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quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27182: Felizmente ainda há verão em 2025 (30): A "política de terra queimada": a guerra peninsular (1807-1814) e a guerra colonial no CTIG (1963/74) - II (e última) Parte



PAIGC > "O Nosso Livro 2ª Classe".  Reprodução da Lição nº 8 - Morés, pp. 28-29. O manual era também um instrumento de propaganda e doutrinação política.  É óbvio que o PAIGC nunca poderia ter, a céu aberto, um tabanca no Morés (ou no Cantanhez ou no Fiofioli)....Mas a lição era também para ser "lida" pelos amigos suecos e outros... E quem elaborava estes manuais não tinha verdadeiro conhecimento do terreno nem da luta de guerrilha, procurando sobretudo glorificar o Partido (sic) e dar um retrato idealizado, heróico e até romântico da vida nas "áreas libertadas"...  

Sabemos, infelizmente, como eram "as escolas, os hospitais e os armazéns do povo" nas áreas sob controlo IN... Mas também sabemos que a guerra de contraguerrilha (ou antissubversiva) era implacável... A palavra de ordem era sempre, para nós, operacionais: (i) aniquilar o inimigo; (ii) destruir todos os seus meios de vida; e (iii) recuperar/ aprisionar a população sob o seu controlo... Como em todas as guerras, em todos os tempos...


Um exemplar deste manual escolar do PAIGC, "O Nosso Livro - 2ª Classe", foi-nos remetido em 2007,  pelo correio, pelo Paulo Santiago (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72).  O livro foi elaborado e editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné (sic). Tem o seguinte copyright: © 1970 PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)...  (Só faltava o SPM, quer dizer, o código postal.)

A  primeira edição teve uma tiragem de 25 mil exemplares, tendo sido impresso em Upsala, Suécia, em 1970, por Tofters/Wretmans Boktryckeri AB.

Não é novidade para ninguém que a Suécia (a par da Noruega,  Holanda e outros países da Europa do Norte) foi o país ocidental que mais apoiou o  PAIGC, durante a guerra de guerrilha, não só política e diplomaticamente, como em termos financeiros e logísticos  (nomeadamente, no campo da educação, saúde, alimentação, transportes e comunicação).

Foto: © Luís Graça  (2007). Todos os direitos reservados. Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Na Guiné-Bissau, as queimadas faziam (e ainda fazem)  parte de uma prática ancestral: eram utilizadas sobretudo para renovar a fertilidade dos solos e criar novas zonas de pastagem para o gado. Era uma técnica agrícola comum em várias regiões de África, adaptada ao clima de estação seca e às necessidades das comunidades locais.

Todavia, durante a guerra colonial (e em especial entre 1963 e 1974), essa prática assumiu um carácter diferente. Tanto o PAIGC como o Exército Português recorreram à chamada “política da terra queimada”. 

Nada, afinal,  que não se tenha visto antes em outras guerras do século, ou até mesmo no passado (como a guerra peninsular, 1808-1814) (*).

No caso da Guiné, as práticas de "terra queimada", utilizadas pelos dois contendores,  incluíam:
  • Fogo posto no capim (ervas altas e secas), no tempo seco, dificultando a movimentação, aproximação e/ou ocultação do inimigo, eliminação de possíveis pontos de emboscada, etc ;
  • Bombardeamentos (recorrendo inclusive a bombas, granadas e balas  incendiárias) que destruíam aldeias, plantações e meios de subsistência (de um lado e do outro);
  • Criação de zonas devastadas para privar o adversário de apoio logístico e alimentar (por exemplo bolanhas, esconderijos, hortas ou pontas, poços, cais acostáveis, pontões, poços, linhas de telefone...);
  • Abate indiscriminado de gado vacum,  suino e caprino  bem como de todos os animais de criação (galinhas e até cães);
  • Destruição de culturas (mancarra) e de  todas as reservas alimentares (arroz) ...
Este uso da terra queimada teve consequências graves:
  • Ambientais e geográficas: destruiu importantes extensões de savana arbustiva, floresta e biodiversidade;
  • Sociais e demográficas: obrigou populações inteiras a deslocarem-se; riscou do mapa muitas tabancas (veja-se as cartas militares elaboradas na década de 50, antes do início da guerra; compare-se as tabancas que existiam e as que desapareceram com o início da guerra);
  • Económicas: dificultou a agricultura, com o abandono de bolanhas, e limitou a criação de gado, levando à desnutrição e à fome.

Algo que era uma prática tradicional de uso agrícola, já de si devastadora para o ambiente, com  degradação dos solos, etc,,  transformou-se, no contexto da guerra, numa estratégia militar destrutiva.

O uso do napalm (e/ou outras bombas incendiárias como o fósforo branco), por parte da FAP, terá sido limitado.   Contrariamente ao que aconteceu, por exemplo,  na Argélia e no Vietname... 

Mas também temos falado aqui pouco do tema, o uso de napalm e outras bombas incendiárias na Guiné, no contexto da política  de "terra queimada". 

O assunto está, de resto,  mal documentado e prestou-se no passado a relatos fantasiosos e propagandísticos.

 (i) Contexto Histórico

O nosso blogue,
 outros testemunhos de antigos combatentes, bem como fontes académica reportam que tanto os guerrilheiros do PAIGC quanto as forças portuguesas recorriam ao fogo, tanto através de bombardeamentos aéreos (FAP) e artilharia  como pela queima deliberada de capim e vegetação seca, para dificultar as movimentações adversárias e destruir infraestruturas. O ataque a tabancas fulas, com balas incendiárias, por exemplo, era vulgar por parte do PAIGC.
  
 
(ii)  Destruição de Recursos e Animais Domésticos

Além das queimadas e bombardeamentos, tanto o Exército Português como o PAIGC recorreram a métodos que visavam privar o inimigo e as populações civis de recursos básicos.

Entre essas práticas destacavam-se:

  • abate indiscriminado de gado bovino, suino e caprino,além de criação doméstica ( galinhas, etc.) que representavam a riqueza e sustento das tabancas  (nas chamadas "áreas libertadas");

  • destruição de arrozais, "pontas" (hortas) e palmeirais,  pilares da subsistência alimentar;

  • O incêndio de celeiros e depósitos de arroz, essencial na dieta guineense.

(iii) Consequências Imediatas
  • Fome generalizada, desnutrição: ao destruir  o gado e os alimentos, a guerra atingia diretamente os mais vulneráveis, mulheres, crianças e idosos;
  • Deslocações forçadas: aldeias inteiras foram obrigadas a abandonar as suas terras para procurar sobrevivência noutras zonas;
  • Colapso económico local: ao destruir os animais e colheitas, a base produtiva da sociedade rural guineense foi desmantelada.
(iv) Exemplos e Relatos

Testemunhos de ex-combatentes portugueses lembram que as operações de “limpeza” incluíam não só a queima do capim, mas também o abate sistemático de animais e destruição de outros víveres, como arroz, deixando as aldeias devastadas.

Um antigo guerrilheiro do PAIGC relatou que muitas vezes, depois de uma ofensiva da tropa, regressavam às tabancas e encontravam os celeiros queimados e os animais mortos, como forma de pressão psicológica para afastar a população do apoio à guerrilha.

Nas memórias orais recolhidas em comunidades guineenses, ainda hoje se recorda o período da guerra como “o tempo da fome e do fogo”.
 

2. A Operação Lança Afiada (8–19 de março de 1969, Setor L1, Bambadinca)

(i) Contexto e Objetivos

Operação Lança Afiada foi uma das grandes operações de “limpeza” executadas pelo Exército Português no setor Leste (L1), região de Bambadinca, em março de 1969. Contou com cerca de 1 300 efetivos (incluindo oficiais, sargentos, praças, milícias e carregadores)  sob comando do coronel Hélio Felgas blogueforanadaevaotres.blogspot.com.

O objetivo declarado era eliminar, capturar ou expulsar o IN (inimigo), aprisionar a população sob o seu controlo,  e também destruir os recursos de vida com os quais as populações ali se sustentavam, forçando seu retorno sob controle português.

(ii) Impacto sobre Gado e Arroz

Durante a operação, foram destruídas numerosas tabancas,  queimados arrozais e mortos milhares de animais,  incluindo gado e animais domésticos, como parte da estratégia de terramoto na subsistência.

(iii) Condições e Consequências Humanas

A operação decorreu sob calor extremo ( entre 39 °C e 44 °C à sombra, e até 55–70 °C ao sol) com os soldados frequentemente revoltados com as rações fornecidas (classificadas como "intragáveis"), gerando uma sede extrema e problemas alimentares sérios; após o segundo dia, muitos já não conseguiam comer, e havia sinais de desnutrição e esgotamento.

Muitos soldados foram evacuados:  110 foram retirados por desidratação, desnutrição, esgotamento físico ou stress psicológico.

(iv) Resultado Tático e Retaliações

Militantes do PAIGC e populações civis conseguiram atravessar o rio Corubal juntamente com um mínimo de víveres  (como cães, porcos e galinhas), escapando da operação (não havia tropa na margem esquerda do rio, nomeadamente fuzileiros e paraquedistas, como tinha sido recomendado pelo cérebro da operação, o cor inf Hélio Felgas).

Além disso, conforme relatos posteriores, o PAIGC retaliou com flagelações, embora a distância e furtando-se ao contacto directo,  mostrando desse modo que a operação esteve longe de  neutralizar os seus bigrupos ( o número de baixas foi escasso face aos meios utilizados pelas NT). E dois meses e meio depois, em 28 de maio de 1969,  o quartel de Bambadincs, sede do BCAÇ  2852, foi atacado em força. 

Resumo Sintético: Abate de Gado 
e Destruição de Arroz


Aspecto | Detalhes

Abate de gado e animais: morte em massa de bovinos e outros animais domésticos, visando destruir os meios de sustento das comunidades

Destruição de arrozais: Arroz, celeiros e culturas queimadas, comprometendo gravemente a produção local de alimento. (Foram destruídas muitas toneladas de arroz.)

Condições extremas: Altas temperaturas, rações de combate inadequadas, esgotamento e elevada necessidade de água resultaram em evacuações de soldados (cerca de 15%) .

Resposta do IN: Populações fugiram com alguns dos seus parcos haveres, atravessando o Rio Corubal para a região de Quinara, e o PAIGC manteve, no essencial, a mobilidade e a capacidade de reação.

Conclusão

A Operação Lança Afiada, em março de 1969, foi um marco na guerra colonial e um exemplo claro de como a política de "terra queimada" se manifestou de forma devastadora. 

Ao dizimar  o gado e destruir dezenas de toneladas de arroz, as NT militares visavam desestruturar a base econômica e alimentar das populações. De qualquer modo,  as dificuldades enfrentadas pelo nosso exército,  aliadas à resiliência da guerrilha e população sob o seu controlo (estimada em alguns milhares) demonstraram os limites transversais dessa estratégia. Deixaram-se, de resto, de fazer  grandes operações como esta.

Tratou-se de uma operação onde se foi a lugares míticos (ou mitificados desde o início da guerra, como a mata do Fiofioli, junto ao Corubal), mas ninguém encontrou médicos e enfermeiras cubanas... Hospitais (?) de campanha, sim (ou melhor, pequenos postos e toscos postos sanitários),  mas já abandonados, uns meses antes. 

Destruíram-se muitas toneladas de arroz, mataram-se milhares de animais, queimou-se tudo o que era tabanca e "barracas"... Em contrapartida, houve 24 flagelações do IN, mas os guerrilheiros seguiram a regra básica da guerrilha: primeiro, retirar quando o inimigo, ataca: segundo, e quando possível, atacar, quando o inimigo retira...

 O autor do relatório, irritado, queria que os tipos do PAIGC se apresentasse de peito feito às balas e dessem luta...

O mais caricato (e hilariante, se fosse caso para rir) desta operação é que o pessoal deitou fora... as intragáveis rações de combate e desatou a comer... leitão assado no espeto!... E até poupou algumas vacas, que trouxe para os seus aquartelamentos...

Este é um cínico relato da dura condição da guerra da Guiné, vista pelo lado da hierarquia militar. O relatório tem a chancela do então Cor Hélio Felgas, já falecido como maj gen ref, Torre e Espada, considerado um dos mais brilhantes oficiais da sua geração.  

Tem  críticas veladas, se não mesmo picardias,  ao Comandante-Chefe, ao Quartel General, à Marinha e à Força Aérea...

 O seu relatório é uma peça de antologia.  Creio que o Hélio Felgas sempre se bateu ao lugar de Spínola. O desastre de Cheche, em 6 de fevereiro de 1969, manchou a sua reputação.  O falhanço da Op Lança Afiada foi outra machadada no seu prestígio.  Tornou-se um azedo crítico do spinolismo. 

 
 (Revisão / fixação de texto: LG)
 
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