sábado, 11 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25508: Os nossos seres, saberes e lazeres (628): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (153): Lembranças de Manuel de Brito e da Galeria 111 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Há razões muito sérias que me levam a prolongar esta viagem encantatória por um lugar que frequentei com grande insistência décadas a fio, primeiro a Livraria e um livreiro afável e pedagogo, ali expunha-se um admirável mundo de livros de ideias, da moderna literatura, naquele tempo a língua francesa tinha grande peso, mas os alunos de Germânicas eram grandes frequentadores à procura de cinema, teatro, romance, ensaio, política; depois abriu-se uma sala ao lado, era a inolvidável surpresa de vermos nas paredes gente de que nunca tínhamos ouvido falar, e apareciam velhos mestres ou artistas consagrados, conversava-se em grupos e havia aquele espanto de tanto se poder escutar Adriano Correia de Oliveira como Bach. Pelo adiante, o espaço cresceu, e agora qualquer um de nós pode ir conhecer a história da 111 por 60 anos de vida, como cresceu, como aquela coleção de Manuel de Brito é uma referência reconhecer o que mais de singular se produziu na segunda metade do século XX, até à atualidade, e a participação de artistas estrangeiros é muito mais do que interessante. Até à próxima.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (153):
Lembranças de Manuel de Brito e da Galeria 111 - 3


Mário Beja Santos

Terá sido à volta de 1966, já decorriam as exposições de novíssimos artistas na sala ligada à Livraria 111, seria um princípio de tarde, ouvia-se um dos concertos de brandeburgueses de Bach, bem sentado, deu-me para pensar por onde andara a minha iniciação estética. Frequentava semanalmente a casa dos meus padrinhos, ali pendurava-se pelas paredes Dordio Gomes, Simão da Veiga, Veloso Salgado, Túlio Vitorino, Maria Adelaide Lima Cruz e até exposto numa vitrina um desenho que Almada Negreiros fizera durante uma lição de desenho ao meu padrinho. Tudo arte figurativa, neoacademismo, naturalismo, modernismo em várias gerações. Fizera-me, anos antes, sócio de uma cooperativa, Gravura, dava-se uma ninharia trimestralmente, ao fim de um ano tinha-se direito a uma gravura, no primeiro ano coube-me Mulher reclinada, de Júlio Pomar, foi prenda de casamento para um amigo. Hoje, quando leio que foram os anos 1960 os de rutura, tenho sérias dúvidas, quando vejo Querubim Lapa, Vespeira, Pomar, Vieira da Silva, Nadir Afonso, Cruzeiro Seixas, Sena da Silva, Carlos Calvete, Nikias, António Areal, entre outros.

Mas será na 111 que irei ter acesso a uma nova dimensão da modernidade, logo Paula Rego, Eduardo Batarda, Costa Pinheiro, Joaquim Bravo, Lourdes Castro, Palolo, Noronha da Costa. Aquilo que os críticos irão chamar as novas linguagens, quanto a ruturas radicais, torço o nariz, há processos de continuidade, vincam-se novas tendências para além do neorrealismo já em vias de abandono, mas ainda o pujante surrealismo, há um conjunto de artistas no estrangeiro, surge a simpatia pelo pop, o minimalismo, a arte gótica, uma transfiguração do expressionismo, sinais do gestualismo, a plenitude da arte abstrata, o desafio das relações entre a pintura e a escrita, criando-se uma pintura caligráfica, aparece o acrílico, os objetos de arte, as pinturas-objeto de Helena Almeida. Tive essa escola, comecei a visitar exposições noutras galerias, mantive-me sócio da Gravura. Fui à guerra e volto à 111 no outono de 1970, senti um choque, as artes plásticas galgavam para novos horizontes, eu vinha do horror e da brutalidade, de patrulhas de flagelações, de golpes de mão, dos meus mortos e dos meus feridos, aqui o mundo seguia noutras direções, manifestamente indiferente às guerras de África. Mas a 111 foi um espaço de readaptação e reequilíbrio, a par da vida familiar, da retoma dos estudos, muita da arte que vou ver ao longo dos anos 1970, antes e depois do 25 de Abril, ajudou-me a ser quem sou hoje. Por isso, a minha dívida para com a 111 é impagável, a solicitude do Manuel de Brito que a todos atendia tão afavelmente, sem nunca ter em conta o poder de compra do cliente próspero ou dos estudantes e o seu viver magro, honra lhe seja sempre feita como galerista que só ansiava por ver multiplicada a arte que aqui se expunha.

E, por isso, vou andando às voltas, em dança e contradança, recordando o que vi ao tempo ou que acabo de conhecer de novas gerações. E a visita continua.

Centro de Arte Manuel de Brito, imagem não atual, Campo Grande, 113A
Golden Girl, por Adriana Molder
Carlos Botelho, Place du Tertre
Foi livraria, já não é, mas continua a ser um recanto de que se gosta de bisbilhotar
Carlos Correia, sem título
Joana Fervença, Unfairtrade
Bartolomeu dos Santos, A Palmeira do Chile – eu em Algés em 1934
Bengt Lindström, Regard D’Ailleurs
Júlio Pomar, Os Mascarados de Pirenópolis
Eduardo Batarda, El instante meaning
Arpad Szenes, Le Couple

(continua)
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Nota do editor

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