1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2022:
Queridos amigos,
Lê-se sempre esta joia e descobre-se mais um ângulo iridescente, este feliz acaso de escrever uma fábula que é capaz de iluminar o mundo pela inocência de uma criança que se transforma num estafeta da guerra, mas sempre sem perder de vista que soterrou a sua tão querida bicicleta, uma amizade inquebrantável. Aquela guerra de horrores inenarráveis não lhe subtraiu a alegria do sonho, o desejo de partilhar a felicidade com a malta fixe de Porto dos Batuquinhos, se bem que todos ficassem muito mais crescidos depois de tanto ódio e tanta destruição, danos incalculáveis na sua formação. E termina a fábula porque o sonho vai ser reavivado, tudo termina como numa ode triunfal: "Quando se sentou no selim sentiu-se de novo dono do mundo. E os dois pedalaram para a eternindade".
Um abraço do
Mário
Não há tesouro literário como este na Guiné-Bissau: uma criança, uma guerra, uma bicicleta
Mário Beja Santos
Custa-me entender como esta obra não conhece reedição, em Portugal ou na Guiné-Bissau, não é um conto para crianças, embora o herói seja um jovem que se vê envolvido naquele pesadelo do conflito político-militar de 1998-1999, é uma fábula a quatro mãos, um escritor prodigioso e um desenhador exímio, Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira. Como escreve José Vegar na nota introdutória desta crónica de guerra para leitura dos adultos, o que aqui preside é uma luminosidade própria de crianças, a geografia e o tempo são brutalmente reais e ali o menino consegue manter vivo o seu mundo, a sua carga afetiva é uma lição para a humanidade.
O discurso encantatório enleia-nos naquela história que começa num domingo, dia de missa e futebol, de carne ao almoço e tolerância de ponto ao acordar, mas nesse dia explodiu uma guerra. Se é fábula, temos que saber se é de opulências ou de agruras redentoras, o melhor é começarmos por conhecer a família Sissé que vive em Porto dos Batuquinhos, na margem de um rio que a seca engoliu: “Vivia numa casa com paredes de cartão, telhados de colmo, alcatifa de terra batida. As camas eram esteiras que, enroladas durante o dia, serviam de cadeiras. A cozinha, bem no centro da palhota, não passava de meia dúzia de pedras calcinadas dispostas em círculo, a casa de banho, um buraco aberto no quintal. A única mobília era um calendário de Nossa Senhora de Fátima que a madrinha de Hussi ofereceu à mãe no dia do seu nascimento.” O pai de Hussi chama-se Abdelei Sissé, vai partir para a guerra ao lado do brigadeiro Raio de Sol. A mãe é dona Geca, e há três irmãos, todos mais novos do que ele. Ora, naquele dia de futebol em que o senhor do apito era o dito brigadeiro, primou pela ausência. Acontece que o brigadeiro se saturou das prepotências do comandante Trovão, o tirano da terra, juntou os veteranos na guerra colonial e partiram todos para a Guerra do Balão.
O pai Abedelei ordena à família que regressem à aldeia dos antepassados, logo se pôs a questão da bicicleta, descobrimos que Hussi tem uma bicicleta que fala, ele sossega a bicicleta que tem medo, enterra-a, prometendo que logo a guerra acabe a irá buscar. Lá se põem todos a caminho, as saudades da bicicleta são imensas, Hussi vai fugir, apresenta-se ao pai, este furioso, enfim, Hussi vai intervir no confronto. “Transportou armas e munições para a linha da frente, fez de pombo-correio, foi ajudante de cozinheiro. Aprendeu a cozinhar arroz de todas as maneiras e feitios, mas durante quase um ano o prato principal foi uma mão-cheia de nada. Não matou mas viu morrer. Conviveu com o cheiro nauseabundo dos cadáveres em decomposição, partilhou o dia-a-dia de combatentes com nomes estranhos como Capacete de Ferro ou Rambo das Facas, assistiu ao espetáculo dos abutres a depenicarem restos de corpos de mercenários estrangeiros, tropeçou em esqueletos de soldados que não tiveram direito a última morada. Caminhou entre os horrores de uma guerra fratricida com a mesma inocência com que antes pedalava na sua bicicleta pelas ruas da cidade de asfalto.”
E assim se arrastou a Guerra do Balão. O comandante Trovão acreditava que aquela guerra eram favas contadas, todos aqueles sublevados iam ser atirados à água, no seu círculo de cortesãos mentia-se sobre a realidade da guerra, houve mesmo quem se atrevesse a dizer que estavam empatados, o chefe de Estado-Maior deu explicações: “Nós controlamos a cidade do asfalto, o inimigo a cidade de terra. Quando conquistamos uma alfeia do litoral, eles tomam logo conta de uma no interior. Mandamos no mar, eles no rio. A frente norte é nossa, a leste é deles”. A fúria do comandante Trovão não tinha medida, fulminou o chefe de Estado-Maior com um tiro de pistola. Como tudo é fábula, não faltam bruxos, profecias, fala-se mesmo numa bicicleta que ajuda muito a causa dos sublevados, o comandante Trovão dá mesmo essa ordem, é preciso destruir tal bicicleta, pôr termo ao feitiço.
Até que num domingo, as forças do brigadeiro Raio de Sol fizeram um assalto ao Palácio, Trovão teve que fugir, Hussi assistiu ao fogo-de-artifício da artilharia, viu o Palácio ser pilhado, livros queimados, saqueado, o menino anda eufórico pela cidade, ele é a mascote dos revoltosos, a guerra de Hussi ainda não terminou, tem que pôr a sua bicicleta em funcionamento, o coração aperta-se quando ele vê a casa destruída. Teve uma visão, o talismã que colocara sobre as cinzas para proteger a bicicleta na altura da fuga deu-lhe o sinal onde devia cavar, não há mais belo reencontro neste arremedo de literatura infantojuvenil para gente que padeceu de uma guerra sanguinolenta, que deixou brechas ainda hoje por colmatar como este, Hussi vai cavando as entranhas da terra e conversa com a sua bem-amada bicicleta, emocionam-se, a bicicleta sempre soube que Hussi iria voltar.
E o final desta magia ou desta pérola da literatura luso-guineense é mesmo assim:
“Hussi e a sua bicicleta ainda tinham muito para falar. Era toda a conversa de uma guerra para pôr em dia. Havia algumas coisas boas mas sobretudo muito más para partilhar. À luz do dia, olhos nos olhos, sem transmissão de pensamento. Hussi limpou o retrovisor com o seu velho lenço amarelado, sacudiu o pó que asfixiava o cachecol do Barcelona, colocou a fitinha tricolor do outro lado do guião, ajustou os pedais com a sola das sandálias. Quando se sentou no selim sentiu-se de novo dono do mundo. E os dois pedalaram para a eternidade.”
Dizem os autores que Hussi existe, nasceu em Bissau, de uma família pobre e tem três irmãos, andará hoje pela casa dos 35/36 anos. Insisto que não entendo como é que esta lição de vida, esta inocência tão resiliente não anda na boca do mundo, como fábula e como monumento literário. Coisas do destino – será?
Pedro Sousa Pereira e Jorge Araújo
Fotografia de João Francisco Vilhena no semanário “O Independente”, maio de 1999
_____________Nota do editor
Último post da série de 3 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25474: Notas de leitura (1688): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (1) (Mário Beja Santos)
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