
Queridos amigos,
Não é demais salientar que procurei encontrar a mensagem deste romance em que um herói de guerra da Guiné, educado no meio de um bordel (o que nos lembra o romance Sagal, um herói feito em África, de António Brito, Clube do Autor, 2024), vive de expedientes e falcatruas, assumidamente chulo, hábil prestador de serviços na recruta e na especialidade, que soube montar o negócio da intendência da Guiné e que recheou a sua conta no banco Borges & Irmão, regressado de guerra, e na companhia de uma trupe trazida da Guiné, montou sucessivas empresas, mais tarde associou-se com um antigo alferes da polícia militar em Angola, aí a coisa fiou mais fino, meteu diamantes e outros negócios com os retornados. Acontece que Rui Sérgio diaboliza a descolonização e a gente sórdida que dela prosperou, e não sabemos muito bem o que ele fica a pensar deste Jordão Ribeiro que na sua ficção, pensava-se, merecia o lugar digno de alguém que praticara atos temerários, merecedores do respeito dos portugueses. Mas o autor nega-nos qualquer resposta.
Um abraço do
Mário
A arte da batota, antes, durante e depois da guerra da Guiné (2)
Mário Beja Santos
Corja de Batoteiros, de Rui Sérgio, 5livros.pt, 2019, confesso ao leitor que é um livro que me deixou desorientado quanto à natureza da mensagem que o autor pretende passar. Vimos antes que Jordão Ribeiro, pouco dado aos estudos, educado no meio de um bordel, cedo se habitou a viver de expedientes e falcatruas, chulando e recebendo os préstimos de senhoras ferventes de carícias. Andou pela Guiné e fez lautos negócios com outro tipo de falcatruas, no Porto desviava pregos, na Guiné forja quebras e faltas, escreve aerogramas para gente iletrada, manda clientela para o Chez Toi, teve um ato de heroicidade, recebeu uma Cruz de Guerra de 1ª Classe.
Regressa ao Porto e o patrão Pires, do tal armazém de ferragens onde trabalhou desde a juventude, propõe-lhe a venda do negócio. Trouxe consigo gente da Guiné. Mariama, a mulher de Bacar, terá direito a uma lavandaria para todas as roupas dos lupanares da madrinha, Bacar conduz uma carrinha furgão para o transporte das encomendas feitas ao armazém de ferragens e roupas da lavandaria. Jordão irá fazer percurso na Associação Comercial do Porto, no Ateneu Comercial do Porto.
Viera também da Guiné Ana Carolina, entra também no negócio, sempre a propósito ou a despropósito o Jordão vai cumprindo a sua função de garanhão. É convidado para pertencer à DGS, recusa. Ganha dinheiro chorudo num bilhete da lotaria, os negócios prosperam. Jordão investe em ações num banco fundado por Jorge de Brito, o Banco Intercontinental Português, compra ações de um conjunto de empresas bem cotadas na Bolsa, compra libras de ouro, as cotações sobem vertiginosamente em 1973.
Depois Rui Sérgio faz uma leitura do que se passa no país, no seio das Forças Armadas, aborda os acontecimentos de 1973; deplora que Marcello Caetano tenha recusado a ideologia esquematizada por Spínola, para se chegar a uma África lusófona. Jordão concluiu nesse ano o curso do Instituto Comercial, os negócios desenvolvem-se, há a compra de uma garagem/armazém, chega mais um guineense para tomar conta da garagem.
Os negócios de Jordão estendem-se aos diamantes de Angola, Jordão estabelece relações com Jarvas Pinto, alferes da Polícia Militar, as pedras preciosas vão circular por diferentes países, funda-se uma nova sociedade, a J. J. SA (Jarvas e Jordão – Sociedade Comercial por Ações), sempre benemérito, Jordão reparte a sua riqueza por Ana Carolina, Tristão, Bacar, Mariama, Sofia, Mamadu primo de Bacar graças à empresa Jota e Jota, Lda. de transportes. Dera-se o 25 de Abril, há desordem por toda a parte, Jarvas propõe ao sócio uma ida ao Alentejo para falar com um soldado do seu antigo pelotão, o Malaqueijo diamantes, mais internacionalização, desta vez entra-se numa offshore com sede em Gibraltar.
Começam a chegar os retornados, há caos por toda a parte, mas os bons negócios não vacilam, graças à companhia de transportes sai muita coisa do Alentejo para outros mercados, depois segue-se o transporte de retornados, e então Rui Sérgio perde a cabeça:
“Destruíram a essência da nossa cultura e da nossa estrutura multiétnica, multicultural, deste país pequeno, com um povo enorme, que mantinha territórios em todos os continentes, que esses políticos internacionais de merda levaram à liquidação do Império, estando-se a marimbar para o que se passava em relação aos ultramarinos que tiveram que abandonar os seus bens, as suas terras de origem.
O fundamental para esses cabrões era provocar o abandono pelo medo, de tudo e de todos, sem qualquer pingo de vergonha que nunca tiveram, nem medo das consequências, dizendo, quando perguntados pela maneira como descolonizaram, que foi possível (…) Tudo patranhas e balelas, destes batoteiros esquerdelhos que se dizem revolucionários, que conduziram ao fim de um sonho de globalização. A falta de planeamento de um programa de autodeterminação, faseada e com formação de quadros, irá levar a guerras civis partidárias e a centenas de milhares de mortos e feridos.”
Como uma sentença, caíra a desgraça neste jardim à beira-mar plantado, por culpa quer dos capitalistas de Estado quer por todos esses que vivem à custa do trabalho dos outros, com as suas teorias marxisantes, para se apropriarem do suor e das poupanças que tanto custam a juntar. Nunca sabemos se dentro da catilinária do autor cabem os negócios batoteiros do Jordão e do Jarvas, que ainda por cima se meteram como empreiteiros.
Depois veio o 25 de novembro, os negócios da empresa Jota e Jota andavam de vento em popa. “Enquanto o Império português acabava, outro começava, o nosso, em qualquer lugar do mundo, em qualquer moeda, com qualquer propósito e com o destino que lhe quiséssemos dar (…) Corja de batoteiros internacionais portugueses vendidos ao exterior, as vossas almas não terão paz e terão sempre a companhia de demónios para vos infernizar.”
Jamais saberemos o que o destino irá reservar a Jordão Ribeiro, herói na guerra da Guiné, o único filho de Maria Rameira, que se impôs desde a juventude como habilidoso falcatrueiro, entrou na engrenagem de negócios sórdidos e, tanto quanto me parece, não tem quaisquer problemas de consciência nem demónios para o infernizar…
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Notas do editor:
Vd. post de 25 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27151: Notas de leitura (1832): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (1) (Mário Beja Santos)
Último post da série de 29 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27165: Notas de leitura (1833): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 9 (Mário Beja Santos)
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