segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8969: Notas de leitura (298): Guiné - Apontamentos Inéditos, por General Henrique Augusto Dias de Carvalho (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Outubro de 2011:

Queridos amigos,
Os apontamentos do general Dias de Carvalho são de grande argúcia, foram corrigidos por uma visão penetrante e compreensiva, alguém que ali viveu cerca de dois anos com uma missão e que dela se desincumbiu produzindo um relatório que são o hino à esperança nas potencialidades agrícolas da Guiné. Quase não se fala das pescas, o que também se pode entender. Dão-se recados sobre a educação, o sistema de transportes e o aproveitamento dos rios, não se esconde que é indispensável mudar o relacionamento com os autóctones, vivia-se num permanente pé de guerra. Foi pena ter esperado por 1943 para publicar tão valiosas observações. E são tão valiosas que tudo justificava que se voltassem a imprimir. Sobretudo na Guiné.

Um abraço do
Mário


A Guiné do final do século XIX, segundo o general Dias de Carvalho (2)

Beja Santos

Os apontamentos inéditos coligidos pelo general Henrique Augusto Dias de Carvalho sobre a Guiné (edição da Agência Geral das Colónias, 1944) constituem um documento histórico da maior valia e significado. O oficial general viveu ali cerca de dois anos, percorreu a colónia de lés e a lés, vê-se que estudou, procurou inteirar-se da realidade socioeconómica e cultural da região, levava a incumbência de organizar com Vitor Cordon a Companhia de Comércio e Exploração da Guiné. O seu registo sobre os Bijagós é impressionante, inteirou-se (mas fez juízos superficiais, hierarquiza e observa incorrectamente os Balantas e omite os Manjacos, por exemplo) sobre o mosaico étnico e repertoria como nunca encontrei noutro roteiro de viagem dados sobre flora e fauna, seguramente que esta observação lhe era indispensável para propor medidas de fomento agrícola.

Na continuação dos dados anteriormente expostos, vejamos agora o que o oficial general nos diz sobre o clima. Ninguém esperará juízos benignos. Mas se o clima é perigoso (mesmo a exposição ao cacimbo da noite) há comportamentos exemplares que mostram que a excepção pode distorcer a regra. Nesse ano de 1898 vivia em Bolama um antigo capitão da marinha mercante, João Carlos Rebelo Cabral, então com 75 anos de idade, tipo baixo, sobre o nutrido, alegre, dentadura completa, inteligência clara, boa memória, que fixara a sua residência na Guiné em 1848. Qual a receita da longevidade de Rebelo Cabral? Segundo o que contou ao autor, “Como o tempo em que se estabelecera na Guiné os vinhos de Portugal chegavam lá falsificados, deixou de beber vinho, bebia café no tempo fresco e chá no tempo quente, se durante o dia tinha sede ou bebia leite ou água filtrada com chá; não fumava; não se expunha ao sol nem às chuvas; se as chuvas em trânsito o molhavam, logo que recolhia se friccionava com álcool; regressava sempre a sua casa antes das oito horas da noite e às nove ia deitar-se”. E disserta sobre a falta de quadros, a curtíssima permanência dos governadores e dos secretários gerais, o funcionamento caótico da administração. Aproveitou para falar de um moço que viajara com ele para a Guiné, em 1898, para tomar posse do cargo de tesoureiro. Deram-lhe como auxiliar um nativo remador da Alfândega, a título de servente. Lamentava-se publicamente que tinha de fazer de tudo um pouco: o cofre geral do Província, a Alfândega, o correio, a venda de selos e papel selado, a escrituração do movimento de cada um desses cofres, a distribuição de emolumentos e, claro está, a contagem do dinheiro em todos os cofres. Logo que pôde regressou à metrópole e pediu transferência para outra província. A administração estava entregue a empregados provisórios. E escreve: “Há entre nós, acentuadamente, horror à Guiné e não se tem procurado modificar as condições que concorrem para como tal ser considerada; e por isso os portugueses europeus não pensaram na sua Guiné, nem se quer aproveitam as raças que lhes são mais afeiçoadas”.

O capítulo que dedica à agricultura complementa avisadamente o que escreveu sobre a flora. Acha que na Guiné há bons solos para os milhos, chegou a altura de abandonar a concepção da Guiné como entreposto comercial, invoca Andrade Corvo que ajuizara com optimismo as potencialidades do desenvolvimento agrícola da Guiné. Apela a que se eduque o agricultor já que o futuro da colónia é a agricultura. Considera que a exploração das pontas é instável e não fixa as populações à terra. Citando o governador Correia e Lança advoga que os cabo-verdianos poderiam prestar à agricultura e ao comércio da Guiné grandes serviços. Refere o sucesso de diferentes experiências e o que se conseguiu com a distribuição de sementes de mancarra, cola, cacau, borracha, gergelim, café e até videiras. Cita o exemplo de uma propriedade na margem direita de Cacine que estava a dar excelentes resultados com plantações de cacau.

Passando para a navegação em comércio, deplora a situação a que se chegou de não haver fretes regulares entre a metrópole e a colónia, recordando que são os alemães, os ingleses e franceses que aparecem nos primeiros lugares com os seus vapores marcantes. Indústrias não as encontrou e na medida em que todo o seu apanhado de notas tem por fito a ponderação de criar uma companhia de comércio, passa em revista a riqueza hidrográfica da região, recordando que foi sempre nos rios que se fizeram negócios de marfim, curtumes, cera e arroz. O seu juízo sobre a administração, como se compreenderá, é pouco lisonjeiro, a Guiné do tempo não tem praticamente população branca, tem escassos efectivos militares, a administração civil é de opereta, dos telégrafos à justiça. Não se podia fazer face às rebeliões permanentes com um batalhão de caçadores e uma bataria de artilharia.

O general Dias de Carvalho mostra-se bastante sensível à etnografia e à etnologia. Não espanta as considerações por vezes erróneas que deixa registadas, à luz dos conhecimentos da época. Ficam só aqui duas notas, são meras curiosidades. Falando dos Bijagós, diz que “Respeitam os portugueses porque deles precisam do seu comércio; e por isso vêm amigavelmente aos comandos militares. Recebem bem os portugueses que os procuram nas suas ilhas. Em outro tempo, se uma embarcação das nossas naufragava nas proximidades das suas ilhas, ainda assim a roubavam e prendiam a tripulação, que não entregavam sem o respectivo resgate ainda que pequeno. Nos costumes, não têm os Bijagós semelhança com povos da terra firme. Como vivem quase constantemente no mar, são excelentes marinheiros e tão destros que em se lhe virando a canoa mesmo a nado a reviram, continuam o seu caminho remando muito ligeiramente com as suas pás a que chamam pangaios”. Falando da miscigenação, observa: “Deram-se em princípio ligações de mulheres indígenas com europeus e filhos de Cabo Verde, o que era um grande auxiliar para os negociantes: manejavam as suas especulações no interior com uma habilidade e vantagens inimitáveis, pelas muitas relações do seu parentesco e perfeito conhecimento das coisas do país. A história regista um grande número delas mesmo nas classes inferiores: activas, laboriosas, muito fiéis a quem se ligavam, dando-se a tais pessoas com todo o carinho. Citam-se mesmo fortunas que se devem a essas ligações”.

Aqui se põe termo aos apontamentos surpreendentes de um oficial general que no virar do século XIX inopinadamente veio parar à Guiné, procurou estar atento às potencialidades económicas e tece um hino magnífico ao futuro agrícola da região. Estes apontamentos mereciam ser reeditados, constituem um primor de que a auto-estima dos guineenses bem carece.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 28 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8955: Notas de leitura (295): Guiné - Apontamentos Inéditos, por General Henrique Augusto Dias de Carvalho (1) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 31 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8968: Notas de leitura (297): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte V): Início desastrado e desastroso da luta de guerrilha no chão fula, em 1963 (Luís Graça)

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