sexta-feira, 5 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21043: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (5): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Romance é romance e nestas coisas de ter a faca e o queijo na mão, de poder aproveitar a experiência de conhecer uma cidade, e haver mesmo uma faísca de verosimilhança quanto àquele encontro que provocou outros encontros, e deu origem a um caderno cheio de garatujas que se relevou imprestável, pois toda a escrita ficou adiada até 2006, aí cantou outro galo, quando me comprometi com o Luís Graça a repor até ao mais ínfimo pormenor aqueles 26 meses de Guiné. E confesso que houve para ali uma alegria esfuziante, naquele fim de século, quando tudo levava a crer que a realidade superava a ficção e que daquele encontro frutificaria um romance encantado.
O que então não aconteceu passa a acontecer, o bordão da imaginação assegura certos devaneios para se voltar à Guiné e sentir o soar das nossas passadas, atravessando mares de capim, laterite que parece pó de talco que se entranha em todos os poros do corpo, é sempre bom momento para render homenagem a quem tão fielmente me acompanhou nas venturas e desventuras.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (5): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Cher Paulo Guilherme, estou encantada com o seu regresso previsto para daqui a uma semana, já me disse ter reservado bilhete, vem sexta-feira de manhã, ainda não sei se estou disponível nesse dia, provavelmente não, tenho na minha agenda marcação no Conselho Económico e Social Europeu, funciona na Rua Ravenstein, provavelmente só estarei disponível depois das 17 horas, vou esclarecer a situação, tenho muito gosto em que jante na Rua do Eclipse. Achei curioso, o relato que me fez da sua infância, ter escrito que a sua avó paterna era uma judia sefardita que se converteu. Até agora não veio a propósito, mas sou descendente de judeus. O meu apelido é Cantinaux porque os meus pais não tinham sido até perto da libertação de Bruxelas molestados, por uma razão muito simples. O meu pai, de nome Jacob, era membro da direção do Partido Comunista da Bélgica, fazia parte da resistência, saiu discretamente de Bruxelas no início de 1944. A minha mãe e os meus avós, pais dela, viviam na Avenida Georges Petre, imagine, com nomes falsos. Temendo uma denúncia de informadores leais ao Partido Rexista, quando eu nasci, em 16 de fevereiro, a minha mãe, não tinha eu ainda quinze dias, após uma conversa com uma amiga, aquela que vai ser a minha primeira mamã, Sara Poncelle, levou-me discretamente para o bairro típico de Marolles, o Paulo Guilherme conhece-o perfeitamente, sempre que cá está e não está mau tempo não perde a feira de velharias, que funciona todos os dias, mas é mais abundante aos sábados e domingos. Aí vivi, penso que vai ficar surpreendido, até ao fim da guerra, os comunistas belgas juntaram-se aos holandeses, o meu pai arriscou tudo. A minha mãe e os meus dois irmãos partiram para o fundo das Ardenas, a vida em Bruxelas era intolerável, um racionamento violento, houvera mau ano agrícola, em casa dos Cantinaux não me faltou nada.

Avenida Georges Petre, comuna de Saint-Josse, Bruxelas

Bairro de Marolles, Rua do Falcão, Bruxelas

Desfile alemão em frente ao Palácio Real, Bruxelas

Hitler cumprimentando Leon Degrelle, o seu aliado belga do Partido Rexista


Na verdade, só em 1948 é que voltei à vida familiar dos Altermann, não sei verdadeiramente explicar as razões que fundamentaram a decisão do meu pai de eu não ter o seu nome de família. Como sabe, a Bélgica depois da II Guerra Mundial viveu inúmeras tensões, Leopoldo III teve que abdicar no seu filho Balduíno, agudizaram-se as relações entre valões e flamengos. O antissemitismo não desapareceu, ficou atenuado, ainda pairava no ar o espetro das forças leais a Hitler e que comungavam das suas ideias raciais. O meu pai nunca desfaleceu com os seus princípios comunistas, mesmo quando o partido, tão prestigiado como força da resistência, se foi afundando eleitoralmente. Não sei se sabe que houve um abaixo-assinado, um pouco antes do Partido Comunista da Bélgica se dissolver, com o impressionante número de nomes relevantes de partidos de todos os quadrantes, intelectuais e artistas, e até empresários, que apelavam a que o Partido Comunista não desaparecesse da cena política devido aos serviços inultrapassáveis que prestara à Pátria. Jacob viveu amargamente todo este período, faleceu em 1984, vivendo sempre na maior das simplicidades, nunca assumindo qualquer jactância pelos seus atos de bravura.

Fiz o ensino liceal, frequentei depois a Universidade Livre de Bruxelas, atraída pela filologia germânica, o meu pai e os meus avós eram fluentes nesta língua, a minha mãe, de nome Juliette, nascida em Metz, comunicava comigo em francês e tinha primos que preferiam falar comigo em flamengo. É então que descubro esta faculdade para estudar línguas, juntei ao francês o flamengo e alemão, seguiu-se o inglês e depois atirei-me ao italiano, só muito mais tarde é que me apliquei no espanhol e no português.

Chega de o aborrecer com as minhas origens e a minha formação. Lembrei-me, já que me disse que gosta muito de passear na Floresta de Soignes, eu preferia sábado pela simples razão que domingo ao anoitecer parto para o Luxemburgo, tenho anotado um dia de trabalho de um comité farmacêutico qualquer todo o dia, depois regresso a Bruxelas. Podíamos ir a pé à comuna de Watermal-Boitsfort, arrumo aí o carro, entramos pelo parque Tournai-Solvay e passeamos até Rouge Cloître, há aí locais simpáticos para almoçar, aliás, contou-me que os seus amigos desta região lhe propõem estas caminhadas, fica tudo dependente do bom tempo, é uma simples proposta. Há outras sugestões, evidentemente, passear pelo Mercado do Midi é fascinante, ainda por cima já me disse que gosta muito de flores, é um espetáculo, passa pela carne, o peixe, os legumes e a fruta de todas as proveniências e depois temos o mundo floral, ouve-se o árabe, o espanhol e o português muitas vezes, há muitos estabelecimentos portugueses nesta região do Midi, não ignorará. Se preferir começar o dia assim, tenho aqui a lista de boas exposições, é só escolher. Se estiver mau tempo, terei muito gosto em o acompanhar a essas lojas de livros e discos em segunda mão e como me disse que ainda não visitou o Museu da Banda Desenhada, é outra hipótese.

Imagem antiga da Floresta de Soignes, o grande pulmão de Bruxelas

Loja de livros usados no Boulevard Lemonnier

Mercado do Midi, Bruxelas

Antes de me despedir, quero-lhe dizer que fiquei muito impressionada com a descrição da sua viagem no início de agosto de 1968, parece-me que num batelão, numa viagem de dez horas, como observou, correndo vários riscos de vida naquilo que chamou o Geba estreito, onde esses barcos podiam ser fortemente atacados. Li atentamente o que me mandou sobre a sua chegada a um local chamado Bambadinca, a missão que lhe deram, até o felicitaram, seria um local de férias desde que garantisse que naquele ponto do rio os barcos civis e militares nunca fossem atacados. Achei muito interessante a descrição que fez da viagem até ao destacamento de Finete, a sessão de cumprimentos com reverências, a sua aflição quando viu o estado miserável do que chamou sistema defensivo, tudo a cair e mantido num enorme desleixo; não esquecerei os pormenores da tal viagem desde que atravessou de canoa o rio e entrou por o estreito trilho onde a viatura não podia cometer nenhum deslize, senão caía dentro dos arrozais; e depois a chegada a Missirá onde o chefe local o recebeu de forma cerimoniosa e lhe entregou uma espada que o Paulo prontamente devolveu dizendo que os poderes dele eram invioláveis, a sua missão ali era defender aquele pequeno povo e impedir o avanço da guerrilha. Estamos em agosto de 1968. O Paulo arranca o seu romance com o nosso fortuito encontro. Há dias dei comigo a pensar num filme de que já vi duas versões, intitulado Breve Encontro, gostei mais da primeira versão, a de David Lean com Célia Johnson e Trevor Howard, ela recebeu Óscar, uma versão empolgante pelo arrebatamento emocional que nos provoca. A grande diferença entre eles e nós, permita-me o gracejo, eles eram casados e recuaram, foi uma separação dilacerante, lembrança que jamais se apagou; mas nós os dois somos livres de escrever o nosso livro aberto que aponta para o futuro, não devemos concessões a ninguém.
Continue de boa saúde, escreva mais coisas, é um prazer receber o seu correio, os seus telefonemas, gosto muito da companhia que me dá, e nunca deixe de pensar que tudo começou naquele fortuito encontro em que era preciso encontrar um ser de carne e osso para contar a sua experiência numa guerra, algures, num ponto diminuto dos trópicos. Bien à vous, Annette

Porto de Bambadinca por volta de 1914

O porto de Bambadinca nos tempos da guerra, imagem pertencente a Mourato de Oliveira, publicada no nosso blogue, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21019: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (4): A funda que arremessa para o fundo da memória

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