1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Outubro de 2011:
Queridos amigos,
Trata-se da primeira biografia de Amílcar Cabral, é um panegírico sem enganos, é facto que Oleg Ignátiev possuía uma grande cumplicidade com a luta do PAIGC, produziu dezenas de artigos e notícias, livros e filmes. Acresce que teve acesso aos arquivos do Comité soviético de solidariedade com os países da África e Ásia. É intrigante como o jornalista omite personalidades com papel central na luta e só houve depoimentos de um lado, o contraditório é impensável. Mas foi a primeira biografia, vale pelo que vale, ali só há o bem e o mal, os combatentes heróicos e os oportunistas, Cabral é uma sumidade impoluta, vai aparecer no martírio maquinado por aliados da PIDE.
Um abraço do
Mário
Amílcar Cabral, a biografia romanceada de Oleg Ignátiev
Beja Santos
Em 1975, o jornalista soviético Oleg Ignátiev que visitou seis vezes a Guiné durante a luta armada e que fizera amizade com Amílcar Cabral, publicou nas Edições Progresso, de Moscovo uma biografia dedicada ao líder carismático do PAIGC (tradução para português em 1984).
Por se tratar da primeira biografia, pelo facto do autor ter procedido a um conjunto de gravações abrangendo familiares e companheiros de luta e mesmo materiais do Comité soviético de solidariedade para os países da Ásia e da África, a despeito da compreensível carga panfletária, procede-se à respectiva recensão, dado o acervo de informações e a memória de fresca data dos combatentes e protagonistas de outras lutas africanas.
O autor começa por destacar a importância do Juvenal Lopes Cabral em termos em que pretende dar sequência à formação combativa de pai e filho, no emparelhamento das causas da Guiné e Cabo Verde.
Como é sabido, e Julião Soares Sousa esclareceu estarmos perante duas pessoas completamente distintas e de não haver quaisquer provas da relação de idolatria filho-pai, Juvenal era produto acabado da mentalidade colonial do seu tempo, do mesmo modo como Amílcar ter sido formado em valores simultaneamente cabo-verdianos e europeus (se assim não fosse, não teria feito a brilhante carreira universitária, com altíssimas classificações). As posições de luta, reivindicação e colaboração com as forças oposicionistas portuguesas ocorreram mas também não está provado nos termos relevados por Oleg Ignátiev.
A despeito dessa bruma e da aura mítica de tais comportamentos, é facto que Amílcar se relacionou activamente com futuros dirigentes como Vasco Cabral, Marcelino dos Santos e em termos bastante próximos dos relatados. O autor, sabe-se lá se até motivado por alguns entrevistados, procura explorar todas as facetas possíveis do martírio e da perseguição: vigilância permanente da PIDE em Lisboa e Angola, suspensão de programas radiofónicos em Cabo Verde, colaboração estreita com as células do PCP, expulsão da Guiné depois de ter feito o recenseamento agrícola, a partir de 1953 (não há documentação que abone tal tese, ao certo sabe-se que teve que vir urgentemente para Lisboa tratar de paludismo e aqui encontrou um emprego interessante numa empresa em Angola), que se ligou ao MING (há historiadores que continuam a pensar que este movimento nunca teve vida própria) que durante o recenseamento agrícola da Guiné viu inúmeras injustiças e granjeou profundas antipatias de administradores coloniais vincadamente racistas. Insista-se que toda esta biografia é romanceada, estrutura-se em conversas hipotéticas, porventura com base em declarações de familiares, combatentes e companheiros de estudo ou das lutas de libertação em África. Dá fluência ao relato romanceado, se bem que o calendário dos acontecimentos, regra-geral, seja rigoroso.
E chega-se ao dia da fundação do PAIGC (19 de Setembro de 1956) que Julião Soares Sousa contesta que tenha tido a presença de Amílcar e que tenha sido exactamente uma reunião de fundação de partido.
Incompreensivelmente, lutadores de proa como Rafael Barbosa não existem, não merecem uma só menção, isto quando se sabe que toda a subversão no final da década de 50 e até à prisão de Rafael Barbosa em 1962 teve nele a locomotiva. Certo e seguro, Amílcar Cabral vai estar em Bissau depois dos acontecimentos do Pidjiquiti e estrutura os fundamentos da luta: competirá ao partido conduzir a luta de libertação, introduz pela primeira vez a luta em simultâneo na Guiné e em Cabo Verde. De Lisboa parte para África, já lidera o Movimento Anticolonialista (MAC) que se irá transformar na Frente Revolucionária Africana da Independência Nacional (FRAIN). De Tunes parte para Conacri, será da capital da República da Guiné, e ao princípio com o pseudónimo de Abel Djassi que irá estruturar o PAIGC e conduzi-lo à luta armada.
Começa a mobilização, até lutando contra o tempo, movimentos rivais sediados sobretudo em Dakar mas também em Conacri procuram apoios das populações da Guiné portuguesa. Em Janeiro de 1961 um grupo de jovens parte para a China para receber instrução militar. Amílcar sensibiliza os líderes africanos e de outros continentes para a necessidade de receber apoios em armamento, alimentos e medicamentos para estabelecer uma rede interna eficaz de apoios à população combatente. Toda esta trajectória de 1961 aparece com dados rigorosos e revela o modo como se processou a mobilização das massas. Escreve:
“Amílcar fez um verdadeiro estudo sociológico. Verificou quais os dialectos que cada um dos combatentes dos diversos grupos dominava, qual a região da Guiné que cada um conhecia, o tipo de ligações que tinha na dada região, onde moravam os parentes e amigos. Com base nos resultados obtidos, formou os grupos e estabeleceu para cada um deles uma tarefa completa. Por isso, os grupos de Francisco Mendes e Nino iam ser enviados para o sul do país”.
Francisco Mendes (também conhecido por Chico Té) conta o autor uma série de peripécias na travessia da fronteira, com armamento precário e como se subtraíram à vigilância das autoridades portuguesas. Depois formou-se o grupo que instalou na região do Morés, só dispunha de alguns revólveres e espingardas obsoletas. Todo o relato referente ao ano de 1962 tem bastante interesse, preenche uma grave lacuna da historiografia de ambos os países. A URSS concede apoio militar, surgiram problemas de grande delicadeza com as autoridades de Conacri quanto à transferência de armamento a partir da República da Guiné para o interior da Guiné portuguesa.
É um tempo de equívocos e revezes. Há populações que recebem mal os guerrilheiros, começa igualmente a repressão das forças policiais, as populações põem-se em fuga, houve verdadeiros êxodos.
Em 1963, o PAIGC instala-se a sul do rio Geba e até ao rio Corubal, fora aberta a frente norte. Em Julho desse ano, o Ministro da Defesa português, general Gomes de Araújo, reconhece que os combatentes do PAIGC ocupavam e controlavam uma parte considerável do território, cerca de 15 %. Há percursos terrestres fundamentais que se tornaram intransitáveis (por exemplo, Mansoa-Mansabá-Bafatá).
Oleg Ignátiev resolve fazer propaganda descarada: os portugueses terão perdido cerca de 900 homens na batalha do Como onde as tropas do PAIGC, comandadas por Pansau na Isna, resistiram heroicamente e desbarataram as unidades portuguesas. Enquanto decorre esta batalha transformada em lenda, a Direcção do PAIGC está reunida a escassos quilómetros, realiza-se ali o congresso de Cassacá, no Quitafine, estamos em Fevereiro de 1964.
(Continua)
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Nota do Editor:
Vd. último poste da série de 31 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8969: Notas de leitura (298): Guiné - Apontamentos Inéditos, por General Henrique Augusto Dias de Carvalho (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
"Juvenal era produto acabado da mentalidade colonial do seu tempo, do mesmo modo como Amílcar ter sido formado em valores simultaneamente cabo-verdianos e europeus (se assim não fosse, não teria feito a brilhante carreira universitária, com altíssimas classificações). "
Confesso ter dificuldades em compreender o alcance da relacao estabelecida entre os valores caboverdianos/europeus e o sucesso universitario de Amilcar Cabral ?
MB independentemente do diga o Juliao Lopes no seu livro, convem nao perder-se de vista que Aristides Pereira era igualmente tido por um homem do sistema colonial da sua epoca..e deu no que deu !!
Mantenhas
Nelson Herbert
Nelson, diz Beja Santos que este livro deste autor foi traduzido para português em 1984.
Mas lembro-me de circular em Bissau em 1980 os "três tiros da PIDE", deste autor, e que já era uma biografia de Amilcar.
Não será o mesmo livro?
Mas uma coisa é certa, o que está a ficar para a história em Portugal, na Guiné e em Caboverde é tudo o que este jornalista soviético "oficializou".
Com tantos caboverdeanos e guineenses preparados e falando e escrevendo em russo, crioulo português e francês, admira como é um jornalista vindo do frio a escrever a história do principal heroi nacional de Caboverde e Guiné.
Mas sobre o sucesso universitário de Amilcar é igual ao de muitos milhares de estudantes ultramarinos daquele tempo.
Talvez o que muitos russos e caboverdeanos de hoje, e mesmo portugueses, talvez não saibam, que era em Caboverde e Goa, onde em 1961, havia menos analfabetismo, de "Minho a Timor".
E em "terra de cegos", não será isso que o soviético quer dizer sobre o sucesso de Amilcar?
Cumprimentos
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