quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Guiné 63/74 – P8924: Memórias de Gabú (José Saúde) (10): O velho da tabanca revelava um saber ancestral


1.   O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem, dando seguimento à catarse das suas recordações.


O VELHO DA TABANCA REVELAVA UM SABER ANCESTRAL

O “HOMEM GRANDE” E O SEU CACHIMBO

A sua fisionomia encantava-me! Calmo, um estatuto que aliás se aplicava à quase generalidade dos “homens grandes” guineenses, de poucas conversas, reservado e astuto no seu saber ancestral, aquele homem, aparentando uma idade já avançada, dedicou-me alguns momentos de lazer. A sua cordialidade obrigava-me, no fundo, a debitar com ele instantes de prazer. Gostava ouvir os seus ditos sobre os conteúdos de uma guerra que teimava em não dar tréguas.

Sentado numa espécie de “sofá” anárquico que era utilizado simultaneamente para receber um anfitrião, como para repousar as pestanas nas horas de maior calor, o velho, e amigo, apresentava sempre uma simpatia extrema quando por lá passava.

Era também comum ter à sua frente um banco em madeira feito artesanalmente para mandar sentar gente que por ali passasse. O banco, nada cómodo, começou a ser-me familiar tendo em conta as visitas feitas à residência do frágil homem. Sempre que a oportunidade surgia, lá ia eu a caminho da tabanca para dois dedos de conversa com o meu aliado, onde ouvia histórias mirabolantes.

Curioso parecia ser o seu estado de espírito. Falava mal a língua de Camões. Porém, habituei-me a entende-lo. Os pontapés na gramática não eram uma questão de capital importância para um diálogo por vezes atrevido. Falava-me em surdina dos conflitos no terreno, dos “turras”, da tropa branca e das mortes que já tinha conhecimento.


Ao invés do clima de guerra já sabido, o meu amigo rejubilava com a sua airosa tabanca construída com paredes de barro e, sobretudo, com o seu mítico cachimbo. O patacão, embora escasso, permitia-lhe dar umas fumadas no seu companheiro pito e congratular-se com o destino que a vida lhe traçou. A tapar a cabeça um velho gorro. O seu coração era enorme. Um belo dia pedi-lhe para me arranjar um leitão. De pronto a minha encomenda estava garantida. Disse-me que conhecia um rapaz que tinha porcos e, de certeza, também leitões. Aguardei.

Sabendo-se que os muçulmanos não comem carne de porco a tarefa apresentou-se, à partida, facilitada. Ao cair da tarde e já com um unimog pronto para recolher o “famoso bacorinho” lá marchámos, sendo que o homem do cachimbo tinha tudo tratado e o leitão pronto para cruzar uma nova e derradeira etapa. Custou a encomenda 20 pesos, parece-me. Admito, e concordo, que o homem do cachimbo terá tido, também, a sua cortagem. Moral da história: no outro dia houve leitão assado e regado acaloradamente com uma boa dose de cervejas… fresquinhas!

No registo das minhas Memórias de Gabú ficou a saudade do “homem grande” que tanto me aturou.

                                                 O encontro com o velho do cachimbo

Um abraço a todos os camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

9 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 – P8878: Memórias de Gabú (José Saúde) (9): Batuque em Gabú e na Messe de Sargentos 

1 comentário:

Henrique Cerqueira disse...

Caro camarada José Saúde
Gostei imenso de ler a tua história,sobre o Homem Grande do Cachimbo.
Eu como estive numa Cª.Africana ccaç13 em Bissorã privei muito de perto com as Populações e o que mais me encantou ,foi que sempre encontrei grande sabedoria nesses "Homens Grandes" e o curioso é que quase todos têm o mesmo aspecto do teu "Homem do Cachimbo".
Na verdade tambem passei várias horas em grandes conversas com esses Homens.Até porque foi uma das coisas que aprendi a quando da formação que fiz em Bolama para as CCAÇs,nas aulas de acção psicológica,no entanto quando me dei fé estava a adorar essas conversas e a esquecer as ditas aulas.
Não haja dúvidas que das raríssimas coisas boas proporcionadas pela ida forçada á Guiné foi precisamente o conhecer culturas tão diferentes da nossa.
Bom amigo Saúde tudo isto para te dizer que gostei do teu texto
Um abraço
Henrique Cerqueira