quarta-feira, 19 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P972: Cacimbados ou apanhados do clima? (Zé Teixeira)


Guiné > Guidaje > CCAÇ 4150 (1973/74) > Trata-se de um Unimog 411 (e não Hanimog, como vem escrito por lapso da legenda da foto). Esta viatura transportava uma secção (8 homens com o condutor). Era conhecida por burrinho ou salta-pocinhas...

Foto: © Albano M. Costa (2005)


Texto do Zé Teixeira, ex- 1º cabo enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70.

Cacimbados ou apanhados pelo clima ?

Eu gosto mais do segundo termo, pois reflecte a realidade do que se afirmava no meu tempo de Guiné, quando algum de nós cometia actos que expressavam um estado de espírito ou força anímica anormal, estados esses a que nos fomos habituando desde o primeiro dia:
- Este já está apanhado pelo clima!

Desde o Frank que se punha a gritar, nos primeiros dias de Guiné, a altas horas da noite, “Apetece-me voar", ao Lemos que gritava “Apaguem a luz que não vejo para dormir” até ao Chamusca que, quando éramos atacados no quartel, subia para a alta árvore e punha-se a berrar, dizendo as palavras próprias com que baptizávamos os adversários, que de tão bonitas que eram, não cabem neste blogue de gente educada.... Neste último caso, foi preciso o alferes Barbosa fazer-lhe uma espera e prometer-lhe quatro borrachos se ele voltasse a repetir a cena.

Estava em Mampatá (2), um oásis no meio da guerra, quando o restante pessoal da Companhia foi fazer segurança à coluna de transporte de mantimentos a Gandembel. A ida foi, como de costume, agitada e quando tomamos conhecimento, via rádio, que a coluna tinha recomeçado o caminho de regresso a Aldeia Formosa (2), o alferes e um furriel decidiram pegar no salta-pocinhas (*) e arrancar ao seu encontro.

Como era um acto demasiado arriscado, naquela zona, decidiram partir, mas sem G3 ou qualquer outra arma de defesa pessoal, e lá se foram a grande velocidade, pois a estrada tinha sido picada de manhã no início da coluna.

Atravessaram Chamarra (2), onde estava outro Grupo de Combate aquartelado e, ao localizarem a coluna, inverteram a marcha e, seguindo na sua frente, regressaram a casa, felizes e contentes pelo desfecho positivo da aventura.

Num dia, após um ataque a Aldeia Formosa (2), que começou cerca das 17.30 e acabou altas horas da madrugada, o Caco Baldé (1) apareceu por lá para apreciar os estragos, que felizmente para os militares tinham sido nulos e ao comentar com o comandante da guarnição o local de onde o IN tinha atacado, este sugeriu que possivelmente tinha havido apoio logístico de uma tabanca colocada para lá da fronteira. O Homem do monóculo, só fez uma pergunta:
– Nunca te lembraste de apontar para lá os obuses ?

Claro que nessa noite foi um corridinho de granadas de 18 Kg naquela direcção. Eu guardei a frase, quando em Mampatá se comia arroz com arroz, enquanto as vacas do Chefe da Tabanca se deliciavam a pastar entre os arames farpados de protecção da tabanca. Ao fazer a ronda nocturna notei o tilitar de garrafas e perguntei ao sentinela o que se passava:
- É uma vaca que anda aí - respondeu-me ele - não há perigo.

Havendo perigo ou não, resolvi imitar o Caco e dizer-lhe:
- Já pensaste em mandar para lá um tirito, ninguém sabe se está lá uma vaca ou um IN ?!

No dia seguinte, sem eu ter dado qualquer ordem, apareceu uma vaca coxa, e houve bife e do bom ao almoço, pois o Aliu Baldé, para não perder tudo vendeu-nos a vaca pelo preço da chuva.

Só que o IN também queria que repartíssemos com ele e à hora lá estava junto à cerca, sabendo que a fome e o apetite por um bom bife eram factores que nos iriam criar possíveis desatenções. Tal aconteceu de facto. Os postos de sentinela, foram desguarnecidos e o IN chegou a tentar entrar. Creio bem que a população estava avisada e refugiou-se nos abrigos, e só tal facto impediu que houvesse mortos e feridos, tal a proximidade dos guerrilheiros (chegaram a entrar dentro do perímetro da tabanca) e a quantidade de fogo ligeiro, que provocou o incêndio e a destruição em 11 moranças.

A reacção dos meus colegas foi automática: atirando o bife com batatas fritas pelo ar, desataram a correr para os postos e seguraram pelas pontas o ataque. Por outro aldo, a reacção do pelotão de milícias foi excelente. Apraz-me registar ver o Chefe de tabanca e comandante da milícia, Alferes Aliú Baldé a coordenar, de peito aberto, a defesa (tanto quanto soube, veio a falecer em combate cerca de dois anos depois, também na defesa de Mampatá, quando a zona aqueceu, com a reabertura de frente de Colibuia e Cumbijã)(**) .

Estranha foi a minha reacção. Assustado com o fogachal e as labaredas que surgiam de todos os lados das moranças a arder, em lugar de me proteger e aguardar pelo fim da contenda, como era e continuou a ser meu hábito, desatei a correr pela tabanca a perguntar, aos gritos, se havia feridos.

Recordo-me bem da razão do meu estado de espírito: Tinha comigo apenas dois frascos de soro, algumas agulhas e linha de sutura, meia dúzia de Zimema K e pouco mais. Entrei em pânico. A estrada para Aldeia Formosa, estava cortada pelo IN e eu senti-me sem nada para poder valer aos colegas e à população.

Foram vinte minutos terríveis, que se saldaram num grande susto e . . . moranças queimadas, pois nem um ferido para amostra.
- Já estou apanhado! - Foi o meu pensamento íntimo, logo depois e que me obrigou a rever a forma de estar nos teatros de guerra que se seguiriam.

A nossa reacção obrigou o IN a refugiar-se rapidamente na mata e continuar a flagelação, mas um tanto descontrolada.

Como resultado extremamente positivo para a minha pessoa, foi a forma como a partir daquela altura a população em geral me acolheu e o carinho com que me trataram. Se já era bom ficou excelente.

Zé Teixeira
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(*) Unimog 411 (pequena viatura de transporte para uma Secção).

(**) Tive o grato prazer de reavivar a sua memória, quando em 2005 reencontrei a sua filha Naná, mudjer do actual régulo da tabanca de Sinchã Sambel (ele mesmo também milícia em Mampatá no meu tempo), que resultou do reordenamento de Contabane, após a destruição desta tabanca na noite de S. João em 1968 (3).

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá (Jorge Cabral)

(...) Notas de L.G.

(...) "Caco (ou Caco Baldé) era a a alcunha por que era mais conhecido o General Spínola entre os seus soldados. O termo queria referir-se ao vidrinho ou monóculo que ele usava... Baldé era um dos apelidos mais vulgares entre os fulas, aliados de Spínola...

Vd posts de:

29 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIV: Recordações do 'Caco Baldé' no Xitole (David Guimarães)

24 de SDetembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCX: Oficial do Estado Maior do 'Caco'... por duas horas (João Tunes)
(2) Vs. na carta do Xitole, o triângulo Mampatá- Chamarra - Aldeia Formosa (Ou Quebo)

(3) Vd. post de 6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXI: A viúva do régulo Sambel de Contabane: um símbolo (Zé Teixeira)

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