sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9528: Notas de leitura (336): Os Últimos Guerreiros do Império (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2012:

Queridos amigos,
Recensão obriga a concisão, neste caso lastima-se a exiguidade do espaço porque há conteúdos suculentos, toca-nos o número dos heróis que dá a face pelos heróis que ficam no anonimato. Há heróis que nunca esqueceram os camaradas e a gesta da solidariedade. O importante é saber-se que já se fizeram levantamentos destes heróis e que há outros por fazer, antes que seja tarde ou que se esbata o rigor da mente. Não é de mais salientar que um elevado número destes heróis calcorreou a Guiné.

Um abraço do
Mário


Os últimos guerreiros do Império (2)

Beja Santos

O que é mais significativo nos depoimentos de militares condecorados por feitos de bravura é a desafeição, a ausência de pedantaria, o condicionalismo do ato heroico à equipa. Essa postura é ressaltada em “Os últimos guerreiros do Império” (coordenação de Rui Rodrigues, Editora Eramos, 1995), um registo de testemunhos de alguma gente valorosa. Como é evidente, há quem aproveite para fazer queixas, lamúria política, revelar azedumes. Mas no essencial encontramos ali gemas de exultação de grande camaradagem militar.

O coronel Maurício Saraiva escreve: “Resolvi passar à reforma extraordinária porque, por motivo de lei, não estava apto para todo o serviço. Ora eu perdi uma perna em combate mas não me sentia deficiente ou incapaz – um homem só fica incapaz quando perde a cabeça e eu não a perdi. Pedir a reforma custou-me bastante”. Esteve na Guiné em 1964, participou na operação Tridente, não esqueceu o Furriel Miranda, o 1º Cabo Cruz, o 1º Cabo Marcelino da Mata e o 1º Cabo Jamanca. Desembarcaram no Como sem problemas e depois veio a maré cheia, tiveram que ir fazer trincheiras mais adiante. Fez operações conjuntas com os Fuzileiros de Alpoim Calvão e com os paraquedistas. Foi depois desta operação que começou a formação dos Comandos. Diz o seguinte: “Constituímos três grupos: os Fantasmas era o meu, os Camaleões era o do Alferes Godinho e os Panteras era o do Alferes Pombo. Para mim, como para todos esses homens, foi uma autêntica honra termos sido os primeiros Comandos da Guiné. Um comandante não é ninguém sem os seus soldados. Eu tive muita vaidade nos meus soldados. E o que eu fui, foi à custa deles, com eles e por eles. Não vou referir atos isolados. Houve coisas que se passaram e que me deram condecorações e promoções por distinção; tudo isto se deve ao trabalho de um conjunto e ao verdadeiro espírito de equipa”. Só abre exceção para contar uma história que viveu na Ilha do Como. Na contagem dos militares, na hora do regresso, faltavam dois soldados. “Resolvi voltar à mata para ir buscar os soldados que faltavam. Levei comigo dois soldados, um meu e outro fuzileiro. Ao cruzar a clareira, foi um fogo infernal, mas lá conseguimos chegar à mata. O primeiro soldado que vimos estava morto. Trouxemo-lo até aos morros da baga-baga. Fomos outra vez ao outro lado e encontrámos um ferido. Era um homem enorme, um militar chamado Palha. Estava ferido na coluna e ficou paraplégico. Transportámo-lo até aos morros. Um morto transporta-se de qualquer maneira, mas um ferido é muito difícil. Uns anos depois, já eu tinha sido ferido em Moçambique, estava no Hospital Militar a fazer a barba, o homem não quis receber, eu insisti em pagar e ele disse-me que um dia eu tinha salvo a vida do sobrinho na Guiné, chamado Palha”.

Não menos tocante é a história que nos conta o Tenente-Coronel Nogueira Ribeiro esteve na Guiné de 1963 a 1966. Descreve o relevo, o fluxo das marés e o caminhar no tarrafo: “Andámos por ali enterrados no lodo até que nos apareceu um riacho cheio, havia que o transpor. A largura seria de 4 ou 5 metros e a profundidade cobria um homem de altura mediana. Quando chegou a minha vez, lancei-me, mas, devido ao cansaço e ao peso que transportava, quase fui ao fundo (meço 1,70 metros). A situação estava complicada e já me preparava para aligeirar a carga quando me sinto içado pela gola do dólman-camuflado e quase conduzido para a margem. Quem me auxiliou foi o Soldado 38, um felupe de quase dois metros: - Nosso Alfere não pode morrer, senão nosso ficar órfão. Era prática quase corrente que os comandantes tivessem um guarda-costas. Nunca quis nenhum, mas em operações anteriores reparei várias vezes que o 38, sem ninguém lhe dar ordem, assumiu-se como tal. 30 anos depois, não sei se está vivo, mas gostava de o reencontrar. Bem-hajas, 38!”.

O General Almeida Bruno realça a operação mais importante que comandou, a Ametista Real, comandava o Batalhão de Comandos Africanos, a operação destinava-se a aliviar a pressão sobre Guidage que estava isolada por terra, era impossível o reabastecimento aéreo e evacuação dos feridos. Dá conta do resultado: “O inimigo sofreu 67 mortos. As nossas tropas 14 mortos (dos quais dois alferes), onze desaparecidos, mais tarde confirmados como mortos e houve 23 feridos graves. Ao inimigo foram destruídos 22 depósitos de material de guerra”. E declara mais adiante: “Não posso nem quero deixar de dizer uma palavra sobre o que foi o destino desses homens do Batalhão de Comandos Africanos. Em 1974 estive em Londres, o Dr. Mário Soares, o Dr. Almeida Santos e com o Prof. Jorge Campinos, a negociar com o PAIGC, representado por Pedro Pires e pelo Dr. José Araújo. As indicações que levava do General Spínola eram muito claras e eram as mesmas que tinham recebido, na Guiné, o Major Carlos Fabião: aceitação pelo PAIGC de que ninguém tocava nos africanos, não só nos oficiais e sargentos do Batalhão de Comandos como nos Comandantes das Milícias. Nas nossas conversas com o PAIGC ficou sempre assente que haveria uma integração desse pessoal. Não foi isso o que o PAIGC fez. O PAIGC fuzilou barbaramente a maioria dos meus oficiais do Batalhão de Comandos”.

Marcelino da Mata é um militar que não precisa de apresentações. Tirou o curso de Comandos que foi dirigido por Maurício Saraiva. O seu relato é sempre baseado nas suas façanhas. Ganhou a Torre e Espada numa operação ocorrida em 1967: “O Comandante chamou-me e contou-me que a Companhia do Capitão Caraça, que estava a fazer operações de patrulhamento na zona da fronteira fora toda apanhada à mão pelo PAIGC na véspera – 150 homens apanhados à mão! – e que eu tinha de lá ir buscá-los. Fomos 19 homens todos muito armados, menos eu, que ia vestido com uma tanga igual às que os senegaleses usam naquela zona. Entrei na vila, cheguei perto do arame farpado do quartel senegalês e vi os nossos homens todos sentados na parada, só em cuecas. Atirei uma granada ofensiva para o meio da parada e na confusão conseguimos tirar os nossos de lá todos. A tropa senegalesa fugiu rapidamente, mas o PAIGC vinha atrás de nós. Iam nove do meu grupo à frente a escoltar os nossos e dez atrás a aguentar o tiro do inimigo – foi assim até à fronteira e ainda eram mais de 40 quilómetros”. Não esconde a sua deceção com os acontecimentos do 25 de Abril: “Quando se deu o 25 de Abril a situação na Guiné estava controlada por nós. Eu dava a volta a toda a Guiné. Só faltava destruir a base do PAIGC de Kadiaf, porque a de Fulamore já o tinha sido, e no dia 25 de Abril eu estava nessa base que se situava em território da Guiné-Conacri. Quando chegámos a Quêpe, o 2º Comandante da Unidade local informou-me que a guerra tinha acabado. Ao almoço o rádio disse que havia cessar-fogo. No dia seguinte fui atacar Kadiaf”. Ele descreve a situação da Guiné da seguinte maneira: “Havia 60 mil tropas brancos e 40 mil africanos. Só havia mil operacionais. Quem fazia operações eram os Fuzileiros Especiais, os Comandos Africanos e os Pára-quedistas. Em cada destacamento em que havia uma Companhia branca havia 45 milícias. Nos sítios onde a tropa branca não metia o nariz, eram eles quem ia… Na Guiné havia 23 Companhias de Caçadores Especiais só de africanos e no fim, quando as Companhias de brancos se vinham embora, eram substituídas por pretos. Muitos brancos iam daqui já politizados e por isso não queriam fazer operações, só disparavam se eram atacados; a maioria dos capitães milicianos que ia para a Guiné, no fim, eram comunistas”.

São relatos cintilantes, alguns, outros de grande vibração interior e há até quem explique, uma a uma, as condecorações que recebeu. São testemunhos que não podem ser ignorados pelos historiadores.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9508: Notas de leitura (335): Os Últimos Guerreiros do Império (1) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

" Em 1974 estive em Londres, o Dr. Mário Soares, o Dr. Almeida Santos e com o Prof. Jorge Campinos, a negociar com o PAIGC, representado por Pedro Pires e pelo Dr. José Araújo. As indicações que levava do General Spínola eram muito claras e eram as mesmas que tinham recebido, na Guiné, o Major Carlos Fabião: aceitação pelo PAIGC de que ninguém tocava nos africanos, não só nos oficiais e sargentos do Batalhão de Comandos como nos Comandantes das Milícias."

A Londres não foi nenhum guineense, nem dos Comandos africanos nem do PAIGC.

Aqui vemos um Português vindo de Paris, um retornado vindo de Moçambique, dois Caboverdeanos do PAIGC, e um Benguelense, prof Campinos. Nem ao menos um Bijagó?
um Papel, um Fula?

Obrigado Beja Santos por mais uma leitura que nos dispensas de fazer.

Antº Rosinha

João Carlos Abreu dos Santos disse...

... em reforço ao excelente comentário do veterano António Rosinha, eis alguns nacos de prosa soarista (difundida menos de 48 horas após empossado MNE):
- «On passe des négociations directes avec les différentes associations. [...] Le Portugal n'a rien à perdre et à gagner. [...] Les compagnies multinationales ont tout pouvoir dans les colonies. [...] Le Portugal va arrêter la guerre, sauver des vies... ».
Salvar vidas! Viu-se como...

Ouvir em "francé", ici...
http://www.ina.fr/histoire-et-conflits/decolonisation/video/CAF92018593/interview-de-mario-soares.fr.html
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