quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20605: Historiografia da presença portuguesa em África (196): Relatório do Governador da Guiné, Contra-Almirante Francisco Teixeira da Silva, referente a 1887-1888 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
São documentos preciosos que se encontram na Biblioteca da Sociedade de Geografia, espelham a realidade da nova Província da Guiné, do estado em que se encontrava, o Governador não esconde ao Ministro as carências de toda a espécie e propõe medidas. Será governador por pouco tempo, era um oficial da Armada com larga experiência colonial, foi rapidamente destacado para Macau.
Sobre a sua governação sugere-se a leitura da obra de Armando Tavares da Silva "A Presença Portuguesa na Guiné", a partir da página 169, é neste tempo que fomos forçados a abandonar Zinguinchor, com muita dor da população local, Tavares da Silva relata com detalhe os muitos conflitos que se registaram nesta época.

Um abraço do
Mário


Relatório do Governador da Guiné, Contra-Almirante Francisco Teixeira da Silva, referente a 1887-1888

Beja Santos

O oficial da Armada foi surpreendido em Angola com a sua nomeação para a Guiné, daqui seguirá também como Governador para Macau. O seu documento é muito económico, revela uma limpidez de caráter, não se escusa a abordar as questões mais ásperas e a propor medidas de revitalização, fundamentais num período em que a presença francesa aparecia como um cerco ao enclave português. Não esconde no documento destinado ao ministro que lhe falta alguma informação e diz claramente que a presença portuguesa está altamente condicionada.

As primeiras páginas introdutórias levam-no a dizer que a Província compreende todo o continente africano entre o Cabo Roxo e a Ponta Repin, a superfície total da Província, incluindo as ilhas, seria aproximadamente de 40 mil quilómetros quadrados. Escreve que a população que se diz civilizada não ultrapassa as 10 mil almas. Estabelece as condicionantes, ocupava-se a ilha de Bolama; Bissau, Cacheu, Geba, Buba e Farim só a parte fortificada; Cacheu está sempre em armas; em Bissau, há quem proteste contra a destruição das muralhas da praça, com medo dos vizinhos; em Geba e Farim, todos temem o Mussá-Muló e em Buba desconfia-se de Mamadu Paté, chefe Fula, de Mamadu Jolá, chefe Beafada. E explica a natureza das tensões:

“Este mal-estar deve-se principalmente à política de intervenção nas questões indígenas e ao costume de lhes pagar tributos e dar presentes que mais provam vassalagem do que suserania. Hoje não se pagam tributos e dão-se-lhes poucos presentes”.

E procura fazer um retrato da capital da Província, dirá repetidamente que anseia por ver Bolama ascender a cidade:

  “A capital da Província é na ilha de Bolama na sua parte mais insalubre. Convinha dominar a entrada do Rio Grande – diz-se. Data este estabelecimento de 1879 e se não é hoje como Luanda que conta séculos de existência, não é inferior a São Tomé ou a Benguela em edificações públicas e particulares. Se me é lícito advogar uma causa que mais pertence à municipalidade, proporia que a sede da Província da Guiné na ilha de Bolama fosse elevada à categoria de cidade… Capital de uma Província não deve ser aldeia nem vila. O concelho de Bolama abrange toda a ilha. O poder judicial e administrativo não vai além da vila e aldeias próximas por ser difícil o seu exercício nas tabancas das diferentes raças cujos costumes temos respeitado”. E dá uma nota de franqueza para o estado da capital: “Em Bolama não há nem cemitério nem calcetamento das ruas, nem um edifício camarário que não seja alugado”.

E pronuncia-se sobre os administradores de concelho e chefes de presídio, os representantes do Governo nos pontos ocupados:

“Uns e outros acumulam a parte civil. Veem-se em cada passo embaraçados quando pretendem cumprir as ordens do Governo, e na parte política da administração têm de lutar contra a natural desconfiança dos indígenas, sempre excitada pelos habitantes da localidade, políticos a seu modo, intervindo em todas as questões gentílicas com o fim principal de promover os seus interesses que não os do país que lhes deve o seu atraso, as suas discórdias, as suas guerras e o seu mau estado financeiro”.

Depois de dizer abertamente que vota pela extinção das câmaras municipais em Bissau e Cacheu, e depois de informar que Buba já tem comissão municipal, pronuncia-se sobre a gestão das questões gentílicas:

“É simples a minha política: é a de não interferência nos negócios indígenas, a não ser a de bom conselho dado sem interesse. É o castigo pronto ao morador, ao grumete do presídio que comete extorsões nos territórios gentílicos ou nos mercados públicos à sombra da autoridade. É a exigência da amarração de qualquer gentio por crimes contra cristãos ou moradores e grumetes, tomando reféns até que se faça a troca. É não dar presentes aos chefes das tribos, nem aceitá-los. Os presentes constituem hoje uma obrigação, a que eles dão o nome de daxas ou tributos”.

É favorável a que se arrasem todas as muralhas e paliçadas, não obstante havia que conservar em bom estado as fortalezas, era a melhor maneira de mostrar aos indígenas que não tinham medo deles.

É severo num conjunto de apreciações quando fala da administração, da justiça, da missionação, etc. Recorda ao ministro que há situações do mais flagrante atentado à saúde, é o caso de Bissau: “Tem 80 casas, se tanto, apertadas por uma muralha de três metros de altura torneada por um fosso que serve de despejo. Limpa-se o fosso, dá-se-lhe vazão para a praia, entulham-no outra vez”. A justiça estava pela hora da morte: “Crimes, quem é que os paga, se não há quem os julgue? Os juízes ordinários ali dizem que não têm escrivães. Não há administrador de concelho, delegado de saúde: não há quem ali vá com eles com olhos de ver que se não ria daquela muralha e de quem pede a sua conservação. E a muralha fica de pé, devendo eu também entrar no número daqueles que não toma uma deliberação”.

Pronuncia-se meticulosamente sobre obras públicas, correio, administração da Fazenda, da Alfândega e volta ao tema da justiça e não se coíbe de tecer observações sobre a administração eclesiástica:

“O vigário-geral é o único sacerdote que há hoje em toda a Guiné Portuguesa. A Diocese de Cabo Verde compreende as cristandades da Guiné sobre a direcção do Vigário-geral. A diocese tem um seminário na ilha de São Nicolau que, se dá padres, não chegam à Guiné. No reino não se ordenam em número proporcional às necessidades das províncias africanas. Vêm do Oriente, espalham-se por todas as colónias como se têm espalhado os cirurgiões da Escola de Goa”.

Sempre objetivo, sem teias numa narrativa de verdade, diz o que pensa sobre as velhas fortificações em ruínas, o estado degradado em que se encontra a artilharia, as necessidades prementes de manter unidades da Armada na Guiné.

E termina o seu relatório relembrando várias propostas:

“mostrei a conveniência de elevar Bolama a categoria de cidade;
disse que o concelho de Bolola não tinha hoje razão de ser;
provei que Cacheu não tem elementos de vida municipal;
pedi a reorganização da Secretaria Geral do Governo;
que os chefes dos presídios sejam gratificados com 300 mil reis anuais;
que a despesa com a instrução primária passe a cargo das câmaras e comissões municipais;
que se crie na capital da Província uma escola principal;
que venham de Angola cinco pretos resgatados para servirem nas obras públicas como aprendizes de ofícios;
que, quando os portos da Guiné Portuguesa estiverem suspeitos ou sujos, haja carreira directa de vapores para a metrópole;
que se arrasem as muralhas de Bissau e se destrua a paliçada de Cacheu;
que se mande vir de França o material preciso para construções na Província e principalmente em Cacine, etecetera, etecetera".

O relatório é assinado na ilha Brava em 26 de outubro de 1888, nessa altura Francisco Teixeira da Silva é ex-Governador da Guiné nomeado Governador de Macau.


Ruínas do BNU de Bolama, posteriormente Hotel do Turismo, 
Imagem de Bruno Kestemont, retirada do blogue Rio dos Bons Sinais, com a devida vénia.




(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20539: Historiografia da presença portuguesa em África (195): A Guiné vista pelo seu primeiro governador, Pedro Inácio de Gouveia (Mário Beja Santos)

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