1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp / RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, continua a narrar-nos a catarse das suas recordações.
DESCANSO DO GUERREIRO
MEDITANDO!
Olhava,
incansavelmente, o horizonte que teimava em manter-se distante! Inócuo
deparava-me então com uma encruzilhada de ideias imerecidas. Por que vim parar
à Guiné? À guerra! Um grito interior revoltava-me a alma. Conhecia já o flagelo
real.
Tem calma, propunha-me
um neurónio que entretanto tinha acordado. E eu, sentado num no trono real,
resplandecia com a sorte que entretanto teimava em proteger-me.
Existem momentos
ímpares que nos conduzem a fúteis pensamentos que nos transportam para a
construção de cenários que marcaram, e de forma inequívoca, os tempos da guerra
na qual fomos intérpretes. Momentos de meditação? Quem não os teve!
Todos, humanamente, assumimos pedaços de pequenas histórias que nos
catapultaram para vivencias passadas e nunca renegadas.
Refastelado num
arcaico cadeirão feito manualmente com a perícia do “homem grande”, sendo o
respectivo assento propriedade daqueles que quisessem descansar o espírito e
meditar, o banco foi muitas vezes o meu companheiro de profundas confissões.
O “trono” colocado no
sítio, não conheceu outro lugar e o fiel amigo um dia confessou-me que assistiu
à fuga de dois “turras” enjaulados num pequeno refúgio que nunca lhe conheci
outra utilidade.
A notícia, bizarra,
correu célere entre a malta da companhia. Dois prisioneiros arrancaram as
grades do espaço onde estavam “arrecadados” e fugiram durante a noite. Convém
especificar que se tratava de um duo de guerrilheiros recentemente capturados e
que aguardavam ordens que decidissem o seu futuro. Um futuro que eles
entretanto anteciparam. Escaparam-se como uma “pinta” divinal. Não deixaram rasto! Nunca mais
soubemos novidades dessa famigerada dupla.
Numa das noites que
antecedeu a este “filme” capturámos um homem que após identificado concluímos
tratar-se de um guerrilheiro do PAIGC. Tratámo-lo com dignidade e no regresso a
Gabú, já de madrugada, entregamo-lo no posto da DGS. O seu fim? Desconhecido!
À minha memória vinha
também aquela retumbante emboscada entre Gabú e Piche onde tombaram sete
camaradas e se registou um elevado número de feridos. A coluna vinha de Bafatá,
cruzou o Gabú e deparou-se em seguida com o imprevisto. Uma manhã de gritos e de
dor.
Nesse encontro com o
IN morreram o condutor e o cabo atirador da metralhadora de uma das panhard’s que
faziam protecção à coluna. Tiveram uma morte horrível! Eram do esquadrão de
Bafatá. Uma granada perfurante rebentou com a viatura e explodiu no vácuo.
Queimou tudo! Os infelizes militares ficaram reduzidos a… nada. Os outros cinco
saudosos militares finaram na sequência de tiros. Horrível foi também a
maldita emboscada. Valeu a pronta e corajosa intervenção da nossa tropa que
evitou que o IN tivesse recuado no momento em que já desenhava o cenário de
partir para “o assalto”.
Retratos de uma guerra
que ditava encontros infelizes, fatídicos s e dolorosos.
Mais tarde fui visitar
ao hospital de Bissau um companheiro que nessa emboscada ficou sem uma perna. O
Fanado, assim se chamava, era furriel miliciano e exercia a função de
vagomestre. Naquela endiabrada manhã o camarada que seguia na coluna e se
deparou com a cilada, ao saltar do unimog levou
com uma granada nas pernas, tendo o impacto do projéctil desfeito um dos órgãos
inferiores e salvando-se o outro. Dizia-me ele: “Saúde, fiquei sem uma perna, é
verdade, mas o meu pénis contínua no seu firme lugar e pronto para desempenhar
as suas funções sexuais”. E o certo é que pelo meio da conversa não se redimia
em levar a sua mão direita ao dito cujo e apresentá-lo como um herói da
desgraça.
Lembro-me
perfeitamente que o Fanado já reinava com a infelicidade. O acompanhamento
psicológico era decisivo para a malta se reequilibrar emocionalmente. Longe dos
seus familiares e amigos mais próximos, restava o conforto de camaradas com os
quais travávamos diálogos e se construíam, também, grandes amizades.
A guerra tinha
pormenores interessantes!
No momento de descanso
do guerreiro, outros motivos de África me vinham à memória. Meditava nas cores
alaranjadas do horizonte; da cor vermelha da terra; das trovoadas medonhas que
pareciam apresentar-se como o fim do mundo; da intensidade da chuva que tudo
inundava; dos escassos minutos de dilúvio que se diluíam num ápice; dos cheiros
oriundos do interior do solo; das queimadas, enfim, um rol de factos conhecidos
que me levavam à melodiosa ideia que África é, indiscutivelmente, um SONHO!
Na minha óptima,
África assume-se como um património mundial que invade de prazer almas carentes
em visualizar as harmonias de um horizonte colorido e sempre infinito.
Olhando o infinito
Um abraço a todos os camaradas,
José
Saúde
Fur
Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Fotos: © José Saúde (2011). Direitos
reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho
(2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
1 comentário:
Caro José Saúde
Apeteceu-me dar uma volta por aqui e deparei-me com este teu texto que sintetiza toda uma passagem por terra de Africa na dualidade de sentimentos guerra /alma.
Gostei
Luis Faria
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