terça-feira, 7 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25491: Estórias do Zé Teixeira (62): O “Diário” do José Cuidado da Silva (1) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

O Diário de José Cuidado da Silva

1. Em mensagem enviada ao Blog no dia 3 de Maio de 2024, o nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) fala-nos de José Cuidado da Silva, um militar, como muitos outros que todos conhecemos, inadaptado à dura vida em campanha que lhe deixou marcas psicológicas para toda a vida. Só muito recentemente, há dois anos, deu a conhecer ao "seu furriel" Samouco, um diário que escreveu durante a comissão, que manteve em segredo até então.


O “Diário” do José Cuidado da Silva

O “Diário” em verso e em prosa, do meu camarada Maioral (CCAÇ 2381), José Cuidado da Silva, foi o que mais me comoveu e mais gozo me deu a ler e a transcrever para que os camaradas que passaram pela guerra do ultramar, possam apreciar.

Comecemos por descobrir o José Cuidado da Silva. Apareceu na Companhia, já esta estava a preparar-se para partir para a Guiné. Foi parar ao terceiro pelotão e acolhido na equipa do Furriel José Manuel Samouco. Este, começou por perguntar-lhe o nome, de onde vinha e qual a profissão. O pobre do José, aparentemente um simplório, na forma de se apresentar e de falar, disse-lhe que era “cortador de calipos”. Que bela profissão pensou o Furriel e disse estás apresentado. Logo pela aragem viu que era mais um, uma figura típica como soe dizer-se, que tinha de acompanhar de perto e… de “proteger”.
O José Cuidado da Silva

Eu, que fui uma das últimas peças a “encaixar” na Companhia, só me apercebi do José Silva em Ingoré. Aparentemente muito ingénuo, mas bem-educado e respeitador. Eu era “o nosso cabo enfermeiro” tratado por você, a quem foi pedir comprimidos para dores de cabeça. Só muito mais tarde, já em Buba, voltamos ao convívio, quando me juntei ao grosso da Companhia e nos aproximamos nas saídas para a estrada e colunas. A sua forma de se expressar em voz alta escondia um jovem sensível, educado, que pensava, mas não expressava o seu pensamento. Muito disponível e cumpridor de ordens, segundo afirma o Furriel J. M. Samouco. Um militar que nunca deu problemas, mas era marcadamente uma “peça” típica pela forma “atabalhoada” de falar e sujeita a ser gozada pelos camaradas, pelo que precisava de especial atenção.
O Alferes Magro e o Furriel Samouco, ao centro da foto, ladeados por praças do 3.º Pelotão. À direita o Zé da Silva
Da esquerda para a direita: O "Calhordas", o Furriel José Manuel Silva,  Furriel José Manuel Samouco e o Zé da Silva, como era conhecido o nosso herói.

Acabada a Comissão, o José Cuidado da Silva, regressou a Rio Maior, organizou a sua vida, casou e da união nasceu um rapaz.

Em 2016, após alguns anos de batalha, por parte de alguns de nós, foi possível que uma Junta Médica o classificasse como doente psíquico, com stresse pós-traumático de guerra, e assim, aumentar a sua reforma mensal em perto de 500€, para além do acesso ao Hospital Militar. Um bónus bem merecido para uma vítima de uma guerra cujos mentores, até atrasados mentais classificavam como aptos e enviavam para a frente de batalha. Tenho provas disso, num outro camarada – O José Salvaterra, já falecido, que ao atraso mental, agregava uma deficiência físico-motor.

Em 1990, O José Silva foi um dos primeiros a apresentar-se ao toque de clarim que lancei, para iniciarmos os convívios anuais. Logo no primeiro convívio, apresentou-se na sua motorizada, ele, a mulher e o filho. Fizeram a viagem de Rio Maior a Coimbra. Infelizmente, o filho tem um grau de deficiência mental elevada, mas durante uns anos seguidos, lá vinham os três na motorizada.

A esposa, que é uma mulher, tão simples quanto ele, mas de garra apurada, e muito trabalhadeira, sempre fez questão de vir, e o Zé lá vinha, e ainda vem. Nunca falhou. Ela até conseguiu tirar a carta e juntar dinheiro para comprar um carrito (diz ela) para vir à festa dos Maiorais. O filho, esse teve de ser internado num Lar.

Infelizmente, a esposa, sofreu um acidente e partiu o perónio há mais de um ano. A recuperação não está a correr bem e ela tem muita dificuldade em se deslocar, mesmo com duas canadianas, mas, dizia-me há dias, que já consegue conduzir e não ia faltar ao Convívio que se realizou no passado dia 13 de abril. Foi um dos primeiros casais a aparecer naquela manhã de sábado, onde juntamos oitenta pessoas entre combatentes e familiares. Mulher sorridente, resistente, é ela que motiva o Zé.
Convívio de 2024, em Fátima. O José Cuidado da Silva à mesa com o Acácio

Há dois anos, o Jose Cuidado da Silva, entregou ao “meu furriel” Samouco, como ainda o chama, um tesouro. É verdade, um tesouro. O seu “Diário de guerra” escrito em verso e prosa, durante a sua estadia na Guiné e guardado, anos e anos.

Escrito num português simples por uma pessoa simples, conforme foi sendo vivido. Reflete um jovem ligado à sua família e bem-querido na sua terra. Um homem atento ao que o rodeava e seguro de si. Um homem que viveu como todos nós o drama da separação da família, a ansiedade de partir para o desconhecido, que não se envergonha de ter chorado, quando entrou no Niassa. Que conta pormenores do seu sofrimento com uma agudeza de espírito. Uma autêntica lição de vida. Não desce a pormenores, nem regista todos os momentos em que se cruzou com o inimigo. Talvez tenha registado apenas os que mais o marcaram.

Termina escrevendo: Quero ir embora para matar saudades, que há tanto tempo me encontro ausente. Agora quero ir embora abraçar os meus pais.

É esse diário que apresento aos estimados camaradas, leitores do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.

José Teixeira


********************

História da minha vida militar em verso

José Cuidado da Silva

Assentei praça em Viseu
No dia 24 de outubro (e não em abril),
Na parada superior
Nós eramos mais de mil.

Recebi a farda inteira
Para vestir naquele dia,
As calças eram grandes,
O blusão não me servia.

Tocou para o almoço,
Para a formatura fui então,
Quando entrei no refeitório
Só havia massa e feijão.

Na maior força de Inverno
Esta semana passou,
Só vos tenho a dizer,
Que muito mesmo me custou.

E assim passou a recruta,
(Numa grande bandalheira),
E quando tudo acabou
A continência fiz, à bandeira.

Estive por ali mais uns dias,
E o que aconteceu depois,
Voltei a fazer as trouxas
E fui parar ao R.I.2

Quando ao R.I.2 cheguei,
Cansado de caminhar,
Para aquelas paradas olhei,
E deu-me vontade de chorar.

Quando lá dentro entrei
Chegou-me uma grande saudade,
Da casinha que deixei,
Tão longe daquela unidade.

Lá do alto do quartel
Ouviu-se cantar o fado,
Mas logo para meu azar
De lá fui mobilizado.

Fui transferido para Abrantes,
Terra ribatejana,
Para tirar o IAO,
Logo na mesma semana.

Fui com a mochila às costas
Cinco horas a caminhar,
Já tão longe da cidade
A um deserto fui parar.

Quinze dias lá acampado
No meio de pinheirais,
E aqui fomos tratados
Como se fossemos animais.

Quando cheguei ao quartel,
Para me recompensar,
Deram-me o fim de semana
Para ir até casa gozar.

Quando ao quartel voltei,
Disse-me o capitão,
Vai gozar vinte e dois dias,
Que são da mobilização.

Logo apanhei o comboio
Para a casa regressar,
E assim que lá cheguei
Minha mãe fui abraçar.

Passei lá os vinte e dois dias
Dos melhores da minha vida,
A seguir veio a tristeza
Da hora da despedida

Deixei meu pai e minha mãe,
Toda a família a chorar,
Deixei todo o meu bem,
E lá fui parar ao Ultramar.

Quando de casa eu saí,
E a despedir-me dos meus,
Muita gentinha eu vi
A chorar, dizer-me adeus.

Quando cheguei a Lisboa
Senti minha alma gritar,
Entrei para dentro do Niassa
E comecei a chorar.

Às doze horas e cinco
O Niassa deu a partida,
Tanta gentinha a chorar
Pela nossa despedida.

Quando a Bissau cheguei
Já não aguentava em pé,
Embarquei numa LDG
E fui parar a Ingoré.

Quando a Ingoré cheguei,
Triste, me pus a pensar,
Minha família deixei
E para a selva, vim parar.

Setenta dias lá estive,
Era um lugar sossegado,
Fui transferido para o sul
Onde fui um desgraçado.

Quando a Buba cheguei,
A três dias de lá estar,
Apareceram por lá os turras
Para o quartel atacar.

Estive lá quase um mês,
Sabe Deus a minha dor,
E logo para meu azar
Fui para o sítio pior.

Mudei para Aldeia Formosa
Onde era sempre atacada,
Dia sim e dia não,
À canhonada e morteirada.

Tantas colunas eu fiz,
Patrulhas e operações,
Muitas vezes rastejei
Quando ouvia os canhões.

Por vezes de madrugada
Estava eu, a dormir,
E ouvia as canhonadas
Perto de mim a cair.

Levantava-me em cuecas
Mesmo sem alguém mandar,
E com a G3 na mão
Numa vala me ia deitar.

Triste vida eu passei.
Fui homem de pouca sorte,
Tive dias que cheguei
A pedir a Deus, a morte.

Depois voltamos para Buba,
A malta andava arrebentada,
E ainda por cima nos disseram,
Que íamos parar à estrada.

Então andávamos na estrada,
Fartos de cansaço e porrada,
Uns tempos depois nos disseram
Que íamos parar a Empada.

José Cuidado da Silva

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 10 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24938: Estórias do Zé Teixeira (61): Crónica de uma tarde, em sábado de Festas Natalícias (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O Zé, vamos criar uma série para o teu camarada. Tens cópia do original ? Estás autorizado a divulgá-lo ? Queres ser tu a apadrinhar a sua entrada na Tabanca Grande ?... Tu ou o Samouco, meu vizinho, que de vez em quando encontro na Praia da Areia Branca. Um alfabravo, Luís

Alberto Branquinho disse...


Zé Teixeira,

Uma beleza! Comovente.
Dá um abraço por mim ao José Cuidado da Silva. Com quem (sente-se) não há que ter "cuidado" nenhum.

Um abraço pata ti

José Teixeira disse...

Luís.
Apadrinho com todo o gosto a entrada do Zé Silva. Ele é a prova provada de toda a gente servia de carne para canhão. Felizmente foi integrado num grupo de combate em que o seu responsável direto, soube acolher e proteger, mas não era o único. Em contabilizo mais dois, um dos quais, como escrevo acima - O Salvaterra - além de deficiente mental, era deficiente físico. A andar parecia que estava alcoolizado e não dizia coisa com coisa. Era um pobre diabo que se arrastava pela tabanca, em Mampatá, sem ter qualquer tarefa e não incomodava ninguém. Como foi possível a equipa médica da inspeção, o comandante da recruta, o Capitão da Compª e outros responsáveis da Unidade, deixar que aquele desgraçado fosse para a guerra? Felizmente os camaradas protegiam-no e trouxemo-lo de volta. Soube que a parte física foi-se atrofiando e morreu pouco depois de regressar.
O nosso José Cuidado da Silva encontrou uma mulher, como ele, mas de armas. Totalmente dedicada ao Zé, continua a cuidar dele com todo o carinho, e como sabe da dedicação que ele tem aos camaradas, é ela que faz das tripas coração e todos os anos o traz ao convívio.
Merece a minha mais profunda admiração.
Alberto Branquinho. Darei com muito gosto um abraço por ti ao Zé, ele merece pela sua coragem e força para viver.
Abraços
Zé teixeira


Tabanca Grande Luís Graça disse...

Apoiado, Zé. Fica o Silva apresentado aos camaradas e amigos da Guiné. Leia-se a segunda parte, do seu diário, que é, sem favor, um peça de antologia. Está muito do nosso "ADN" como povo...

O Silva é bem o nosso Zé Povinho, ou filho do Zé Povinho. Mas já percebi, pelo que mecontas, que ele é da "estremenho", como eu, é do Oeste, da Estremadura, é de Rio Maior... Ora aqui o povo tinha/tem a tendência para fazer a economia do palavriado, por redução ou abreviação: calipto / eucalipto, priga / rapariga, comprativa / cooperativa, trabeclose / tuberculose, broa / boroa, arraia / raia, aquase / quase, charro / chicharro, Lis Manel / Luís Manuel (era assim que o meu pai me tratava...).