sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P8992: Estórias cabralianas (68): Zina, a bordadeira do Pilão (Jorge Cabral)

Estórias cabralianas > A Bordadeira do Pilão


por Jorge Cabral [, foto à direita, Xime, 1971, junto a uma LDG]


Chegado na véspera e instalado no Biafra, entrei pela primeira e última vez na Messe de Oficiais em Santa Luzia. Era noite do Bingo. Procurei algum conhecido e encontrei o Gato Félix, estudante de Letras, ora Alferes, o qual também me pareceu entediado.


Perguntei-lhe que faziam à noite. 
- Ou copos ou Pilão, respondeu. 
- Pilão? Leva-me lá . - Melhor do que este Bingo, deve ser. 


E assim, na minha segunda noite de Guiné, percorri os escuros labirintos da Tabanca, escutei vernáculos convites, cheirei estranhos odores. África sim, estava em África. Decidi voltar. Quando viesse a Bissau, ali seria o meu Bingo.


Passados oito meses, eis-me regressado de férias, à espera de transporte. Claro,  Pilão e disposto a bingar


Ela chamava-se Zina, disse-me ser caboverdiana e ter quinze anos. Duas mentiras óbvias que eu retribuí, despromovendo-me a cabo, por via da propina. O gabinete de trabalho era asseado, mas estava atulhado de naperons, colchas, lençóis, todos bordados a primor.


Aliás recebeu-me de bastidor na mão e ainda esperei o remate de dois pontinhos na rosa púrpura que bordava…. Depois foi outra a arte… Zina era exímia…


Um ano depois voltei a Bissau e ao Pilão.  Procurei-a e nada. Eclipse total. De Zina, dos bordados… Teria eu inventado esta bordadora compulsiva?


Há cerca de dez anos, apareceu-me no escritório uma esbelta mulata, emigrante na Holanda. Nome: Zina
- Zina? É a segunda que eu conheço, disse eu, para começar conversa. - Havia, em Bissau, uma Zina.
- Ah! É minha tia, exclamou eufórica. - Como é que a conheceu? Ela trabalhava lá, numa Casa de Bordados!
- Pois era, comprei-lhe quatro.
- Agora vive cá. Vou-lhe contar. Se calhar ainda se lembra de si.
- Impossível. Muitos militares gostavam de bordados…


Jorge Cabral
______________


Nota do editor:


 Último poste da série > 11 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8892: Estórias cabralianas (68): Lagarto ka ta tchora! (Jorge Cabral)


(...) Em Missirá não existiam rafeiros, até porque era muito mais uma Tabanca do que um Quartel. Lá viviam duzentas almas, pelotão Nativo e pelotão de Milícias, mais população e, no meio de toda esta gente, apenas dez europeus, o que levou muitas vezes o Alfero a interrogar-se: Afinal quem 'colonizava' quem? (...)

8 comentários:

Anónimo disse...

Meu estimado Mestre Jorge Cabral
Escrever tão pouco e tão bem é um dom único.
Que fantástico retrato do pilão e dos bordados...
Nos meus tempos ia-se pouco a Bissau e passava-se muito tempo no mato. Usava-se muito a mão... e bordados só nas revistas da "Crónica Feminina" que algumas madrinhas de guerra enviavam à rapaziada. Raras visões de lavadeitras tomando banho inspiravam os trabalhos manuais...
Velhos tempos!
Com particular estima e apreço,
JERO

Sotnaspa disse...

Caro Jorge Cabral.

Mais uma bela estória da tua lavra, gostei bastante aliás, como é habitual da tua parte nunca desiludes.
Teclaste mais um mimo para a rapaziada.
Eu só fui ao Pilão faltavam 3 dias para embarcar de regresso, mas a verdiana com quem fui, ao contrário da "tua", era especialista em mornas no vinil de 78 rpm.
Um grande alfa bravo, e manda mais.
ASantos
SPM 2558

Luís Graça disse...

"Escrever tão pouco e tão bem é um dom único"... Meu caro Jero, estamos os dois de acordo... O "nosso alfero" é mestre da "short story", da(s) história(s) curtíssima(s). Não é de histórias de "curtas & compridas" como diria a minha santa mãe, quando queria contornar o palavrão do campo e da cidade... (Nunca lhe ouvi da boca, aliás, nenhum palavrão, nem dela nem do meu pai, que são gente do sul, estremenhos, bons cristãos e educadíssimos; os que eu ouvi e aprendi... foi na tropa, confesso).

Tenho a honrosa mas dificílima tarefa de escrever o prefácio (?) do livro (que devia já estar no prelo) com as 50 melhores estórias cabralianas... O que eu te posso testemunhar, pelo acompanhamento desta série, e pelo conhecimento pessoal (para não falar da amizade e cumplicidade...) que tenho do (e com o) autor, é que nunca ele foi (ou será) o mestre da "linguagem de carroceiro" ou da nossa "linguagem de caserna" (entre as duas, venha o diabo e escolha)...

Falo do humor alarve, que nos chega todos os dias à nossa caixa de correio (ou que nos é servido até nos meios de comunicação social, televisão, cinema, Internet, etc.), e que faz as delícias de muita gente, em privado, embora púdica em público... Mas, enfim, isso é outra história: Vícios privados, públicas virtudes, ou a eterna questão da moral hipócrita...

O que eu quero sublinhar é que o "nosso alfero" pode ser subtilmente malicioso, às vezes até profundamente espirituoso, brincalhão, burlesco, picaresco, sardónico, irónico, satírico... mas nunca grosseiro, brejeiro, desbragado, muito menos porno... Ele sabe como ninguém fazer humor, com o máximo de economia de meios, e - mais importante - sem nunca ter de recorrer ao baixo calão, ao chorrilho de asneiras...

Sei que esta é uma questão sensível, e que às vezes perdemos as estribeiras ou somos "desbocados"... Também aqui, no nosso blogue, que é lugar público, visitado por muitas famílias...

Mas, meu caro Jero, "escrever tão pouco e tão bem", mesmo sendo um dom, não é fácil... Não me adianta encomendar-lhe uma "estória cabraliana" por semana... O "nosso alfero" não trabalha por encomenda... Isto é literatura-gourmet, não dá para servir todos os dias, sob a forma de "fast food"... É como os teus "licores & doces conventuais" de Alcobaça: são só para ocasiões especiais, e só há um "mostra" anual... (A propósito, ela aí está à porta do convento!)...

Um Alfa Bravo aos dois. Luis Graça

Luís Graça disse...

Jero: ... eu queria dizer à porta do "teu" convento... LG

Luís Graça disse...

... Ou do "teu" mosteiro ? Parece que há uma diferença semântica e conceptual, entre convento e mosteiro... Não ?

manuelmaia disse...

Caro Jorge Cabral,

Uma vez mais, atal meia dúzia de frases muito bem buriladas que nos envolvem imediatamente no local da acção.
Estou como disse o Jero, as idas a Bissau eram tão poucas que nem sempre dava para conhecer bordados... Às vezes no mato conseguia-se à borda de... mas era um serviço fugaz não fosse entrar nos "aposentos" o afinador oficial da "máquina de bordar"...
abraço
manuelmaia

Anónimo disse...

Meu caro Jorge Cabral,tanto tempo contigo na Guiné,nunca me tinha apercebido,que eras apreciador de bordados.Sabia sim que gostavas de um certo e determinado objecto fabricado pelos ourives.No Pilão fabricava-se muito disso.
Um abraço.
António Branquinho

caçador disse...

o meu comentário a só para dezejar um natal cheio de páz e alegria a todos meus ex-camaradas e muita saúde a o meu desejo.