1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur
Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, continua a
narrar-nos a catarse das suas recordações.
A COLUNA:
NOTÍCIAS QUE CHEGAVAM E “NOVAS” QUE FICAVAM NA… PICADA
MISTO DE PRAZER E… MEDO
As velhas berliet’s mandadas construir pelo exército português nas
oficinas do Tramagal, assumiram papel de “burro de carga” na guerra do Ultramar. A sua enorme resistência
desafiava trilhos aparentemente impensáveis. O seu motor debitava uma força
enorme. Na Guiné, aquela usada máquina transportava víveres para as tropas
isoladas no mato e servia também para o transporte de pessoal entre as
localidades. A coluna era, em simultâneo, composta por unimog’s, viaturas mais pequenas, que se intercalavam
entre a monstruosidade dos esverdeados camiões.
A coluna apresentava-se para a rapaziada como um
misto de prazer e… medo. Prazer por que a finalidade era reabastecer o
aquartelamento, já vazio, de comestíveis e, por outro lado, trazer o ansiado
aerograma (azul) que trazia notícias frescas dos ente queridos e amigos lá na
Metrópole. Medo por que a picada envolvia mistérios imprevisíveis. Quantas
horas de sofrimento a picar meia dúzia de quilómetros da estéril picada?
Quantas emboscadas interromperam trajectos sonhados que se pretendiam felizes?
E quantos infelizes não perderam as suas vidas em imprevisíveis emboscadas? E
quantos não ficaram estropiados na ânsia de procurar uma estabilidade física e
emocional? Enfim!
Um rol de perguntas sem resposta que ficaram nos
anais da história da guerra colonial. Sabemos que uma coluna era, por norma,
motivo para a recepção a camaradas de outras paragens e o momento único para
desafiar uma conversa atinada sobre os últimos acontecimentos do local onde
coabitavam. Na unidade militar ao lado comentava-se o ataque ao quartel e
desenhavam-se possíveis cenários dos rebentamentos. Tudo, porém, era dissuadido
num aglomerado de interrogações do militar que em boa hora não se deparou com tal
fatalidade. As vítimas falavam de sua justiça e contavam ao pormenor o
sucedido.
Das várias colunas sob o meu comando em tempo de
guerra, destaco uma onde a finalidade foi reabastecer a zona Leste de material
maquiavélico: caixões. Aconteceu no princípio do ano de 1974. A zona tinha sido
fustigada com muitas baixas, sendo que o respectivo material armazenado ter-se-á esgotado. Veio então a ordem
para uma deslocação a Bafatá a fim de reabastecer Gabú com as respectivas
faltas. A berliet veio carregada e os caixões de seguida
depositados na arrecadação para suprimir eventuais falhas futuras.
Fomos e voltámos sem problemas de maior, ficando
o rescaldo de uma coluna que transportava, na altura, urnas para acolher corpos
de corajosos camaradas que romperam o seu ciclo de vida num combate, numa
emboscada ou numa mina, algures nas zonas de Gabú, Piche, Pirada, Canquelifá,
Buruntuma, Mandina, Cabuca, ou num outro sítio quaisquer no Leste da Guiné.
Tenho uma vaga ideia das bocas que o material transportado proporcionou ao longo
da viagem entre Bafatá e Gabú, inseridas no convívio de jovens militares que
brincavam com coisas sérias. O prazer da viagem cruzou-se com um agoirento medo
quando se colocava a questão: “quem serão os futuros donos destes “capotes” que solenemente transportamos?”. Depois, lá vinha
uma gargalhada da malta que entretanto se divorciava do seu próprio futuro. As
colunas tinham coisas maquiavélicas. Momentos de boa disposição e de dor.
Sacrifício. Outras vezes imperava uma reacção rápida a uma eventual
contrariedade deparada.
Numa outra coluna a Bafatá uma viatura
avariou-se. Confrontado com o imprevisto e dado que o condutor não conseguiu
resolver o problema, comunicámos para o comando expondo a situação. A resposta
foi evasiva. As comunicações via rádio não me davam alternativas. Não batiam
certas. A resposta foi a seguinte: “o furriel que resolva!”. E resolvi. Deixei
a viatura avariada no local e com todo o grupo regressámos ao quartel onde
peguei numa equipa de mecânicos para resolverem o problema. O pior veio a
seguir. O comandante chamou-me e deu-me um grande raspanete por que entendia
ele que eu como responsável abandonei uma viatura militar.
No seu posto de comando, e com a voz estridente
do cumprimento do dever militar, autoritário, a sua opção teria passado por
deixar metade do grupo de guarda à viatura e a outra metade regressava a Gabú
para recolher os meios de assistência. Ouvi, reflecti e disse: “A opção foi
minha e está tomada. Assumo. Fiz o que a minha consciência decidiu. Estamos em
guerra e não posso, nem devo, sacrificar vidas humanas”. Virei as costas, a
conversa acabou ali e palpitei logo uma eventual sanção disciplinar. Uma “porrada” como se dizia na vida militar. Nada aconteceu, o
homem caiu na realidade e sanei um problema imprevisto. No regresso, a berliet lá permanecia no local, não longe do quartel, os
mecânicos resolveram a avaria e lá retomámos o caminho para Bafatá.
Numa passagem por uma tabanca a coluna despertou
curiosidade. Eu, entretanto, verificava se tudo estava em ordem.
Em terra batida e o céu carregado de nuvens, a
coluna segue o seu destino com um cuidado redobrado.
Um abraço a todos os
camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER
da CCS do BART 6523
Fotos: © José Saúde (2011). Direitos
reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho
(2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
1 comentário:
Oh nosso furriel
Desde quando é que se abandona material militar na picada ?
Então o Sr. não sabia que o material era muito mais importante que o pessoal ?
Fique sabendo que vai levar uma "porrada" retroactiva.
Um alfa bravo
C.Martins
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