terça-feira, 18 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P967: Antologia (51): Os combatentes cubanos ou a mística da guerrilha (Victor Dreke)


1. No dia 11 de Julho de 2006, mandei a seguinte mensagem para a nossa tertúlia:

Gostaria que comentassem este depoimento de um médico cubano que esteve na guerrilha, em 1966/67... Está em espanhol, lê-se bem... Há um resumo, em português, no post anterior. 

Esta informação chegou-me através do incansável camarada fuzo que é o Jorge Santos... O artigo original cacei-o eu, na Net... Vou pedir a um antigo aluno meu, médico, cubano, que vive em Portugal e que fez a guerra de Angola e da Eritreia, para me pôr em contacto o seu colega Domingo Diaz.

É outro ponto de vista, polémico mas muito interessante, sobre a guerra da Guiné... Sabemos pouco sobre o papel dos cubanos... Só se fala do Capitão Peralta... Sabemos pouco sobre as misérias e grandezas da guerrilha... Enfim, vejam lá se me ajudam a identificar o resto das bases do PAIGC...

Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingos Diaz, 1966/67)

Guiné 63/74 - P950: Antologia (46): Depoimento de médico cubano na guerrilha do PAIGC (1966/67)



2. Respondeu-me, logo a seguir, o Carlos Fortunato, meu velho camarada da CCAÇ 2591, mais tarde CCAÇ 13. Embarcámos juntos no velho Niassa, com destino à Guiné, em finais de Maio de 1969.

Luís:

Os cubanos desempenharam sem dúvida um papel importante na guerra da Guiné. Para além do apoio médico e do fornecimento de especialistas para os foguetões de 122 mm, houve sempre a suspeita de que estavam por trás do planeamento de muitas das operações realizadas na Guiné.

Queria chamar-te a atenção para outro artigo que considero bastante interessante, e que é da autoria do coronel aposentado Victor Dreke, que foi o chefe dos combatentes cubanos na Guiné-Bissau durante a guerra.

Seria excelente se conseguissemos estabelecer contacto com o comandante Victor Dreke, pois este poderia, se quisesse e pudesse, esclarecer muitas das lacunas existentes [sobre o conhecimento da] guerra da Guiné. Podes tentar um contacto, através desse teu antigo aluno?

Junto em anexo o texto do coronel Victor Dreke, mas aqui vai o a página da Net onde o consultei:

http://granmai.cubaweb.com/portugues/marzo03/mier12/10nues-p.html

Podes encontrar algumas fotos de cubanos na Guiné, num outro artigo, sobre os cubanos em África, que também tem várias referências ao seu papel na Guiné. A página da Net é:

http://www.tricontinental.cubaweb.cu/REVISTA/texto20ingl.html (*)

Um abraço

Carlos Fortunato

(*) Nota de L.G.: Texto em inglês > A History Worthy of Pride, by Dr. Piero Gleijeses, Professor of US Foreign Policy, Johns Hopkins University. Photos: Ediciones Verde Olivo.
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3. Então aqui vai, para efeitos de divulgação mais alargada, o texto de Victor Dreke, publicado no jornal diário Granma, o órgão oficial do Comité Central do Partido Comunista de Cuba, na sua versão internacional e digital, na edição de 12 de Março de 2003. 

Esta versão, em português do Brasil, contém alguns erros, que corrigi, nomeadamente nos nomes das localidades da Guiné-Bissau. A ortografia é brasileira (LG).

Fotos: A History Worthy of Pride (com a devida vénia)


Nossos antepassados levados à América como escravos estão contentes

por Victor Dreke (*)

Amílcar Cabral, um dos dirigentes africanos mais brilhantes, revelou que o Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC), valorizava intensamente o apoio dado pelo povo cubano. Assim informou-o num discurso histórico, em 30 de Agosto de 1966, de visita [a] Brazzaville com outros dirigentes das colônias portuguesas em luta.

Manifestou que não acreditava na imortalidade da alma. «Mas, se assim fosse» - acrescentou - «poderíamos dizer que as almas dos nossos antepassados levados [para a] América como escravos, estão contentes ao verem nesta hora seus filhos reunidos, contribuindo para a libertação e a independência verdadeiras».

Noutro momento desse discurso, Amílcar expressou: «Não são os rios nem as montanhas que fazem a história. A história é feita pelos homens e agradeço aos povos e aos homens que foram capazes de provar antes de nós essa realidade histórica, principalmente ao povo cubano e a Fidel Castro, que o fizeram através de seu exemplo».

Três meses antes, em 29 de abril de 1966, Cabral tinha-se reunido com os seis primeiros cubanos que chegaram à Guiné-Bissau, três deles médicos, Labarrere, Rómulo e Domingo (1), e [os outros] três artilheiros, Aldo, Verdecia e Salabarria, mais conhecido por Horácio, «o homenzarrão». Estes companheiros participaram do seu primeiro combate, [no] 1º de Maio desse ano. Posteriormente nos meses seguintes chegaram outros grupos.

Amílcar não queria que os cubanos se arriscassem e era oposto a que participaram [opunha-se a que participassem em combate] como soldados da infantaria. A morte do primeiro cubano, Félix Barriento Laporte, em 2 de Julho de 1967, no ataque ao quartel [de Beli, a nordeste de Madina do Boé, e não de Melle, como vem no original], foi para Amílcar uma grande preocupação e uma profunda dor, pois era do critério [de opinião] de que a guerra devia ser travada pelos guineenses e pelos cabo-verdianos. O apreço e admiração de Amílcar pelos cubanos foi expresso em cada momento.

A data de 2 de Março de 2003 virou data histórica e inesquecível para os povos de Cuba, da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, com a inauguração, no Parque dos Próceres Africanos, nas ruas 13 e 64, Miramar, [em Havana, Cuba,] do busto desse grande lutador pela liberdade de seus dois povos, da África e da humanidade: Amílcar Cabral.

Este homem nasceu em 12 de Setembro de 1924, em Bafatá. Em 1932, a família mudou-se para Cabo Verde, onde continuou seus estudos até 1945, ano em que lhe foi outorgada uma bolsa de estudos para Lisboa.

Na etapa de estudante destacou-se na luta contra a colônia, realizando várias atividades como membro do comitê antifascista.

Em 1950, retornou a Bissau formado como engenheiro agrônomo, mas em 1955, devido a suas ideias e atividades anticoloniais, foi expulso pelo governador, motivo pelo qual viajou a Angola e aderiu ao movimento de libertação desse país (MPLA).

Em 19 de Setembro de 1956, foi constituído em Bissau o PAI (Partido Africano da Independência), adotando posteriormente o nome de PAIGC.

Amílcar preparou as condições para iniciar a guerra necessária e em 23 de Janeiro de 1962 começou a luta armada com o ataque ao quartel de [Tite e não de Titi, como vem no original], no sul do país. O dirigente africano traçou a estratégia da luta política, militar e econômica do país em guerra.

Em 1964, editou os primeiros livros escolares para a alfabetização, inaugurou uma escola para os filhos dos combatentes e crianças da zona libertadas e organizou a agricultura nas zonas dominadas pela guerrilha.

Em Novembro de 1964, constitui a primeira unidade do exército popular, organizou as milícias, abriu o front [a frente] leste e organizou, com os recursos existentes, as unidades de saúde.


África Ocidental > Congo (Zaire) > Possivelmente Abril de 1965. Da esquerda para a direita, Victor Dreke (Moja), o médico Rafael Zerquera (Kumi) e Che Guevara. Fonte: El Comandante Che Guevara (com a devida vénia)


De 13 a 17 de Fevereiro de 1964, celebrou-se o primeiro congresso do PAIGC em armas, no sul do país em [ Cassacá e não Casacá, como se lê no original], constituindo o bureau político e o comitê central.

No início de 1965, reuniu-se com o comandante Ernesto Che Guevara, na República da Guiné[-Conacri], de cujo encontro o Che fez uma avaliação muito positiva que expressou na sua Mensagem à Tricontinental (2).

Em 1966, por ocasião da primeira reunião da Tricontinental, Amílcar fez pronunciamentos sobre a unidade necessária na luta dos povos contra o colonialismo, os quais foram gravados para a humanidade toda. Visitou com nosso comandante-em-chefe Fidel Castro o Escambray e a partir desse momento Amílcar e seu povo uniram-se a Cuba na batalha por uma pátria livre do colonialismo.

[Nós,] os cubanos lembramos aquele grupo de companheiros cabo-verdianos que, sob as ordens do atual presidente Pedro Pires e com a participação direta do capitão Toledo, Coqui e outros cubanos, prepararam-se física e militarmente.

Posteriormente, os vimos nos campos da Guiné combatendo pela liberdade da [Guiné-] Bissau e Cabo Verde; presentes também na emissora Radio Liberação [Libertação], criada para cumprir a missão de fazer chegar a verdade ao povo, e que começou as transmissões em 16 de julho de 1967, na República da Guiné-[Conacri].

Amílcar Cabral foi um lutador incansável pela unidade e a paz de seus povos, pela cultura e o desenvolvimento de ambos os países, assinalando a esse respeito: «De Portugal só precisamos da língua para poder sair ao mundo».

Não podemos esquecer aquela noite triste do mês de Outubro de 1967, quando na embaixada de Cuba na República da Guiné-[Conacri] reun[iu-se] o bureau político do PAIGC, liderado por Amílcar e Aristides Pereira, para prestar tributo ao Comandante Che Guevara ao ser confirmada a notícia de sua morte na Bolívia (3).

[Em] resumo, Amílcar deu a palavra de ordem: atacar todos os quartéis durante 15 dias na operação que nomeou «o Che não morreu».

É por isso que estamos certos que Amílcar neste momento estaria junto a Fidel na luta pela unidade dos povos em defesa da liberdade e o retorno dos nossos Cinco heróis prisioneiros do Império (4). Com certeza, nossos antepassados levados à América como escravos estão contentes.

Prestamos homenagem aos combatentes cabo-verdianos e guineenses mortos e como tributo também lembramos os cubanos que morreram na Guiné-Bissau: tenente Raúl Pérez Abad, Raúl Mestres Infante, Miguel A. Zerquera Palacio, Pedro Casimiro Llopins, Radamé Sánchez Begerano, Eduardo Solís Renté, Felix Barriento Laporte, Radamés Despaigne Robert e Edilberto González (5).
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(*) O coronel aposentado Victor Dreke foi o chefe dos combatentes cubanos na Guiné-Bissau durante a guerra de libertação desse povo

Fonte: http://granmai.cubaweb.com/portugues/marzo03/mier12/10nues-p.html

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Notas de L. G.:

(1) Vd post de 1 de Jukho de 2006 > Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingo Diaz, 1966/67)

(...) "A principios del año 66, respondiendo a esa solicitud, lo designan como miembro del primer grupo (muy reducido), de médicos y combatientes que participarían en la liberación de Guinea Bissau, cuya metrópoli era Portugal (...).

"En ese momento yo era jefe de los servicios médicos de la división 1270 en el Mariel. Fuimos nueve médicos (tres viajaron por avión) junto a los instructores, en total 24 hombres. Tenía bastante experiencia en cirugía porque en esa época, desde que uno estaba estudiando podías participar en determinado equipo quirúrgico. Dos meses después de mi incorporación a este contingente, integrado por artilleros, morteristas, cañoneros y médicos, salimos hacia Guinea Bissau, en la motonave Lidia Doce de 2 000 toneladas. El viaje duró casi 20 días, hasta llegar al puerto de Conakry. La nave estaba deteriorada y fue un trayecto difícil, pues se rompió por lo menos tres veces. En una ocasión hubo un inicio de fuego en las máquinas y por poco tenemos que abandonar el barco" (...).

(2) Tal significa que o Che Guevara nunca esteve na antiga colónia portuguesa, como às vezes consta. O texto de Piero Gleijeses, Professor de Política Externa Norte-Americana, na prestigiada Universidade de Johns Hopkins, também não coloca a Guiné-Bissau na missão secreta que levou Guevara à África, de Dezembro de 1964 a Fevereiro de 1965:

In December 1964, Che Guevara went to Africa on a three-month trip that evidenced the increased interest of Havana in the region. In February 1965, in Dar es Salaam, Tanzania, Che came to an agreement with the rebellious Zairians that Cuba would send a group of instructors to help them in their struggle. In April, a Cuban column of about 120 men under Che´s orders entered eastern Zaire through Tanzania. (...). Fonte: A History Worthy of Pride

Em contrapartida, foi a Guiné-Bissau o país de África, em luta pela independência, que beneficiou mais, nessa época, do apoio político-militar de Cuba:

The end of the 1960’s was a period of growing maturation in the relationship between Cuba and Africa. In those years – until 1974 – Cuba’s focus in the continent was centered on Guinea-Bissau, where PAIGC guerilla fighters were fighting to liberate their country from the yoke of Portuguese colonialism.

At the request of the PAIGC, Cuban military instructors came to Guinea-Bissau in 1966 and stayed until the end of the war in 1974. This was the longest Cuban operation in Africa until the dispatching of troops to Angola in 1975; and it was also the most successful.

According to the words of the first president of Guinea-Bissau, “we knew that we could fight and triumph because other countries and people supported us... with weapons, with medicines, with supplies... But there is a country that, besides material, political and diplomatic support sent their sons and daughters to fight on our side, to spill their blood in our earth alongside that of the best children of our homeland. This great people, this heroic people, we all know is the heroic people of Cuba, the Cuba of Fidel Castro, the Cuba of the Sierra Maestra, the Cuba of Moncada... Cuba sent its best youth here to help us in the technical aspects of our war, to help us carry out this great struggle... against Portuguese colonialism.


Mais diz o autor que únicos estrangeiros que combateram ao lado do PAIGC nas bolanhas da Guiné, de 1966 a 1974, foram os cubanos. Cubanos (com uma única excepção, pontual, ao que parece) eram também os médicos que davam assistência à guerrilha, na frente de combate e nos hospitais de campanha. Até 1968 o PAIGC não dispunha de médicos guineenses:


"The only foreigners who fought with the PAIGC in Guinea-Bissau were the Cubans. Likewise, throughout the duration of this long war, the only foreign doctors in the guerilla areas were Cuban (with a single and fleeting exception), and there were no Guinean doctors up until 1968. “The Cuban doctors really made a miracle”, said Francisca Pereira, a health worker of the PAIGC. She observed, “I am eternally grateful to them. Not only did they save lives, but also they risked their own. They were truly selfless.”


Os jovens combatentes cubanos - ao que parece, todos voluntários - seriam apenas motivados pela "mística da guerrilha", no dizer de Piero Gleijeses, cujo artigo tenho vindo a citar. A sua missão era secreta. Em caso algum, poderiam esperar o reconhecimento público pelos seus feitos, ou queixar-se da má sorte da guerra... Eram jovens, sentiam-se "filhos de uma revolução" e tinham sido criados no seio da ideologia castrista e do culto do exemplo romântico de Che Guevara...O próprio Victor Dreke era apontado como o nº 2 da hierarquia dos combantentes cubanos em África, a seguir ao Che Guevara...

The Cubans who went to Africa did so voluntarily. The mystic of the guerrilla war motivated them. “We dreamed about revolution” one meditated. “We wanted to be part of it, to feel that we fought for it. We were young and the children of a revolution.” The volunteers didn’t receive public praise in Cuba. They left “knowing that their history would remain secret.” They didn’t win medals or receive material rewards. Upon their return they could not boast about their feats because what they had done was secret.


(3) Guevara foi capturado, ainda vivo, pelos rangers do Exército boliviano, treinados pelos Estados Unidos, em 8 de outubro de 1967; passou a noite numa escola da aldeia de La Higuera, a 50 quilómetros de Vallegrande, no centro-sul da Bolívia, para depois ser excutado, a sangue frio, com nove tiros, no dia seguinte, 9 de Outubro de 1967, por ordem do presidente da Bolívia, general René Barrientos.

(4) Referência a 5 cubanos, na altura (Março de 2003) presos nos Estados Unidos da América, sob a acusação de terrorismo.

(5) Vd. post de 14 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P960: Antologia (49): Oficialmente morreram 17 cubanos durante a guerra

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