"Gandembel foi a última posição avançada da Guiné que visitei durante a minha estadia nesta Província. Cheguei ali de helicóptero com o bispo de Madarsuma, Vigário Castrense das Forças Armadas, no dia de Natal. Recebeu-nos o comandante da sub-unidade, e, pouco depois comparecia também o governador e comandante chefe das Forças Armadas da Guiné. Assistimos à missa campal em ambiente de fervorosa fé. O prelado e o Governador partiram. Eu quis ficar. Era o meu adeus à guerra e queria portar-me com dignidade perante aqueles jovens soldados que me olhavam risonhamente, talvez comentando o facto de à nossa chegada (a do bispo de Madarsuma e a minha) ter sido festejada pelos 'turras' com algumas descargas de morteiro e de metralhadoras pesadas. Julgo até, que eles comentavam entre si o facto de os normais habitantes de certo abrigo me terem ali, quando estes entraram (…) ao explodirem as primeiras granadas. Eu pensava que 'gato escaldado de água fria tem medo ...' e tentava adivinhar a sensação do bispo de Madarsuma, que subitamente se sentiu agarrado por um braço no meio da parada e levado para o mesmo abrigo, onde eu já me encontrava"
Foto: © Idálio Reis (2007). Direitos reservados
1. Mensagem do Idálio Reis (*), ex-Alf Mil da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69), engenheiro agrónoma reformado, residente em Cantanhede:
ASSUNTO: Em Gandembel/Ponte Balana, apenas se celebrou um único Natal, precisamente há 40 anos (**).
Naquele plaino, qual clareira decorrente do derrube de uma pequena parte de uma verdejante e luxuriante floresta, para aí se sitiar um acampamento militar, pairava por aqueles dias uma certa acalmia. E esta morna tranquilidade, de todo não era usual.
E os silêncios circundantes, de tão esquisitos na sua serenidade, contribuíam paradoxalmente para uma ambiência de desconfiança, mais tensa e pesada, onde transparecia um agastamento que se tornava difícil intentar esbater.
O PAIGC vinha diminuindo gradativamente o seu fulgor belicista, no que provocava uma situação bonançosa inesperada. E esta alteração de comportamento não nos agradava sobremaneira.
Quem ousaria predizer as suas razões? Talvez nos quisesse brindar com um período de tréguas mais ou menos dilatado, ou então estivesse a urdir alguma estratégia ardilosa de forma a aproveitar uma melhor ocasião para desencadear um dos seus terríveis ataques.
Tínhamos porém, uma forçada e prolongada tarimba, para encarar cuidadamente tais situações, para o que bastava que o estado de alerta se mantivesse prudente e vigilante.
No início da semana de Natal, foi-nos dado a conhecer que o capelão-mor das Forças Armadas viria celebrar uma missa campal.
Os preparativos para esse dia não poderiam ser de grande monta, mercê das circunstâncias que nos eram impostas, mas houve a alegria bastante para se proceder a uma limpeza mais esmerada da pequena parada, que serviria de lugar de culto. Assim, numa quarta-feira, dia 25 de Dezembro, como habitualmente fomo-nos levantando aos primeiros raios do alvor. Era dia de Natal, e muito certamente o único que a Companhia passaria em Gandembel/Ponte Balana, e talvez mesmo em terras da Guiné, já que do tempo de comissão decorrido, tudo indiciava que a próxima Natividade seria passada no tão desejado aconchego familiar.
Bastante cedo, fomos procedendo às tarefas de rotina, e com um efectivo redobrado, seguimos até ao rio Balana buscar água; tudo haveria de correr de feição. O almoço, haveria de ser mais avantajado e suculento, já que tínhamos recebido determinados víveres que deram azo a que a ementa fosse das melhores que durante esta longa estada nos fora proporcionado.
E ao princípio da tarde, vestidos a preceito (onde a camisa era indumentária de gala), esperámos o séquito que haveria de vir ao nosso encontro. E pouco tempo passado, irrompiam nos ares do horizonte, um conjunto de helicópteros, que aterravam celeremente no centro de Gandembel, donde iam saindo diversas personalidades. E logo, aquelas singulares máquinas alares - as únicas que nos puderam tantas e tantas vezes socorrer-, levantavam.
Recordo os que pisaram este chão térreo: uma comitiva do Movimento Nacional Feminino, onde pontificava a sua Presidente, D. Ana Supico Pinto; presbíteros liderados pelo Bispo de Madarsuma; o Comandante-Chefe António de Spínola com alguns militares do seu Estado Maior; um jornalista do Diário Popular.
A Companhia postou-se junto a uma das casernas-abrigo e aprestou-se a dar as boas-vindas. Em silêncio (não em sentido), Spínola aproximou-se de nós e durante alguns momentos fitou-nos de frente [apresentava um fácies de olhar lânguido] e profere uma alocução muito breve em que abordando o tema do Natal, deu particular ênfase aos conceitos de Deus, Pátria e Família. Muito seguramente já havia tomado a decisão pela evacuação daquele aquartelamento, mas nada exteriorizou. De todo o modo, julgo que ao findar as suas palavras, parece ter-lhe perpassado um frémito de emoção, e repentinamente manda descer o seu helicóptero e segue um outro caminho, porventura menos ínvio e liberto que este.
As senhoras do MNF, em atitude bastante contida, simpaticamente fizeram uma pequena oferta a cada um de nós. O Natal de 1968 também nos obsequiara com o maior número de mulheres que Gandembel jamais tivera oportunidade de agregar, e ”nas conversas de caserna” referia-se que talvez fosse a maior prenda que o Pai Natal nos aportara.
Também se retiraram rapidamente.
Ficavam os membros do Clero, para a concelebração da missa. Um altar improvisado e uma Companhia em que a maioria dos seus homens eram católicos praticantes, sentida e contemplativamente ouvem e rezam em murmúrio dolente e fervoroso.
Mas, mal a missa acabou, começam a detonar uma série de granadas de morteiro 82, lançadas junto à fronteira. O bispo e seus acólitos ficam atónitos ante tal quadro e num relance meia dúzia de soldados vão em seu socorro, pegam-lhes nos braços e conduzem-nos para uma das casernas-abrigo. Passaram-se cerca de 10 minutos, terminam as deflagrações, e o helicóptero que devia estar em Aldeia Formosa é chamado, e os membros da Cúria também seguirão outros destinos.
Restou ente nós, o jornalista do extinto Diário Popular, que haveria de escrever um belo artigo sobre a guerra de Gandembel/Ponte Balana, e que o Blogue já o divulgou na sua quase generalidade.
O Sol, entretanto começa a empalidecer, e como havia conhecimento que no dia seguinte viria um helicóptero, cada um reconheceu que era o momento ideal para se escreverem algumas letras de saudade.
E a vida, felizmente para a maioria de nós, foi continuando. Em Gandembel/Ponte Balana, um Natal único, muito provavelmente o aquartelamento com um efectivo de Companhia, de todas as Províncias, em que se celebrou uma só vez.
E o tempo de hoje, vai-nos devorando, quando procuramos tactear as sensibilidades daquele dia ou de um qualquer outro similar.
Há recordações imorredouras…!
A toda a Tertúlia e seus familiares, veementes desejos de Boas-Festas.
Um forte abraço do Idálio Reis (***).
____________
Notas de L.G.:
(*) Vd.poste de 4 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3404: Recortes de imprensa (9): Em Gandembel - O adeus à Guerra (José Teixeira/César da Silva)
(**) Vd. últimpo poste da série O Meu Natal no Mato > 21 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3660: O meu Natal no mato (18): Olossato, 1966 (Rui Silva)
Vd.postes anteriores:
20 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3654: O meu Natal no mato (17): Cufar, 1973, o Cantanhez a ferro e fogo (António Graça de Abreu)
18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3550: O meu Natal no Mato (16): Os meus Natais na Guiné (Luís Dias)
16 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3636: O meu Natal no mato (15): Salsichas com arroz na messe de Sargentos, na Consoada de 1968... (Jorge Teixeira)
12 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3609: O meu Natal no mato (14): Numa tabanca fula em autodefesa (Torcato Mendonça)
11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3597: O meu Natal no mato (13): De Cutia (1970) ao CAOP1, em Teixeira Pinto (1971) (Jorge Picado, ex-Cap Mil)
24 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2379: O meu Natal no mato (12): Mansoa, 1971: Uma de caixão à cova... para esquecer o horror (Germano Santos)
24 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2378: O meu Natal no mato (11): Saltinho, 1972: O melhor bolo rei que comi até hoje, o da avó Clementina (Paulo Santiago)
22 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2374: O meu Natal no mato (10): Bissau, 1968: Nosso Cabo, não, meu alferes, sou o Marco Paulo (Hugo Guerra)
22 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2373: O meu Natal no mato (9): Embarquei no N/M Niassa a 21 de Dezembro de 1971... Que maldade! (João Lima Rodrigues)
21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - 2372: O meu Natal no mato (8): Bissorã, 1964 (João Parreira, CART 730)
21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2370: O meu Natal no mato (7): Destacamento do Rio Udunduma, 1969, Pel Caç Nat 52 (Beja Santos)
19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2366: O meu Natal no Mato (6): Peluda, 1969: a Fátria, Manel (Torcato Mendonça)
19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2364: O meu Natal no mato (5): Mato Cão, 1972: Com calor, muito calor, e longe, muito longe do meu clã (Joaquim Mexia Alves)
18 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2361: O meu Natal no mato (4): Cachil, 1966: A morte do Condeço e do Boneca, CCAÇ 1423 (Hugo Moura Ferreira / Guimarães do Carmo )
17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2357: O meu Natal no mato (3): Banjara, 1965 e 1966: um sítio aonde não chegavam as senhoras da Cruz Vermelha (Fernando Chapouto)
17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2356: O meu Natal no mato (2): Bissorã, 1973: O Milagre (Henrique Cerqueira, CCAÇ 13)
16 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2355: O meu Natal no mato (1): Jumbembem, 1965: Os homens às vezes também choram... (Artur Conceição)
Ficavam os membros do Clero, para a concelebração da missa. Um altar improvisado e uma Companhia em que a maioria dos seus homens eram católicos praticantes, sentida e contemplativamente ouvem e rezam em murmúrio dolente e fervoroso.
Mas, mal a missa acabou, começam a detonar uma série de granadas de morteiro 82, lançadas junto à fronteira. O bispo e seus acólitos ficam atónitos ante tal quadro e num relance meia dúzia de soldados vão em seu socorro, pegam-lhes nos braços e conduzem-nos para uma das casernas-abrigo. Passaram-se cerca de 10 minutos, terminam as deflagrações, e o helicóptero que devia estar em Aldeia Formosa é chamado, e os membros da Cúria também seguirão outros destinos.
Restou ente nós, o jornalista do extinto Diário Popular, que haveria de escrever um belo artigo sobre a guerra de Gandembel/Ponte Balana, e que o Blogue já o divulgou na sua quase generalidade.
O Sol, entretanto começa a empalidecer, e como havia conhecimento que no dia seguinte viria um helicóptero, cada um reconheceu que era o momento ideal para se escreverem algumas letras de saudade.
E a vida, felizmente para a maioria de nós, foi continuando. Em Gandembel/Ponte Balana, um Natal único, muito provavelmente o aquartelamento com um efectivo de Companhia, de todas as Províncias, em que se celebrou uma só vez.
E o tempo de hoje, vai-nos devorando, quando procuramos tactear as sensibilidades daquele dia ou de um qualquer outro similar.
Há recordações imorredouras…!
A toda a Tertúlia e seus familiares, veementes desejos de Boas-Festas.
Um forte abraço do Idálio Reis (***).
____________
Notas de L.G.:
(*) Vd.poste de 4 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3404: Recortes de imprensa (9): Em Gandembel - O adeus à Guerra (José Teixeira/César da Silva)
(**) Vd. últimpo poste da série O Meu Natal no Mato > 21 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3660: O meu Natal no mato (18): Olossato, 1966 (Rui Silva)
Vd.postes anteriores:
20 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3654: O meu Natal no mato (17): Cufar, 1973, o Cantanhez a ferro e fogo (António Graça de Abreu)
18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3550: O meu Natal no Mato (16): Os meus Natais na Guiné (Luís Dias)
16 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3636: O meu Natal no mato (15): Salsichas com arroz na messe de Sargentos, na Consoada de 1968... (Jorge Teixeira)
12 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3609: O meu Natal no mato (14): Numa tabanca fula em autodefesa (Torcato Mendonça)
11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3597: O meu Natal no mato (13): De Cutia (1970) ao CAOP1, em Teixeira Pinto (1971) (Jorge Picado, ex-Cap Mil)
24 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2379: O meu Natal no mato (12): Mansoa, 1971: Uma de caixão à cova... para esquecer o horror (Germano Santos)
24 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2378: O meu Natal no mato (11): Saltinho, 1972: O melhor bolo rei que comi até hoje, o da avó Clementina (Paulo Santiago)
22 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2374: O meu Natal no mato (10): Bissau, 1968: Nosso Cabo, não, meu alferes, sou o Marco Paulo (Hugo Guerra)
22 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2373: O meu Natal no mato (9): Embarquei no N/M Niassa a 21 de Dezembro de 1971... Que maldade! (João Lima Rodrigues)
21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - 2372: O meu Natal no mato (8): Bissorã, 1964 (João Parreira, CART 730)
21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2370: O meu Natal no mato (7): Destacamento do Rio Udunduma, 1969, Pel Caç Nat 52 (Beja Santos)
19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2366: O meu Natal no Mato (6): Peluda, 1969: a Fátria, Manel (Torcato Mendonça)
19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2364: O meu Natal no mato (5): Mato Cão, 1972: Com calor, muito calor, e longe, muito longe do meu clã (Joaquim Mexia Alves)
18 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2361: O meu Natal no mato (4): Cachil, 1966: A morte do Condeço e do Boneca, CCAÇ 1423 (Hugo Moura Ferreira / Guimarães do Carmo )
17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2357: O meu Natal no mato (3): Banjara, 1965 e 1966: um sítio aonde não chegavam as senhoras da Cruz Vermelha (Fernando Chapouto)
17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2356: O meu Natal no mato (2): Bissorã, 1973: O Milagre (Henrique Cerqueira, CCAÇ 13)
16 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2355: O meu Natal no mato (1): Jumbembem, 1965: Os homens às vezes também choram... (Artur Conceição)
(***) Vd. poste de 19 de Julho de 2007 Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (9): Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques
1 comentário:
Caro Reis, consta na minha caderneta de voo que fui duas vezes a Gandembel no dia 24 de Dezembro de 68. Quando a "vontade" mo permitir enviarei a foto da pag referida.
Um Santo Natal. ..
No mesmo ano, sendo piriquito, tive que falar para a RTP, fazendo a típica mensagem. Como não queria aparecer usei um estratagema com o seguinte dito: "Um beijo para os meus Pais e um 69 em grande para os meus amigos". Garantiram-me que com estas palavras a minha mensagem não passaria. Era o que eu pretendia. Aconteceu que esta mensagem foi para o ar e na altura foi uma "barraca dos diabos".
A tua missa recordou-me a minha mensagem.
Um bom Natal e um 09 com muita saúde
Jorge Félix
Enviar um comentário