Mensagem do Jorge Cabral, antigo alferes miliciano de artilharia e comandante do Pel Caç Nat 63, afecto ao Sector L1 (Bambadinca) da Zona Leste, tendo estado em Fá Mandinga e em Missirá (1969/71).
Amigo Luís,
Cá estou eu revolvendo os trilhos da memória, evitando pisar as minas da tristeza.
Interessa-me, como sabes, realçar o burlesco de situações vividas num quotidiano, onde a lucidez se embaciava propositadamente, porque só dessa forma era possível aguentar. Estar ou fazer-se apanhado constituía afinal a solução para não enlouquecer…
Nós, os brancos dos Pelotões Nativos, caíamos desamparados e ignorantes, num meio totalmente desconhecido. Numa semana passeávamos no Rossio, e na seguinte estávamos em Missirá… Obviamente que nos espantávamos com tudo:
- Que raio de terra é esta, onde as mulheres mijam de pé e os homens de cócoras? - interrogou-me, um dia depois de ter chegado, a Cabo Gulherme.
Claro que o tempo dissipava a nossa inicial estupefacção, e alguns de nós acabavam por adoptar os costumes e práticas da população onde estavam integrados. Uns mais que outros, é verdade, mas isso também dependia do comportamento do Comandante do Destacamento… Se o Alferes mastigava cola (1) e lavava os dentes com terra, talvez fosse um exemplo a seguir… Apanhado o Comandante não existia vacina que evitasse o contágio!
Boas férias Amigo! Mando estória (2) e, como sempre, um Grande, Grande Abraço!
Jorge
P.S. – Alguns acrescentos e pequenas correcções:
a) quando comandei Missirá, continuavam a existir 2 Pelotões de Milícias (um Missirá e outro em Finete).
b) Também as famílias dos meus soldados os acompanhavam sempre, o que levantava problemas nas transferências. De Fá para Missirá, contámos com a ajuda da Marinha, por solicitação do vosso Major Brito. Mulheres, crianças, cabras, galinhas, camas, panelas, alguidares…foram de Lancha.
c) A Sulimato da minha última estória (2) era afinal Salimato, como me informou, o António Duarte [antigo furriel miliciano da CCAÇ 12, 1972/74], que a conheceu demasiado bem (pelos vistos a dama continuou em comissão…).
d) O Alferes Machado pertenceu à CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).
e) Recebi uma amigável e elogiosa mensagem do vosso Alferes Abel (3), que quase me emocionou. Então não é que ele escreveu “Alguém disse um dia que eras o único oficial do exército porreiro”.
____________
Notas de L.G.
(1) Noz de cola
(2) Vd. post de 4 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P936: Estórias cabralianas (11): a atribulada iniciação sexual do Soldado Casto
(3) Alf Mil Inf 01006868 Abel Maria Rodrigues, Comandante do 3º Gr Comb da CCAÇ 12 (Bambadinca 1969/71)...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário