Texto do nosso camarada João Tunes, de quem a nossa tertúlia já tinha saudades... Eu, pelo menos, já tinha saudades da sua escrita vigorosa, da frontalidade das suas posições, da sua paixão pela discussão de ideias...
João: Boa continuação de férias, em Cabo Verde, camarada! Ou bom regresso a casa, se for caso disso... Como vês, mal ainda abrimos o dossiê cubano e tu já começas a deitar fogo à savana!... Bom, depois de vários textos, da mesma fonte, sobre o papel dos cubanos - foi há 40 anos que chegaram seceretamente à Guiné os primeiros médicos e instrutores cubanos, que vieram dar apoio à guerrilha do PAIGC - , era já chegada a altura de termos também, no nosso pluralíssimo blogue, um ponto de vista crítico sobre o(s) discurso(s) de propaganda dos seus autores: mas essa função de vigilância crítica compete menos ao sobrecarregado editor do blogue do que aos folgados e fogosos camaradas que estão de serviço ao pelotão de piquete.
João: Tu não precisas, naturalmente, de invocar o direito de réplica (pública): está a utilizar, e muito bem, o teu direito de pensar pela tua cabeça e de exprimir, de imediato, os teus sentimentos de indignação contra a tentativa de reles instrumentalização e apropriação (sempre abusiva) de uma figura que a história agigantou e que tu e eu e outros de nós, nesta tertúlia, ainda admiramos e respeitamos, desde a nossa juventude... Falo do Amílcar Cabral, que sempre soube distinguir o povo português e o regime colonialista que ele combateu, de armas na mão... Infelizmente, guineenses, caboverdianos e portugueses ainda o conhecem mal, a ele, ao seu pensamento e à sua acção... Obrigado pelo teu contributo. LG
OS MORTOS TAMBÉM SE INSTRUMENTALIZAM
Caro Luís,
Uma nova dívida, a juntar a tantas acumuladas e por pagar, fica registada para com o teu ciberlabor - dares a conhecer o despacho da Lusa sobre o fantástico discurso de uma celebridade inspirada, Pedro Donia, embaixador de Cuba na Guiné Bissau. Estando então de férias em Cabo Verde, não conhecia a notícia e, sem o blogue, ficaria a leste de tão inspirada e espantosa sacanice política.
A um morto, ilustre ou não ilustre, nem tudo se deve fazer. Direi mesmo que um morto, qualquer morto, exige sempre respeito. Dar pontapés num morto ou fingir endireitá-lo para que funcione como boneco de eco ventríloco de uma qualquer cartilha política, são das piores canalhices entre as que conheço na face negra do comportamento humano, política e intelectualmente falando. E se instrumentalizar a memória de um morto, projectando-lhe comportamentos fora do contexto em que viveu, não é o cú da propaganda, então é aceitar que a política e a diplomacia, segundo certos propagandistas safados, comem mas não defecam.
Amílcar Cabral, assassinado em 1973, hoje, só tem contas a ajustar com a história pelo que fez em vida e por aquilo que lutou na forma como lutou. Especialmente perante a memória dos povos da Guiné e de Cabo Verde cujos destinos invocou como causa da sua vida e marcou indelevelmente. Pela sua inegável envergadura, mais a força do impacto do seu martírio, a figura de Amílcar ainda sofre do efeito da névoa do mito. Um mito construído, a meias, entre os que o diabolizam e o santificam. E um mito é sempre uma redução.
Pela parte que me toca, até porque marcou alguns dos meus anos de juventude como meu camarada de ideais e simultaneamente meu inimigo na guerra, há muito ainda a descobrir nele, a aclarar, a projectar no seu tempo histórico, respeitado o contexto da época em que viveu e lutou. E há, à volta da figura de Amílcar, mistérios, luzes e sombras. Que só o tempo, na sua distância, mais o acesso a fontes documentais podem permitir aos historiadores a missão ciclópica de nos permitirem conhecer melhor Amílcar.
Neste aspecto, muito tenho aprendido com o nosso amigo Leopoldo Amado, cujos talentos de historiador contribuíram para que, cada vez mais, aumente a minha curiosidade em saber de Amílcar o máximo da substância além do mito. Esse mito desesperante que envolve, inevitavelmente, toda a figura de líder que, no caso - tragicamente, não lhe foi permitido fazer a prova suprema do exercício do poder em vitória total, confirmando-se, desmentindo-se ou negando-se (e como a história é fértil em qualquer destas modalidades!). Está para conhecer, em toda a dimensão, os variados talentos de Cabral na sua panóplia de intervenções - como chefe militar, como político, como diplomata, como pensador político e ideológico, como intelectual sofisticado, como planificador, como homem de Estado antes de ter um Estado mas projectando-o como herança política.
Também desconhecidos são os seus inevitáveis pontos negros no exercício do poder guerrilheiro nas condições em que travou a guerra (e, decerto, os terá). Para dissecar está igualmente a génese da utopia de Cabral na unidade Guiné-Cabo Verde, a qual, vista à distância, tende a surpreender pelo seu aparente absurdo como a praxis depois demonstrou.
Particularmente, um dos pontos mais misteriosos e fascinantes na figura de Cabral, tem a ver com a forma real como ele desenhou a sua luta no quadro geoestratégico e se movimentou no xadrez de apoios e alianças numa época da guerra fria mais quente. E - mera suposição minha - desconfio que, neste domínio, muitas surpresas estão reservadas aos historiadores face a alguns clichés adquiridos, nomeadamente o de que foi um peão dos soviéticos ou dos cubanos. E quando os arquivos soviéticos e cubanos forem abertos aos historiadores, quiçá apareçam surpresas sobre a forma, e as variações no tempo, como soviéticos e cubanos apoiaram Amílcar e o PAIGC e se esse apoio foi sempre leal, incondicional e desinteressado. Ou se, pelo contrário, houve dedos de aliados enfiados, objectiva ou subjectivamente, nos gatilhos das armas que o abateram.
O discurso do embaixador Pedro Donia, instrumentalizando a memória de Amílcar ao garantir que, se vivo, estaria hoje ao lado do ditador Fidel Castro (1), o homem que transformou Cuba numa Ilha-Prisão, é uma peça rasca e indigna de propaganda. E por ter a cumplicidade interessada de Carlos Gomes Júnior, mais os projectos comuns guineenses-cubanos, não aquece nem arrefece, porque de perfídia não passa. Muito menos a memória respeitável dos combatentes cubanos que caíram no combate pelo PAIGC, altera um pau de fósforo na questão.
Não conheço qualquer prova que garanta que Amílcar seria inevitavelmente um ditador e amigo e aliado de ditadores e de ditaduras. Pedro Donia não as apresentou, diminuindo Cabral por via da instrumentalização política, fazendo silogismos de pacotilha. Da mesma forma, no meu caso, não tenho garantias de que Cabral, se vivo, estaria hoje a insurgir-se contra a resistência à democracia cubana, contra as prisões arbitrárias em Cuba, nomeadamente das dezenas de jornalistas condenados a mais de vinte anos de prisão política por teimarem em escrever diferente das versões e dos delírios paranóicos de Fidel Castro. Uma ou outra projecção são delírios, tanto mais se tivermos em conta como o mundo mudou desde 1973 até aos nossos dias.
Mas como Pedro Donia existe, Carlos Gomes Júnior também, é bom que saibamos das suas músicas. Razão principal do meu sincero agradecimento por nos teres dado a conhecer esta peça. Usando, se o permitires, o direito a pública réplica.
Abraços para ti e restantes tertulianos.
João Tunes
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Nota de L.G.
(1) Vd. post de 12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P956: Antologia (48): Félix Laporta, o primeiro cubano a morrer, num ataque a Beli, em Julho de 1967
(...)
Se Cabral fosse vivo estaria ao lado de Fidel, diz embaixador de Cuba em Bissau
RTP -Informação
O embaixador de Cuba em Bissau afirmou que, se o fundador das nacionalidades cabo-verdiana e guineense, Amílcar Cabral, fosse vivo, estaria "com toda a certeza, a lutar contra o imperialismo" ao lado do presidente cubano, Fidel Castro.Pedro Donia discursava numa cerimónia organizada pelo Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) destinada a celebrar o 40º aniversário da chegada à então província portuguesa da Guiné dos primeiros seis "internacionalistas" de Cuba, que ajudaram o "movimento libertador" na luta pela independência nacional (1963/74)."Os ideais de independência e autodeterminação e de luta contra o imperialismo de Amílcar Cabral, tal como se apresentou perante Fidel Castro em meados dos anos 60, manter-se-iam hoje bem vivos se fosse vivo. E, se fosse vivo, estaria, com toda a certeza, ao lado do líder cubano", afirmou o diplomata (...)
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