terça-feira, 1 de novembro de 2011

Guiné 63/74 – P8979: Memórias de Gabú (José Saúde) (12): O descanso do guerreiro





1.   O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp / RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, continua a narrar-nos a catarse das suas recordações.


DESCANSO DO GUERREIRO

MEDITANDO!

Olhava, incansavelmente, o horizonte que teimava em manter-se distante! Inócuo deparava-me então com uma encruzilhada de ideias imerecidas. Por que vim parar à Guiné? À guerra! Um grito interior revoltava-me a alma. Conhecia já o flagelo real.

Tem calma, propunha-me um neurónio que entretanto tinha acordado. E eu, sentado num no trono real, resplandecia com a sorte que entretanto teimava em proteger-me.

Existem momentos ímpares que nos conduzem a fúteis pensamentos que nos transportam para a construção de cenários que marcaram, e de forma inequívoca, os tempos da guerra na qual fomos intérpretes. Momentos de meditação? Quem não os teve! Todos, humanamente, assumimos pedaços de pequenas histórias que nos catapultaram para vivencias passadas e nunca renegadas.

Refastelado num arcaico cadeirão feito manualmente com a perícia do “homem grande”, sendo o respectivo assento propriedade daqueles que quisessem descansar o espírito e meditar, o banco foi muitas vezes o meu companheiro de profundas confissões.

O “trono” colocado no sítio, não conheceu outro lugar e o fiel amigo um dia confessou-me que assistiu à fuga de dois “turras” enjaulados num pequeno refúgio que nunca lhe conheci outra utilidade.

A notícia, bizarra, correu célere entre a malta da companhia. Dois prisioneiros arrancaram as grades do espaço onde estavam “arrecadados” e fugiram durante a noite. Convém especificar que se tratava de um duo de guerrilheiros recentemente capturados e que aguardavam ordens que decidissem o seu futuro. Um futuro que eles entretanto anteciparam. Escaparam-se como uma “pinta” divinal. Não deixaram rasto! Nunca mais soubemos novidades dessa famigerada dupla.

Numa das noites que antecedeu a este “filme” capturámos um homem que após identificado concluímos tratar-se de um guerrilheiro do PAIGC. Tratámo-lo com dignidade e no regresso a Gabú, já de madrugada, entregamo-lo no posto da DGS. O seu fim? Desconhecido!

À minha memória vinha também aquela retumbante emboscada entre Gabú e Piche onde tombaram sete camaradas e se registou um elevado número de feridos. A coluna vinha de Bafatá, cruzou o Gabú e deparou-se em seguida com o imprevisto. Uma manhã de gritos e de dor.

Nesse encontro com o IN morreram o condutor e o cabo atirador da metralhadora de uma das panhard’s que faziam protecção à coluna. Tiveram uma morte horrível! Eram do esquadrão de Bafatá. Uma granada perfurante rebentou com a viatura e explodiu no vácuo. Queimou tudo! Os infelizes militares ficaram reduzidos a… nada. Os outros cinco saudosos militares finaram na sequência de tiros. Horrível foi também a maldita emboscada. Valeu a pronta e corajosa intervenção da nossa tropa que evitou que o IN tivesse recuado no momento em que já desenhava o cenário de partir para “o assalto”.

Retratos de uma guerra que ditava encontros infelizes, fatídicos s e dolorosos.

Mais tarde fui visitar ao hospital de Bissau um companheiro que nessa emboscada ficou sem uma perna. O Fanado, assim se chamava, era furriel miliciano e exercia a função de vagomestre. Naquela endiabrada manhã o camarada que seguia na coluna e se deparou com a cilada, ao saltar do unimog levou com uma granada nas pernas, tendo o impacto do projéctil desfeito um dos órgãos inferiores e salvando-se o outro. Dizia-me ele: “Saúde, fiquei sem uma perna, é verdade, mas o meu pénis contínua no seu firme lugar e pronto para desempenhar as suas funções sexuais”. E o certo é que pelo meio da conversa não se redimia em levar a sua mão direita ao dito cujo e apresentá-lo como um herói da desgraça.

Lembro-me perfeitamente que o Fanado já reinava com a infelicidade. O acompanhamento psicológico era decisivo para a malta se reequilibrar emocionalmente. Longe dos seus familiares e amigos mais próximos, restava o conforto de camaradas com os quais travávamos diálogos e se construíam, também, grandes amizades.

A guerra tinha pormenores interessantes!

No momento de descanso do guerreiro, outros motivos de África me vinham à memória. Meditava nas cores alaranjadas do horizonte; da cor vermelha da terra; das trovoadas medonhas que pareciam apresentar-se como o fim do mundo; da intensidade da chuva que tudo inundava; dos escassos minutos de dilúvio que se diluíam num ápice; dos cheiros oriundos do interior do solo; das queimadas, enfim, um rol de factos conhecidos que me levavam à melodiosa ideia que África é, indiscutivelmente, um SONHO!

Na minha óptima, África assume-se como um património mundial que invade de prazer almas carentes em visualizar as harmonias de um horizonte colorido e sempre infinito.

Olhando o infinito
 Paisagem que tantas vezes contemplei. As árvores, o mato, o arame farpado e o horizonte.

Um abraço a todos os camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

25 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 – P8944: Memórias de Gabú (José Saúde) (11): A coluna: Notícias que chegavam e “novas” que ficavam na… picada

1 comentário:

Luis Faria disse...

Caro José Saúde

Apeteceu-me dar uma volta por aqui e deparei-me com este teu texto que sintetiza toda uma passagem por terra de Africa na dualidade de sentimentos guerra /alma.
Gostei
Luis Faria