aguardente, e que matassem o governador capitão-mor da Praça, o tesoureiro José Valério e as demais autoridades. Mas como os soldados não anuíssem, foi então tratar com os gentios, fazendo-lhes ver que o governador da Praça tinha ido para ali a fim de os agarrar e mandá-los para o Maranhão, e também queria tirar a desforra de um seu irmão que tinha sido vítima do gentio.
Os moradores da Praça, que conheciam o caráter de Costa Ribeiro, que na Guiné cometera muitos vexames e roubos, dirigiram ao Ministro Visconde de Anadia uma queixa, expondo-lhe que logo à chegada à Praça do Governador Pinto de Gouveia quisera Costa Ribeiro corrompê-lo, oferecendo-lhe uma porção de escravos, como praticara com os outros havia mais de 10 anos, e como ele não quisesse aceitar e não consentisse que Costa Ribeiro cometesse mais abusos, começou este a presentear os gentios e reunindo-os em sua casa a altas horas da noite aconselhou-os a matar o governador, negociantes e autoridades. Os gentios revelaram estes factos aos negociantes, dizendo-lhes que o rei de Bissau viria à Praça na noite de 21 de setembro contar o caso, como efetivamente veio às duas horas, aparecendo com a sua corte, pedindo para avisarem o inocente governador que Costa Ribeiro tinha com ele tratado para na manhã de 22 darem o assalto à Praça, para tomarem os quartéis, assassina-lo e o mesmo fazerem à família e aos que resistissem.
Pediu o rei que assassinassem Costa Ribeiro ou que o pusessem fora da Praça porque era um traidor. Costa Ribeiro, vendo-se descoberto, dirigiu-se aos ídolos (Irã), com grandes somas, e falando ao demónio ofereceu-lhe a sua alma contando que o ajudasse a matar o governador. O Irã não lhe fez a vontade. O ministro ordenou que ele saísse de Bissau para Farim; não quis obedecer com o pretexto de que tinha licença para regressar a Lisboa. Como hóspede de Costa Ribeiro havia certo bacharel chamado José Tomás de Sá, que armou toda a chicana, aconselhando o seu amigo a não aceitar a intimação, ameaçando ao mesmo tempo Pinto Gouveia de recorrer aos bons ofícios do seu primo, o governador de Cabo Verde, que também recebera favores de Costa Ribeiro e que o havia de livrar nesta ocasião”
.

Lendo Senna Barcelos não há dificuldade alguma em perceber o estado da mais completa derrisão em que se encontrava a Senegâmbia Portuguesa neste turbulento período em que a família real se encontrava no Rio de Janeiro, em que os navios franceses pilhavam Cabo Verde e a pirataria assolava toda a região. O pessoal recrutado para as praças e presídios era da pior qualidade, vivia-se entre crimes, roubos, intentonas, pilhagens. Nada como continuar com os exemplos:
“O Governador D. António nomeou João Cabral da Cunha Goodolphim, capitão de infantaria, para governador-interino de Cacheu e sindicar de factos acontecidos ali contra o governador daquela Praça, Joaquim José Rebelo de Figueiredo e Góis, que havia sido deposto, formando-se um triunvirato para a governar, composto do Vigário Manuel Gomes de Oliveira, preto, natural da Ilha de São Nicolau; do Sargento-Mor João Pereira Barreto, natural de Santiago, filho de um padre e de uma escrava, e do Tenente de Ordenanças e Tesoureiro António de Miranda de Carvalho, natural de Cacheu, filho de um preto de Santiago e de uma preta gentia, vizinha da Praça. Este governo provisório havia participado ao de Cabo Verde e que o referido governador de Cacheu estava doido e que o mandasse substituir. O Governador D. António limitou-se apenas a mandá-lo substituir, e comunicou este facto para o Rio de Janeiro. O ministro mandou que seguisse para Cacheu a corveta Aurora a buscar Figueiredo e Góis, o que não foi preciso por já estar na Praia. Seguiu no brigue Triunfo para o Rio de Janeiro, e ali foi promovido a sargento-mor em atenção aos seus bons serviços. O novo governador Cunha Goodolphim não sindicou, embora o ministro tivesse dado ordem para isso e para prender os autores e remetê-los para a Corte”.

É uma repetição permanente de despautérios, faltas de autoridade, que não se extinguem mesmo quando D. João VI regressa à Europa. Pois veja-se mais um episódio passado já na monarquia constitucional:
“Em 1 de Maio de 1825 houve uma sublevação militar na Praça de Bissau, promovida por alguns oficiais e pelo capelão da tropa, recusando-se os soldados a receber o rancho; a causa dessa sublevação fora o mau rancho e a falta de dinheiro para pagamento. Governava a Praça o Capitão Domingos Alves de Abreu Picaluga, que não empregou meios enérgicos para conter os soldados. No dia seguinte aumentou esse motim, e entre os revoltosos foram eleitos os seus generais de guerra, deram assalto aos depósitos, exigiram do governador a chave da Praça, que foi entregue; deitaram a mão a uma embarcação ancorada no porto, guarnecendo-a com soldados; na bateria carregaram as peças e fizeram fogo contra algumas casas. O capitão-mor de Geba vem em socorro do governador, fugiram os cabeças do motim e efetuou-se a prisão de 38 soldados, de 5 oficiais e do capelão que foram remetidos para a Praia. O governador foi suspenso”.

Era este o estado deplorável da Senegâmbia Portuguesa. E, entretanto, vem a guerra civil, que não trouxe melhoras à Guiné.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22899: Historiografia da presença portuguesa em África (298): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (3) (Mário Beja Santos)

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