sexta-feira, 12 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17350: Inquérito 'on line' (113): Fátima... Gosto de lá ir em silêncio... e, para mim, a oração não é uma forma de negociar com Deus (José Teixeira)

1. Comentário ao poste P177347 (*), por José Teixeira,  um dos régulos da Tabanca de Matosinhos, ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70)



[Foto à esquerda: Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira com a Cadidjatu Candé.

Foto (e legenda): © José Teixeira (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Poucos dias depois de chegar à Guiné,  escrevi:

Prometi a minha mãe não me esquecer de Deus, mas confesso, que Ele se escapuliu, logo nos primeiros abalos do mar alto que me fizeram vomitar tudo quanto tinha e não tinha no estômago em alta sinfonia com centenas de camaradas alojados no porão do Niassa.

Singular fenómeno de religiosidade,  fui encontrar em Ingoré. Aí que tive o primeiro reencontro com Deus, após a saída de Portugal. 

Logo no segundo dia da chegada, depois do jantar e acabada a limpeza do refeitório, este enche-se de novo, agora sem pratos nem comida para o corpo. Seguia-se o momento de alimentar a alma. O grupo foi engrossando. Um estranho silêncio ou conversas em tom abaixo do normal, provocaram-me para ir averiguar o que se passava, com aquele grupo de camaradas de tez queimada por uns meses largos de sol na Guiné.

Um jovem soldado, lá na frente, começa a “votar” o terço em honra de Nossa Senhora, respondendo em coro o grupo de combatentes, onde se viam praças e um ou dois furriéis.

Foram vinte minutos de paragem, de reflexão, sobre o que me era exigido como seguidor do projeto de Jesus Cristo numa guerra para onde fui atirado, contra a vontade, pelos “senhores” do meu país.
Rezar, para mim, é mais um permanente estado de louvor a Deus pela vida, pela natureza que me disponibilizou para a minha felicidade. Corresponsabilizando-me com actos e acções de defesa de mim próprio no ambiente de guerra em que estou inserido, no respeito e serviço aos outros que me rodeiam pela missão que me foi atribuída - enfermeiro. 

A oração não é para mim uma forma de negociar com Deus, com promessas a cumprir se... chegar ao fim da comissão escorreito, ou um pedir permanente a proteção, vendo Deus como que um guarda chuva protetor, esquecendo que esse mesmo Deus também o é de tantos, quantos do outro lado da barricada nos atacam ou se defendem.

Os povos que ousam fazer-nos frente, possivelmente também tem a “sua Fé”, os seus santos a quem se agarrar nos momentos difíceis, os amuletos que lhes vemos à cintura são a prova evidente. Também têm avós, pais,  esposas, namoradas. Algumas, na frente de guerra, combatem lado a lado, outras, na retaguarda, sofrem como as nossas mães, os nossos familiares.

PS - Sobre o fenómeno de Fátima, onde gosto de ir no silêncio, já escrevi o poste nº 1873 um pouco baseado neste, que já estava escrito há muito tempo. (**)

Creio que esta reflexão continua atual, pois muitas vezes deusifica-se a Virgem Maria e tenta-se "negociar" com ela a salvação na vida terrena com promessas de sacrifícios. Ouso colocar a questão: Quem é a mãe/pai que gosta de ver um filho a sofrer, mesmo que seja por "amor" ?

___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste d 11 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17347: Inquérito 'on line' (112): Fátima: num total preliminar de 20 respostas, cerca de 2/3 foi lá "como simples turista ou em passeio"... Prazo de resposta: dia 17, 4ª feira, até às 16h53

3 comentários:

Anónimo disse...

Zé: "Maria não é uma santinha a quem se recorre para obter favores a baixo custo" terá dito o Papa em Fátima... Isto vem ao encontro do teu pensamento... Mas nós aqui estamos proibidos de falar de Religião, Política e Futebol...

https://www.publico.pt/sociedade/noticia/ao-minuto-a-visita-do-papa-francisco-a-fatima-1771902


Gostava de publicar histórias e fotos de peregrinações de ex-combatentes, a Fátima, no tempo da "nossa" guerra... Luís Graça

José Teixeira disse...

Luís.
Sem dúvida que não se pode "meter" a religião no blogue, sobretudo a discussão religiosa. Creio que muitos dos combatentes eram "marianos" por educação, por tradição e por devoção. Não podemos esquecer que a religião tinha um peso elevado na família, nas povoações e até na escola. Eu continuo a não ver mal nisso, mas não creio que consigas testemunhos das peregrinações que se fizeram sobretudo por parte da família, muito em especial as mães de todos nós. Não te esqueças que Maria, mãe de Jesus sempre nos foi apresentada como a mãe do céu e...quando a crise, a dor ou a insegurança aparece recorre-se sempre à mãe (antes do pai.
Assisti por missão a vários feridos e mesmo, apenas, debaixo de combate, muitos deles faziam preces a Nossa Senhora. E o contrário também, ou seja, culpar Maria mãe de Jesus, do infortúnio.
Apenas uma achega.
Abraço.

Hélder Valério disse...

Caros amigos

A questão das "peregrinações" tem muito que se lhe diga.
É preciso distinguir a "peregrinação" da "romaria".
Claro que se percebe que para se vencer as distâncias pretendidas e percorrer os caminhos que se têm de fazer, seja a Fátima, neste caso, mas também a Compostela, Lourdes ou outros locais do "culto Mariano" (Compostela não é "mariano") é prudente, muito mais seguro, seguir em grupo e aí é quase inevitável a 'distracção'.
A "peregrinação" a um objectivo (local) é, sem sombra de dúvida, uma demonstração de força interior, de capacidade de sofrimento (afinal está-se a fazer uma coisa fora das nossas rotinas e sem o treino adequado o esforço é muito maior), em nome de uma 'qualquer coisa' que nos propusemos.
Mas, para além das intenções projectadas para o 'divino', a "peregrinação" é (deverá ser) muito mais 'interior', uma ocasião quase única para a introspecção, para o aprofundar do conhecimento do "eu", para a projecção das intenções do futuro, as próximas e as menos próximas.
Será (deverá ser) um "encontro connosco" tendo o divino como 'mediador', como catalizador.

O que o José Teixeira diz é bem verdade.
Não é aceitável que se "negoceie" em questões de religiosidade.
E é muito fácil 'descartar' para uma divindade as responsabilidades que nos devem ser assacadas.

Abraços
Hélder Sousa