sábado, 9 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20328: Meu pai, meu velho, meu camarada (59): "Maria Bárbara, canta mais uma morna... / S’nhôr Tenente, ‘m câ pôdê cantá más... Uma morna imortal, numa homenagem à Morna, em vias de ser oficialmente consagrada como "património cultural imaterial da humanidade"



Com a devida vénia, da página do Facebook do Instituto do Património Cultural da República de Cabo Verde.


1. Lê-se na ONU News, com data de anteontem, dia 7

"A morna de Cabo Verde deu mais um passo no processo de inscrição para o Patrimônio Imaterial da Humanidade da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, Unesco. Nesta quinta-feira, o Comitê de Avaliação do Patrimônio Cultural aceitou a inscrição do gênero musical, mas a decisão final será ratificada, em dezembro, pela Unesco, durante reunião na Colômbia."

O dia foi de grande júbilo  para todos os cabo-verdianos, dentro e fora da Pátria, e naturalmente para os amigos de Cabo-Verde e da sua música, em geral, e da morna, em particular,

Falando à ONU News, da cidade da Praia, Sandra Mascarenhas, diretora do Instituto do Património Cultural, "explicou o impacto da decisão para o povo em Cabo Verde e nas diásporas cabo-verdianas pelo mundo":

“A inscrição da morna na lista representativa da Unesco representa para os cabo-verdianos o reconhecimento daquela que consideram ser a sua música maior, um reconhecimento identitário por excelência. À semelhança do que aconteceu com o fado, eleva a morna a uma categoria que transcende o próprio país. Para a diáspora, que sempre se vê e se revê na morna, será um reconhecimento daquilo que os identifica como cabo-verdianos. É a autoestima de toda uma nação que é elevada.”

E acrescenta o ONU News: "Tradicionalmente, a morna é tocada com instrumentos acústicos, sobretudo violão, e canta temas como amor à terra, partida para o estrangeiro e saudade".


2. O "meu pai, meu velho, meu camarada", Luís Henriques (1920-2012), estaria hoje feliz, se fosse vivo e estivesse lúcido, com esta notícia... Ele que tanto amava Cabo Verde (onde foi expedicionário, em 1941-43) e que me passou o gosto pelas mornas e pela morabeza cabo-verdiana... 

Cantarolava, em crioulo,  algumas mornas do seu tempo, que acabaram por  me ficar na memória como a célebre "Maria Bárbara, canta mais uma morna",  celebrizada já no meu tempo pelo grande Bana (que eu descobri no pós-25 de Abril, por volta de 1979/80,   no seu restaurante "Monte Cara", na Rua do Sol ao Rato; com outro nome, o sítio já era popular tornou-se popular, em finais de 1976, graças sobretudo à música do grupo Voz de Cabo-Verde, a mítica banda de Luís Morais & Companhia)

Há tempos deu-me curiosidade em saber quem era essa "Maria Barba"e o que dizia a letra da morna... Encontrei o seguinte no Blogue ArrozCaTum > terça-feira, 11 de agosto de 2015 >

 [8362] - A SAGA DE MARIA BARBA...  [Excertos, com a devida vénia...]

(...) O amigo Artur Mendes é senhor de uma curiosidade científica acima da média e essa característica não é raro colocá-lo na senda de autênticas pérolas da História e das Gentes de Cabo Verde... Neste caso, colocou-se em contacto com a Nanie Lima, que se apelida a si própria de "The Creola Genealogist" - e de quem há dias publicámos umas fotos antiquíssimas - no sentido de tentar desvendar o segredo de Maria Barba de quem, afinal, apenas se conhecia o nome da Morna com o mesmo nome e que o Bana popularizou... Pois bem...Nanie Lima não se deu por achada e respondeu à curiosidade do Artur com o trabalho que passamos a reproduzir, depois de traduzido do original, em inglês dos EUA...

Foto: Dias Mulheres da Boa Vista, 1926. Nanie Lima (2015),
 com a devida vénia
"Há algum tempo postei no Face Book uma foto com o título "Retrato de Duas Mulheres", que ilustrava as figuras de duas jovens e que concitou grande curiosidade...(Duas mulheres da Boavista - 1926).

Muita gente me perguntou quem eram elas mas, ao tempo, eu não fazia a mais pálida ideia... Por isso, foquei toda a minha atenção naquilo a que eu chamo "os narizes Lima" e constatei que elas tinham o mesmo nariz da minha avó Joana Fortes Lima Gomes e de outro membro da família, o Padre Manuel Antonio de Brito Lima (...).
Maria Barba, Boavista, s/d.
Foto de Nanie Lima (2015)

A foto das duas mulheres foi reeditada por vários amigos e, por fim, obtive de Joana Lima Ramos, da Boavista, a informação de que se tratava de Maria Bárbara e Nha Luci... À minha insistência para confirmação, garantiu que, na realidade, se tratava de MARIA BARBA, a célebre cantadeira de mornas que, no auge da sua carreira, chegou a cantar na I Exposição Colonial de Lisboa  [, ou melhor do Porto, no Palácio Cristal], em 1934...

A única foto que dela consegui não é de grande qualidade e não faz decerto jus à sua figura,  ela que era ainda muito jovem quando casou, tendo tido o primeiro filho em 1930...A foto é de 1926.

Maria Barba (Bárbara) nasceu na Boavista, em 1910 e ali faleceu, em 1974. Ficou célebre através da morna "Maria Barba" que me habituei a ouvir, vezes sem conta, durante a minha infância... Sinto-me, pois, honrada por poder dar este testemunho de uma mulher da ilha dos meus antepassados Limas! (...)



3. "Maria Barba", cantada por Bana, letra recolhida e fixada pelo autor do blogue "ArrozCaTum, Zito Azevedo


Maria Barba, canta mais uma Morna
Para despedida do Sr. Tenente Serra ) (2 vezes)

S’nhôr Tenente, ‘m câ pôdê cantá más 
‘m ti ta bai nhâ camin pâ Manga
Pâ matança di gafanhôt
Oh, Sr. Tenente, oli cóbe d’plícia e cheo
Djál bem bscóme
Ai, s’um ca bai, el tâ mandam’
Prese pâ Porte, oi, oi,...


Quem é o chefe desta povoação ?
Porque Maria Barba tu não vais ainda (2 vezes)

Nôs cóbe-chef ê Nhô Tôc d’Chuc Canóche
Amim’ ti ta bai nhâ camin pâ Manga
Nhâ mãe ê fráca, nhâ pai ê môrte
Amim’‘m câ tem q’êm raspondê pa mim,oi,oi 
Maria Barba, canta mais uma Morna

Porque eu falarei com o vosso cabo chefe, 
Maria Barba, canta mais uma Morna
Se tu fores presa, responderei por ti.

Saúde, Sr. Tenente, saúde Sr. Inginher
Um muito obrigada de Maria Barba
Oh S’nhôr Ten. Serra ora bocê bai pâ Lisboa
Ai câ bocê squêcê di nôs, oi, oi, ...

Maria Barba não me esquecerei de vocês. 


4. Tradução das partes em crioulo para português, da responsabilidade do editor LG,  a partir de versão francesa (cortesia de "Cape Vert, Mindelo Infos > Musique capverdienne : Maria Barba" )

(...)

- Senhor tenente,
eu não posso cantar mais,,
Tenho de ir ar à Manga
Para caçar gafanhotos.
Oh, senhor tenente, tem ali o cabo chefe
que me vem buscar,
se eu não for, ele vai-me mandar
para a prisão do porto.
(...)

- O nosso cabo chefe chama-se
Nho Toc d'Chuc Canoche,
Vou a caminho da Manga,
A minha mãe está doente, o  meu pai já morreu,
Ai, não tenho ninguém que cuide de mim.

(...)
Saúde, senhor tenente,
Saúde, senhor engenheiro,
Um muito obrigado da Maria Bárbara,
Oh, senhor tenente Serra,
Quando regressar a Lisboa,
Não se esqueça de mim. (...)


5. Nota do editor do blogue ArrozCaTum:
O amigo Adriano [Miranda Lima, membro da nossa Tabanca Grande, colaborador permanente do blogue Praia do Bote}, que teve conhecimento deste trabalho, ainda andou a indagar por informações do "tenente Serra" e chegou à conclusão de que não era oficial do exército...Houve, depois, informação obtida por Rui Machado, de que teria sido um oficial da Armada que terá estado destacado na Boavista em serviços de hidrografia e se terá encantado pelas mornas de Maria Barba-
6. Notas,  em francês,  do sítio  "Cape Vert, Min(delo Infos > Musique capverdienne : Maria Barba" , taduzidas para português pelo nosso editor LG (e que este  não pôde  validar pelo confronto com outras fontes, para além da Nanie Lima)

A jovem Maria Barba [, nascida na Boavista, em 1910,]  tinha dois filhos. [O primeiro nasceu em 1930, tuinha ela 20 anos, segundo Nanie Lima.]

Em junho de 1934, integrou a delegação cabo-verdiana enviada à Exposição Colonial Portuguesa no Porto [, e não em Lisboa, como escreveu, por lapso, a Nanie Lima]...

Mais tarde,  já no início da década de 1940, quando a seca e a fome atingiram o arquipélago [, 1941/43,], ela deixou a ilha de Boa Vista e partiu para o continente africano.

Desembarcou na Gâmbia e estabeleceu-se na Guiné-Bissau onde morreu em 1974. [Nanie Lima diz que ela nasceu e morreu na Boa Vista.]

Por sua vez, a equipa que o tenente Serra acompanhou, percorreu o arquipélago de julho de 1926 a dezembro de 1931 [, no ambito de uma missão geográfica.] 

Em Boa Vista, este militar terá tido duas filhas com D. Vitória Santos Brito. Em Lisboa, ele interpretará esta morna perante vários amigos e terá escrito a Dona Vitoria para apresentar cumprimentos à Maria Barba..

Quanto à praga de gafanhotos, a que se refere a letra da morna... Eram frequentes nessa época, e ainda hoje.  E cada família era obrigada a enviar um dos seus elementos para combatê-los, protegendo as culturas da ilha. Na véspera do encontro com o tenente Serra, a Maria Barba estava escalada para esse efeito, e não tinha quem a pudesse substituir [, tendo o pai morrido e a mãe estando doente: "Nhâ mãe ê fráca, nhâ pai ê môrte". ]

Ao que parece, muitos  anos mais tarde, Bana gravou a morna, modificando a letra  (ou alguém por ele...), ao falar de um "pai malandro" ["Nha mae é fraca e nha pai é malandre"], uma versão que terá chocado a criadora deste tema, que continuou a interpretá-lo sem nunca, todavia,  ter conseguido  obter o reconhecimento (legal) da sua autoria. É considerada um a"morna tradicional".

[Mas estas notas foram  publicadas em 2015, no sítio "Cape Vert, Mindelo Infos > Musique capverdienne : Maria Barba" , baseando-se  nos "trabalhos sucessivos de Noel Fortes, Rui Machado e Otilia Leitão. Fizemos uma adaptação livre das notas.]
_________

Nota do editor:

Último poste da série > 19 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17602: Meu pai, meu velho, meu camarada (58): Ilha de São Vicente, Lazareto - Parte I [álbum fotográfico de Luís Henriques (1920-2012), natural da Lourinhã, ex-1º cabo inf, nº 188/41 da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5 [, Caldas da Rainha], que esteve em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, entre julho de 1941 e setembro de 1943]

5 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

Calma, que a morna ainda não está classificada como Património da Humanidade. Ainda. Falta a decisão final, que terá lugar em dezembro próximo. Parece que é apenas uma formalidade, mas é preciso esperar.

A morna "Maria Barba" está no Youtube. Neste vídeo podemos ouvi-la, cantada ao vivo por Bana e pela angolana Té Macedo: https://www.youtube.com/watch?v=QxMpUFYJOlg.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Para se perceber o contexto:

(i) "Manga" devia ser no norte da ilha, ciclicamente atingida por pragas de gafanhotos;

(ii) por outro lado, é bom não esquecer a mortalidade devida a seca e fome: a crise de 1941-1943, terá matado em todas as ilhas mais de 24 mil pessoas.

Vd. CARREIRA, Antonio. Cabo Verde: aspectos sociais. Secas e tomes do século xx. Lisboa:
Ulmeio, 1984. p. 17-19.

(iii) se a cantadeira Maria Barba emigrou, nessa altura, em que parte da Guiné terá vivido ? E onde é que morreu ? Se morreu em 1974, alguns de nós podê-la-ão ter conhecido...


Tabanca Grande Luís Graça disse...

O seu a seu dono... A foto de "duas mulhEres, Boavista, 1926", tem uma marca de água... que me levou ao portal do Instituto de Investigação Cientifica Tropical, Lisboa, Portugal.

Missão Geográfica de Cabo Verde 1926-1932 [Negativos originais]
Negativos correspondentes ao álbum MGG/Alb14, com o mesmo título. No interior da caixa com os negativos contem um papel datilografado com a seguinte inscrição "Centro de Documentação Científica - Uma caixa contendo 14 caixinhas com negativos de Cabo Verde e Angola, enviados pelo Exmº Senhor Bacelar Bebiano. Lisboa, 27 de Outubro de 1962. recebido por Enrique Cortesão." Existe um mapa online com a distribuição dos Marcos Geodésicos pela Ilha. Disponível no ACTD em: http://actd.iict.pt/maps/cvsa; Author: José Bacelar Bebiano; Local: Cabo Verde; Data: 1926-1932

José Bacelar Bebiano foi membro de: Missões Geográficas, Geodésicas e Cartográficas


Aqui fica a ficha técnica da foto:

José Bacelar Bebiano. (1926). [Retrato de duas mulheres].


Data da captura / Date photo taken 1926-1932
Tema / Topic Missão Geográfica de Cabo Verde 1926-1932 [Negativos originais]
Localidade / Local Cabo Verde
Fotógrafo / Photographer José Bacelar Bebiano
Copyright Instituto de Investigacao Cientifica Tropical, Lisboa Portugal
Tipologia / Source Fotografado a partir do negativo em vidro original 6x9cm, cota MGG/VC 42
Número ID / ID Number 25419
Data da digitalização / Date scanned 2013-04-11
Instituição / Institution Instituto de Investigação Científica Tropical
Proveniência / Provenance IICT/Cartografia; Centro de Documentação e Informação; Centro de História
Entidade Detentora / Custodian Instituto de Investigação Científica e Tropical

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A modificação da letra original parece ter sido muito "infeliz"... Não sei de quem terá sido o responsável: refiro-me à versão "popularizada" pelo grande Bana, de quem tenho grande apreço...

No contexto (desgraçado) daquela ilha (Boa Vista ) e daquele arquipélago (Cabo Verde) nos duros anos de 1920/30, quem é que se podia dar ao luxo de ter "um pai malandro" ?... Uma filha nunca o diria, lamentaria, isso, a sua ausência, a sua morte...

"Malandro" talvez no Mindelo / São Vicente, terra do Bana e da Cesária, mas na Boa Vista, terra da Maria Barba, por favor...

Há concessões de mau gosto, e esta parece ser uma delas: a morna, tal como o fado, tem um origem (mítica) na prostituição e na malandragem dos portos atlânticos... Ou não ?... LG

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Na letra original da "Maria Barba" o senhor engenheiro é... o fotógrafo José Bacelar Bebiano, que chegará a "ministro das colónias" no 5º governo da Ditadura Militar, que esteve em vigor entre 10 de novembro de 1928 e 8 de julho de 1929, liderado por José Vicente de Freitas, e sendo o ministro das Finanças o Prof Oliveira Salazar.

Encontrei a seguinte referência ao José Bacelar Bebiano_

Geólogo (1894-1967):

Foi um dos pioneiros no estudo científico do ultramar português. A partir de 1919 dedicou-se aos estudos geológicos e mineiros em Angola, Moçambique e Cabo Verde, os quais se tornaram de extrema importância. A sua formação iniciou-se em Lisboa, na Escola Politécnica, mas depois prosseguiu os estudos em Londres, na Royal School of Mines, onde se formou em Engenharia de Minas e Geologia. Presidiu a Junta das Missões Geográficas e de Investigação Coloniais e foi ainda ministro do Comércio e das Colónias.

http://fisica2100.forumeiros.com/t784-jose-bacelar-bebiano